Texto 25 - Kant (parte 2) - Por Giovanne Reale



2.5. A analítica dos princípios: o esquematismo transcendental e o sistema de todos os princípios do intelecto puro ou a fundamentação transcendental da física newtoniana

Por várias vezes já afirmamos a convicção kantiana de que as intuições são somente sensíveis e que o intelecto não intui. Assim, as intuições e os conceitos são heterogêneos entre si. Daí surge o problema da mediação entre a intuição e os conceitos primeiros, que Kant propõe nestes termos: “Como é possível a adoção das intuições sob os conceitos e, portanto, a aplicação das categorias aos fenômenos (...)?” É preciso "um terceiro termo, que, por um lado, deve ser homogêneo com a categoria e, por outro, com o fenômeno, tornando possível a aplicação daquela a este”. E "tal representação intermediária deve ser pura (sem nada de  empírico) e, no entanto, intelectual por um lado e sensível por outro lado”.

Kant chama esse intermediário de “esquema transcendental” e de “esquematismo transcendental" o modo como o intelecto se comporta com esses esquemas. 

O que é então esse esquema?

A solução de Kant era quase que obrigatória se levarmos em contra o que segue. O espaço é a forma da intuição de todos os fenômenos externos, ao passo que o tempo é a forma da intuição de todos os fenômenos internos. Mas também os fenômenos “externos", uma vez captados, tornam-se “internos” para o Sujeito, de modo que o tempo pode ser considerado como a forma de intuição que conecta todas as representações sensíveis.

Por isso, como condição de todas as representações sensíveis, o tempo é homogêneo em relação aos fenômenos, não podendo se dar nenhuma representação empírica senão através dele; e, enquanto ele é forma, ou seja, regra da sensibilidade, é, a priori, puro e geral e, como tal, é homogêneo às categorias. Portanto, o tempo torna-se também "a condição geral segundo a qual e somente segundo a qual a categoria pode ser aplicada a um objeto”.

O “esquema" transcendental, portanto, vem a ser uma determinação a priori de tempo, feita de modo a que cada categoria possa ser facilmente aplicada a ela.

Como esse é um ponto que, segundo alguns intérpretes, constitui uma das chaves do kantismo, sendo, de todo modo, um ponto muito sugestivo, é bom proceder a alguns esclarecimentos.

Mesmo tendo certa afinidade com a imagem, diz Kant, o “esquema" é muito mais, devendo portanto ser distinguido dela. Cinco pontos em fila são uma imagem do número cinco. Mas, se eu considero os cinco pontos (aos quais, pouco a pouco, podem ser acrescentados outros) como exemplificação metódica para representar uma multiplicidade (um número qualquer), então eu não tenho mais uma simples imagem, mas sim uma imagem que funciona como indicação de um método para que eu me represente o conceito de número - e, portanto, tenho um “esquema”.

Analogamente, quando eu desenho um triângulo, tenho uma imagem; mas, quando considero aquela figura como exemplificação de regra do intelecto para a realização do conceito de triângulo em geral, então tenho um “esquema”.

Por fim, ainda um exemplo muito simples (que o próprio Kant apresenta) para completar o quadro: quando me represento um cão, tenho uma simples imagem: mas, quando, despojando-a de algumas de suas peculiaridades, eu a considero como representação de um quadrúpede em geral, então tenho um “esquema".

Os exemplos que apresentamos até agora são exemplos de esquemas em geral. Vejamos agora os esquemas "transcendentais". Eles devem ser tantos quantas são as categorias. Alguns exemplos poderão esclarecer: o "esquema" da categoria da substância é a “permanência no tempo” (sem esse permanecer-no- tempo, o conceito de substância não se aplicaria aos fenômenos); o esquema da categoria de causa e efeito (pela qual, posto A, segue-se necessariamente B) é a sucessão temporal do múltiplo (segundo uma regra); o esquema da ação recíproca é a simultaneidade temporal; o esquema da categoria de realidade é a existência de um
determinado tempo; o esquema da categoria da necessidade é a existência de um objeto em cada tempo e assim por diante.

A imagem empírica é produzida pela imaginação empírica; já o "esquema" transcendental é produzido pela imaginação transcendental. Os românticos também se apossaram desse conceito, fazendo dele um dos pontos básicos do idealismo. Mas note-se como o próprio Kant joga-lhes a isca nestas afirmações; “Esse esquematismo do nosso intelecto em releção aos fenômenos e à sua simples forma é uma arte encerrada na profundeza da alma humana, cujo verdadeiro manejo nós dificilmente arrancaremos à natureza para expô-lo a descoberto diante dos nossos olhos." Mas Fichte iria precisamente tentar expô-lo a descoberto diante dos nossos olhos.

Uma última observação ainda se faz necessária. Alguns certamente podem pensar que se trata de estranhas idéias abstrusas. No entanto, ao contrário, elas têm suas raízes na ciência da época, particularmente na mecânica e especialmente na dinâmica, como bem destacaram o neokantiano H. Cohen e outros depois dele. Na dinâmica, os conceitos de matéria, força e ação recíproca estão estreitamente ligados ao “tempo”, que funciona quase que como o seu suporte. Assim, vemos o sistema kantiano dividido cada vez mais entre aquele “amor pela metafísica”, que foi uma verdadeira constante, e a admiração pela ciência, que foi o seu pressuposto condicionante.

Análogas observações devem ser feitas a propósito da abordagem que Kant faz de “todos os princípios sintéticos" do "intelecto puro”. Nesta última parte da analítica, o filósofo procura identificar e justificar todos os princípios nos quais se baseia a ciência (concebida newtonianamente) da natureza entendida como “conexão necessária de fenômenos”. É evidente que, se a “natureza” é a ordem e a conexão dos fenômenos, ela pode ser conhecida a priori de modo universal e necessário, à medida que tal ordem e tal conexão derivam, em última análise, do Sujeito. A totalidade dos princípios que derivam das categorias representa precisamente todo o conjunto dos conhecimentos a priori que podemos ter da natureza. Aqui, nos limitaremos a recordar os três princípios correspondentes às três categorias da relação, a fim de ilustrar o que dissemos.

Kant chama esses princípios de “analogias da experiência”, reunindo-os sob o seguinte princípio geral: “A experiência das percepções.” A primeira analogia da experiência, que corresponde à categoria da substância, é a seguinte: “Em toda mudança dos fenômenos a substância permanece e sua quantidade na natureza não aumenta nem diminui.” A segunda analogia, correspondente à categoria da causalidade, diz: “Todas as mudanças ocorrem segundo a lei do nexo de causa e efeito." Por fim, a terceira, correspondente à categoria da ação recíproca, estabelece: “Todas as substâncias, enquanto podem ser percebidas no espaço como simultâneas, estão entre si em ação recíproca universal.”

Mais tarde, Kant chega a denominar de “metafísica da natureza” o estudo do conjunto dos princípios que constituem as condições da ciência da natureza. Mas é evidente que tal metafísica é a epistemologia da ciência galileano-newtoniana, que programaticamente se mantém no interior do horizonte do fenômeno, excluindo decididamente a acessibilidade cognoscitiva do númeno.

2.6. A distinção entre fenômeno e númeno
(a “coisa em si”)

As conclusões da analítica, portanto, são claras; o conhecimento científico é universal e necessário, sim, mas é fenomênico. Aliás, poder-se-ia até dizer que, exatamente e precisamente por ser fenomênica é que a ciência é universal e necessária, dado que os elementos de universalidade e necessidade derivam somente do Sujeito e de suas estruturas a priori, no sentido que já ilustramos amplamente. O fenômeno, porém, nada mais é do que âmbito estrito, estando todo circundado por um âmbito bem mais vasto que nos escapa. Com efeito, se o fenômeno é a coisa tal como aparece para nós, é evidente que ele pressupõe a coisa como ela é em si (pela mesma razão pela qual há um “para mim” deve haver um "em si "). Kant nunca pensou, sequer de longe, em reduzir toda a realidade a fenômeno e negar a existência de uma realidade metafenomênica.

E diremos mais: sem o pressuposto da “coisa em si", a filosofia transcendental não permaneceria de pé e o kantismo ruiria por terra.

Mas, deixando para voltar mais adiante a esse assunto, vejamos agora como Kant apresenta a concepção da coisa em si ou númeno. Na parte final da analítica transcendental, escreve o nosso filósofo: “Até aqui, nós não apenas percorremos o território do intelecto puro, examinando cuidadosamente cada uma de suas partes, mas também o medimos e atribuímos a cada coisa o seu lugar nesse território. Mas essa terra é uma ilha, encerrada pela própria natureza dentro de limites imutáveis. É a terra da verdade (nome enganador!), circundada por vasto oceano tempestuoso, precisamente um império da aparência, onde grandes névoas e geleiras, perto de liqüefazerem-se, dão a todo instante a ilusão de novas terras e, enganando incessantemente com vãs esperanças o navegante errante em busca de novas descobertas, atraem-no para aventuras das quais ele não sabe mais escapar, mas que também não consegue nunca resolver. Por isso, antes de nos entregarmos a esse mar, para indagá-lo, seria útil dar uma olhada ao mapa da razão, que queremos abandonar e, antes de mais nada, nos perguntarmos se, de todo modo, não deveríamos estar contentes com aquilo que ele contém ou, ainda, se não deveríamos nos contentar por necessidade, para o caso de não haver em outra parte um terreno sobre o qual pudéssemos construir uma casa, e, em segundo lugar, a que título nós possuímos essa mesma razão e como podemos garanti-la contra toda pretensão adversa."

Deixando de lado a metáfora, o mar é a esfera da "coisa em si" e da metafísica, à qual Kant dedicará a “dialética”, como veremos. E as conclusões são de que nós devemos por necessidade nos contentar com a ilha que habitamos e que não existe em outra parte um terreno sólido para construir uma casa. Esse território é precisamente o território do conhecimento fenomênico, que é o único conhecimento seguro. Com efeito, como mostrou a analítica, o nosso intelecto nunca pode ultrapassar os limites da sensibilidade, por que só da sensibilidade é que ele pode receber o “conteúdo”. A priori, o intelecto nada mais pode fazer do que "antecipar a forma de uma experiência possível em geral". Portanto, por si só, o intelecto não pode determinar e, desse modo, não pode conhecer a priori nenhum objeto: “Em nós, o intelecto e a sensibilidade só podem determinar os objetos em sua união. Se os separamos, temos intuições sem conceitos ou conceitos sem intuições; em ambos os casos, representações que não podem se referir a nenhum objeto determinado." E por esse motivo que, estruturalmente, nós não podemos ir além do fenômeno.

Mas Kant precisa: “Entretanto, em nossa concepção, quando denominamos certos objetos como fenômenos, seres sensíveis (phaenomena), destinguindo o nosso modo de intuí-los de sua natureza em si, já ocorre que, por assim dizer, contrapomos a eles os próprio objetos em sua natureza em si (ainda que nós os intuamos nessa sua natureza) ou até outras coisas possíveis, mas que não são precisamente objetos dos nossos sentidos, como objetos pensados simplesmente pelo intelecto, chamando-os então de seres inteligíveis (noumena)".

Mas o númeno pode ser entendido de dois modos: 1) em sentido negativo e 2) em sentido positivo. 1) Em sentido negativo, o númeno é a coisa como ela é em si, abstraindo-a do nosso modo de intuí-la, ou seja, a coisas como ela pode ser pensada sem a relação com o nosso modo de intuí-la. 2) Em sentido positivo, ao contrário, númeno seria o objeto de uma “intuição intelectiva”. Assim, nós só podemos pensar nos númenos no primeiro sentido. E é precisamente nesse sentido que Kant diz que a sua teoria da sensibilidade é "ao mesmo tempo uma teoria dos númenos em sentido negativo". Isso significa que, no momento mesmo em que se afirma que a intuição sensível do homem é fenomenizante, admite-se um substrato metafenomênico, ou seja, numênico.

Nós não podemos conhecer positivamente o númeno porque a intuição intelectual “está absolutamente fora da nossa faculdade cognoscitiva". A intuição intelectual é própria somente de intelecto superior ao humano, como já destacamos várias vezes.

O conceito de númeno é "conceito problemático” no sentido de que é conceito que não contém contradição e que, portanto, como tal, nós podemos pensá-lo, mas não conhecê-lo efetivamente. Diz também o nosso filósofo que o númeno é um “conceito-limite”, que serve para circunscrever as pretensões da sensibilidade.

Escreve Kant em uma passagem muito importante: “O conceito de númeno, isto é, de uma coisa que deve ser pensada não como objeto dos sentidos, mas como coisa em si (e unicamente pelo intelecto puro), não é em absoluto contraditório, já que não se pode afirmar que a sensibilidade seja o único modo possível de intuição. Aliás, esse conceito é necessário para que a intuição sensível não seja estendida até às coisas em si, limitando assim a validade objetiva do conhecimento sensível (já que as coisas restantes, que ela não alcança, precisamente por isso chamam-se númenos, para indicar assim que tal conhecimento não pode estender o seu
domínio também àquilo que o intelecto pensa).

“Mas, por fim, não é possível se dar conta nem mesmo da possibilidade de tais númenos: para nós, o território para além da esfera dos fenômenos está vazio. Ou seja, nós temos um intelecto que se estende ao além problematicamente, mas não uma intuição e nem mesmo o conceito de intuição possível, onde possam ser dados objetos fora do campo da sensibilidade e além do qual o intelecto possa ser usado de modo assertiva. O conceito de númeno, portanto, é apenas um conceito-limite (Grenzbegriff), para circunscrever as pretensões da sensibilidade, sendo portanto, de uso puramente negativo. Entretanto, ele não é forjado arbitrariamente, embora se vincule com a limitação da sensibilidade, sem por isso deixar de propor algo de positivo fora do seu domínio."

Por fim, Kant reafirma: "Tomado só problematicamente, apesar disso, o conceito de númeno permanece não apenas admissível, mas também inevitável, como conceito que limita a sensibilidade.”

Fizemos abundantes citações de textos precisamente porque da compreensão desse conceito de númeno é que depende a compreensão, não apenas de todo o restante da doutrina kantiana, mas também da densa discussão que levará do kantismo ao idealismo e, por fim, do próprio idealismo.

Mas vejamos agora, segundo Kant, o que acontece quando nos aventuramos pelo mar do númeno, abandonando a segura ilha do fenômeno.

2.7. A dialética transcendental

2.7.1. A concepção kantiana da dialética

A palavra “dialética” foi cunhada pelos pensadores antigos, tendo assumido vários significados, tanto positivos como negativos. Como veremos oportunamente, Hegel exaltou o significado positivo do termo. Já Kant, predominantemente, se atém ao aspecto negativo. Como se trata de um termo do qual a filosofia moderna e a filosofia contemporânea, depois de Kant, farão um verdadeiro abuso, é necessário precisar e explicitar algumas coisas a seu respeito.

Eis como Kant propõe a questão: “Por mais variado que tenha sido o significado em que os antigos usaram essa denominação de uma ciência ou arte, pode-se no entanto deduzir com certeza, pelo uso que de fato dela fizeram, que, para eles, a dialética nada mais era do que a lógica da aparência. Trata-se de uma arte sofística de dar à própria ignorância, ou melhor, às próprias ilusões voluntárias, as tintas da verdade, imitando o método de pensar fundamentado prescrito pela lógica geral e servindo-se da tópica para colorir todo modo de proceder vazio.”

Entretanto, quando fala de "dialética transcendental”, Kant usa o termo, embora mantendo a conotação “negativa” que vimos, num sentido próprio e novo, ligado à sua “revolução copernicana”, e não simplesmente no sentido sofistico-erístico que é dado na passagem que vimos. Na analítica, vimos que o homem possui formas ou conceitos puros do intelecto que precedem a experiência, mas que, no entanto, valem somente se considerados como condições da experiência real ou, de qualquer modo, possível, mas que, por si sós, permanecem vazios. Portanto, nós não podemos ir além da experiência possível.

Quando a razão tenta fazê-lo, cai inexoravelmente em uma série de erros e em uma série de ilusões, que não são casuais, mas necessários. Esse tipo de erros em que a razão cai quando vai além da experiência não são ilusões voluntárias, mas sim ilusões involuntárias - e, portanto, ilusões estruturais. Por isso, a dialética funciona como crítica a essas ilusões, como Kant escreve expressamente nesta passagem: “Chama-se dialética transcendental não como uma arte de suscitar dogmaticamente tal aparência (arte, infelizmente corrente, de diversos logros metafísicos), mas como crítica do intelecto e da razão em relação ao seu uso hiperfísico, a fim de desvelar a aparência falaz de suas infundadas presunções e reduzir as suas pretensões de descobertas e ampliação de conhecimentos, que ele se ilude de obter graças aos princípios transcendentais, ao simples julgamento do intelecto puro e à sua preservação das ilusões sofísticas."

Mas não é só isso. Mesmo já tendo sido bem denunciada, a ilusão permanece, precisamente porque se trata de uma ilusão natural. Nós podemos nos defender dela, mas não podemos afastá-la. Uma vez desmascarados, os sofismas erístico-dialéticos e as aparências sofístico-dialéticas são eliminadas e afastadas, mas as ilusões e aparências transcendentais permanecem.

Eis as afirmações que Kant faz a esse respeito e que são importantíssimas: “A dialética transcendental, portanto, cuidará de descobrir a aparência dos juízos transcendentais e, ao mesmo tempo, prevenir que ela nos faça cair em engano, mas jamais poderá conseguir que essa aparência também se desfaça (como a aparência lógica) e deixe de ser uma aparência. E isso porque estamos diante de uma ilusão natural e inevitável, que se funda ela própria em princípios, subjetivos, que troca pelos objetivos, onde a dialética lógica, na resolução dos paralogismos, defronta-se apenas com um erro no desenvolvimento dos princípios ou com uma aparência artificial em sua imitação. Existe portanto uma dialética natural e necessária da razão pura, não uma dialética em que se envolva, por exemplo, um embusteiro que careça de conhecimentos ou que um sofista qualquer cogite como arte para enganar as pessoas racionais, mas sim a dialética que está indissoluvelmente ligada à razão humana e que, mesmo depois de termos descoberto a sua ilusão, não deixará, porém, de atraí-la e arrastá-la para erros momentâneos, que terão sempre a necessidade de serem eliminados.”

Em conclusão, podemos resumir o pensamento de Kant sobre essa questão nos seguintes pontos: 1) O pensamento humano, do ponto de vista cognoscitivo, limita-se ao horizonte da experiência. 2) Entretanto, a sua tendência a ir além da experiência, é natural e irrefreável, visto que corresponde a uma precisa necessidade do espírito e a uma exigência que faz parte da própria natureza do homem enquanto homem. 3) Mas, tão logo se aventura fora dos horizontes da experiência possível, o espírito humano cai fatalmente em erro. (Ocorre como no caso da pomba que crê poder voar mais rápido fora da atmosfera, quando, na verdade, o ar sobre o qual a asa faz pressão não é um obstáculo, mas uma condição para poder voar). 4) Essas ilusões e esses erros em que cai o espírito humano quando vai além da experiência têm uma “lógica precisa" (são aquele tipo de erros que não podem não ser cometidos). 5) A última parte da Crítica da razão pura estuda exatamente quais e quantos são esses erros e as razões pelas quais são cometidos, a fim de disciplinar a razão nos seus excessos. 6) Kant chamou de “dialética” tanto esses erros e essas ilusões da razão quanto o estudo crítico desses erros, como veremos agora.

2.7.2. As faculdades da razão em sentido específico e as Idéias da razão no sentido kantiano

A estética transcendental estuda a sensibilidade e suas leis; a analítica transcendental estuda o intelecto e suas leis; a dialética transcendental estuda a “razão" e suas estruturas. Ora, em Kant, a razão tem a) um significado geral, que é o que indica a faculdade cognoscitiva em geral, e b) um significado específico e técnico, que é o estudado precisamente na dialética, destinado a ter grande relevo, com as devidas modificações, na época do romantismo. Mas o que é a “razão” nesse sentido específico?

O intelecto pode fazer uso dos seus conceitos puros (ou categorias) aplicando-os aos dados da sensibilidade ou mantendo-se no horizonte da experiência possível, mas também pode ir além do horizonte da experiência real ou possível. Ora, para Kant, a “razão" é o intelecto quando vai além do horizonte da experiência possível.

Esse “ir além da experiência possível” não é uma curiosidade vazia, nem algo ilícito, mas sim, pelas razões que explicamos, algo de estrutural e irrefreável. Portanto, o espírito humano não pode deixar de ir além da experiência, porque isso constitui uma necessidade estrutural. Por isso, Kant também define a “razão” como “faculdade do incondicionado”, ou seja, como a faculdade que, sem cessar, impele o homem para além do finito, buscando os fundamentos supremos e últimos. Em suma, a razão é a faculdade da metafísica, que, porém, como logo veremos, está destinada a permanecer como pura exigência do absoluto, sendo no entanto incapaz de atingir cognoscitivamente esse absoluto.

Essa distinção entre “intelecto” (Verstand) e “razão" (Vernunft) forneceria aos românticos (contra as intenções de Kant) a alma principal para dissolver o iluminismo e construir uma nova metafísica. Hegel, o mais audaz metafísico da Razão, escreveu: “Somente Kant evidenciou de modo preciso a distinção entre intelecto e razão, estabelecendo que o intelecto tem como objeto o finito e o condicionado, ao passo que a razão tem por objeto o infinito e o incondicionado." Aliás, Hegel censura Kant por não ter sabido explorar essa sua conquista. Para nós, aqui, basta fixar bem este conceito: “intelecto" e “razão”, com Kant, tornam-se dois modos de abordagem da realidade bem diversos, o primeiro limitado ao horizonte da experiência e, portanto, do finito, ao passo que o segundo voltado para além da experiência e do finito e, portanto, direcionado para o infinito.

Como já vimos, o intelecto é faculdade de julgar e, para Kant, pensar é substancialmente julgar. Por isso, ele chega até a achar que pode deduzir da tábua dos “juízos” a tábua dos conceitos puros do intelecto ou “categorias”. Já a “razão" é a faculdade de silogizar. Ora, enquanto o juízo (sintético) contém sempre um elemento fornecido pela intuição, o silogismo, ao contrário, opera com conceitos e juízos puros, não com intuições, deduzindo imediatamente conclusões particulares a partir de princípios supremos e incondicionados.

E, assim como deduziu da tábua dos juízos a tábua dos conceitos puros do intelecto, analogamente, Kant agora deduz da tábua dos silogismos a tábua dos conceitos puros da razão, que ele chama de “Idéias” em sentido técnico, retomando esse termo nada menos do que do fundador da metafísica, isto é, de Platão.

Na realidade, assumido no contexto kantiano, o termo “Idéia" muda de significado e de dimensão, como logo veremos. Mas a redução do número das Idéias já é muito indicativa. São três os tipos de silogismo: a) categórico, b) hipotético, c) disjuntivo. Conseqüentemente, três serão as Idéias: a) Idéia psicológica (alma), b) Idéia cosmológica (Idéia de mundo como unidade metafísica), c) Idéia teológica (Deus). Formalmente, Kant diz ter deduzido as três Idéias dos três tipos de silogismo; de fato, porém, as três Idéias nada mais são do que o objeto específico das três partes tradicionais da metafísica, particularmente da metafísica Wolffiana.

Mas gostaríamos de precisar algumas coisas sobre esse termo “Idéia", que Kant queria retomar no sentido platônico originário, com oportunas melhorias, inserindo-o no quadro da
filosofia transcendental. Kant não havia lido diretamente Platão (os diálogos platônicos seriam relançados nos primeiros lustros do século XIX por Schleiermacher), como se depreende do fato de que ele entende as Idéias, que são paradigmas absolutos, como “emanações da razão suprema" (enquanto, em Platão, elas não são de modo algum emanações da razão, mas sim se colocam acima da própria razão; cf. Vol. I, pp 137-38); mas, mesmo através de conhecimento indireto, ele havia compreendido que, melhor do que qualquer outra figura teórica, as Idéias expressavam o objeto supremo da transcendência metafísica. E, como, para Kant, a metafísica não é ciência (como veremos melhor mais adiante), mas pura exigência da razão, assim as Idéias tornam-se os supremos conceitos da razão, no sentido de supremas “formas” ou exigências estruturais da razão.

Portanto, a sensibilidade tem duas formas ou estruturas a priori, que são o “espaço” e o “tempo"; o intelecto tem doze, que são as "categorias”; a razão tem três, que são precisamente as “Idéias”.

Eis as passagens de Kant mais claras e significativas a esse respeito: "Um conceito derivado de noções, que ultrapassa a possibilidade da experiência, é a idéia ou conceito racional. Quem se habituou com essa distinção deve achar intolerável ouvir chamar de 'idéia' a representação da cor vermelha. Ela não pode ser chamada sequer de noção (conceito inteetual).”

"... Entendo por 'idéia' um conceito necessário da razão, para o qual não é dado encontrar objeto adequado nos sentidos. Os nossos conceitos puros racionais agora examinados são portanto idéias transcendentais. Eles são conceitos da razão; com efeito, consideram todo conhecimento experimental como determinado por uma totalidade absoluta de condições. Não são cogitados arbitrariamente, mas dados pela natureza da própria razão, referindo-se portanto necessariamente ao inteiro uso do intelecto. Por fim, são transcendentes e ultrapassam os limites de toda experiência, no qual, por isso, não pode se apresentar um objeto que seja adequado à idéia transcendental. Quando se fala em idéia, se diz muito quanto ao objeto (como objeto do intelecto puro), mas muito pouco quanto ao sujeito (isto é, em relação à sua realidade sob uma condição empírica), precisamente porque, como conceito do maximum, ela não pode nunca ser dada em concreto de modo adequado.”

“Ora, embora devamos dizer dos conceitos transcendentais da razão que nada mais são do que idéias, entretanto não devemos de modo algum considerá-los supérfluos e nulos. Com efeito, se por meio deles nenhum objeto pode ser determinado, nem por isso eles não deixam de poder, no fundo e quase que ocultamente, servir de cânon para o intelecto no estender e tornar coerente o seu uso; é claro que ele não conhece nenhum objeto mais do que o conheceria com os seus conceitos, mas é mais bem direcionado e mais além nesse mesmo conhecimento. Isso para não falar que, provavelmente, eles podem nos tornar possível uma passagem dos conceitos da natureza aos conceitos morais, propiciando desse modo às próprias idéias morais uma espécie de sustentação e um nexo com os conhecimentos especulativos da razão. Deve-se esperar a explicação de tudo isso no que segue”.

2.7.3. A psicologia racional e os paralogismos da razão

A primeira das três Idéias da razão (ou seja, o primeiro "incondicionado”) é a da alma. A psicologia racional visaria então a encontrar aquele princípio incondicionado (metempírico e transcendente), um Sujeito absoluto do qual derivariam todos os fenômenos psíquicos internos. Mas a “ilusão transcendental” em que cai a razão, ou seja, os “erros transcendentais” que ela comete tentando construir tal pretensa ciência, constituem “paralogismos”. Eles são “silogismos defeituosos”, ou seja, silogismos cujo termo médio (cf. Vol. I, pp. 214 ss) é usado subrepticiamente em dois significados diferentes (trata-se daquele erro que a lógica tradicional chama de quaternio terminorum: com efeito, o silogismo tem três termos, mas se um deles - o médio - é subrepticiamente entendido nas duas premissas de modo diverso, então se duplica, ocorrendo quatro termos em vez de três).

Na psicologia racional, segundo Kant, esse paralogismo consiste no fato de que se parte do “Eu penso" e da “Autoconsciência", “ou seja, da unidade sintética da apercepção, transformando-se em unidade ontológica substancial. Mas é evidente que a substância, que é uma categoria, pode se aplicar aos dados da intuição, mas não ao Eu penso, que é pura atividade formal, da qual dependem as próprias categorias, sendo sujeito e não objeto das categorias.

Escreve Kant: “De tudo isso, pode-se ver que um simples equívoco dá origem à psicologia racional. A unidade da consciência, que está na base das categorias, é tomada aqui por intuição do sujeito tomado como objeto, aplicando-se-lhe a categoria de substância. Mas ela nada mais é que unidade no pensamento, por cujo meio não é dado nenhum objeto e à qual, por isso, não se pode aplicar a categoria de substância, como aquela que supõe sempre dada intuição; porém, esse sujeito não pode absolutamente ser concreto. O sujeito das categorias, portanto, pelo fato de as pensar, não pode alcançar um conceito de si mesmo como objeto das categorias, porque, para pensá-las, deve pôr como fundamento a sua autoconsciência pura, que, no entanto, deveria ser explicada.”

Em suma, nós temos consciência de nós mesmos como seres pensantes (o “Eu penso" me dá somente a consciência do pensamento), mas não conhecemos o substrato numênico do nosso eu.

Nós “nos conhecemos” somente como fenômenos (espacialmente e temporalmente determinados e, depois, determinados segundo as categorias), mas se nos escapa aquele “substrato ontológico" que constitui cada um de nós (a alma, ou seja, o eu metafísico). E, quando queremos ultrapassar esses limites, caímos necessariamente naqueles erros (paralogismos) que descrevemos.

2.7.4. A cosmologia racional e as antinomias da razão

A segunda Idéia da razão (o segundo "incondicionado") é a do "mundo”, entendido não só como conjunto de fenômenos regulados por leis, mas como totalidade ontológica vista em suas causas numênicas últimas, ou seja, como um “todo metafísico”.

Ora as ilusões transcendentais em que cai a razão a esse respeito e os erros estruturais que comete quando quer passar da consideração fenomênica do mundo à consideração numênica e descobrir a unidade incondicionada de todos os fenômenos dão lugar a uma série de “antinomias” em cujas “teses” e “antíteses” se anulam reciprocamente. E, no entanto, tanto uma como a outra são defensáveis ao nível da pura razão e, ademais, nem uma nem a outra podem ser confirmadas ou desmentidas pela experiência.

O termo “antinomia”, literalmente, significa “conflito de leis". Kant o usa no sentido de "contradição estrutural” e, como tal, insolúvel. E exatamente esse caráter de insolubilidade estrutural que mostra a ilusão transcendental da cosmologia. (A contradição não diz respeito ao objeto como tal, mas somente à razão que quer conhecê-lo sem ter os instrumentos cognoscitivos necessários.)

A “Cosmologia” racional tem como que quatro faces, ou melhor, considera o absoluto cosmológico sob quatro aspectos (que, segundo Kant, correspondem aos quatro grupos das categorias: quantidade, qualidade, relação e modalidade), de onde derivam os quatro problemas seguintes: 1) O mundo deve ser pensado metafisicamente como finito ou ínfinito? 2) Decompõe-se em partes simples e indivisíveis ou não? 3) As suas causas últimas são todas de tipo mecanicista e, portanto, necessárias, ou existem nele também causas livres? 4) O mundo supõe uma causa última incondicionada e absolutamente necessária ou não?

As respostas a esses quatro problemas são precisamente as antinomias de que falamos, ou seja, quatro respostas afirmativas (teses) e quatro negativas (antíteses) que se anulam recíprocamente, como mostra o seguinte quadro sinótico:

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Essas antinomias são estruturais e insolúveis, porque, quando a razão ultrapassa os limites da experiência, não pode deixar de pender e oscilar de um oposto a outro. Fora da experiência, os conceitos trabalham no vazio.

Kant faz uma série de observações muito interessantes a esse propósito, das quais recordamos as mais importantes. As primeiras duas antinomias são chamadas "matemáticas", porque dizem respeito à totalidade cosmológica do ponto de vista quantitativo e qualitativo; a terceira e a quarta são chamadas “dinâmicas” porque implicam o movimento lógico de remontar, de condição em condição, até termo último incondicionado. Ademais, Kant observa que as posições expressas nas quatro teses são as posições típicas do racionalismo dogmática, ao passo
que as posições expressas nas quatro antíteses são as típicas do empirismo.

Consideradas em si mesmas, as teses têm uma vantagem prática (porque beneficiam a ética e a religião), são mais "populares" (enquanto refletem as convicções da maioria) e revestem-se de maior interesse especulativo (porque satisfazem mais as evidências da razão). Já as antíteses estão em sintonia com a atitude e o espírito científico.

Mas a verdade, segundo Kant, é que as duas facções se defrontam com razões iguais, mas que, na realidade, o conflito carece de validade efetiva porque a ilusão transcendental (nascida do fato de que foi além do fenômeno) faz as duas partes acreditarem na realidade de objetos que, ao contrário, não têm nenhuma realidade. Por isso, Kant escreve: "A antinomia da razão pura em suas idéias cosmológicas é superada demonstrando que ela é meramente dialética, constituindo o conflito de uma aparência que nasce de se aplicar a idéia da totalidade absoluta, que só tem valor
como condição das coisas em si, aos fenômenos, que, ao contrário, só existem na representação e, se constituem uma série, existem somente no regresso sucessivo, não de outra forma.”

Mas nem por isso Kant deixa de observar o seguinte: quando se referem ao mundo fenomênico, as teses e antíteses das antinomias matemáticas são ambas falsas (porque o mundo fenomênico não é finito nem infinito, mas se constitui através de séries de fenômenos que progridem infinitamente). Já as teses e antíteses das antinomias dinâmicas podem ser ambas verdadeiras: as teses, quando referidas à esfera do númeno; as antíteses, quando referidas à esfera do fenômeno. Mas somente mais adiante é que ficará claro o significado desse reconhecimento.


2.7.5. A teologia racional e as provas tradicionais da existência de Deus

A terceira Idéia da razão é Deus (a Idéia de um incondicionado supremo, de um absolutamente incondicionado e condição de todas as coisas). Neste caso, diz Kant, mais do que de uma Idéia, trata-se de um “Ideal", aliás, o Ideal por excelência da razão. Mas, escreve Kant, “ele é também o único ideal verdadeiro de que a razão humana é capaz, já que somente nele é conhecido um conceito em si mesmo universal de uma coisa, completamente determinado por si mesmo e como representação de um indivíduo. Deus é "ideal" porque é modelo de todas as coisas, que, na qualidade de cópias, ficam infinitamente distantes dele, como aquilo que é derivado fica longe daquilo que é originário: Deus é o ser do qual dependem todos os seres, é a perfeição absoluta.

Mas essa Idéia ou Ideal que formamos com a razão nos deixa “na total ignorância sobre a existência de um ser de tão excepcional proeminência”. Daí as “provas” ou “caminhos” para provar a existência de Deus que a metafísica elaborou desde a antiguidade. Segundo Kant, esses caminhos são apenas três.
1) A prova ontológica a priori, que parte do puro conceito de Deus como absoluta perfeição para deduzir a Sua existência. Essa é a célebre prova formulada pela primeira vez por santo Anselmo e retomada nos tempos modemos por Descartes e Leibniz.

2) A prova cosmológica, que parte da experiência e infere Deus como causa. Kant a resume assim: “Se existe algo, deve existir um Ser absolutamente necessário. Ora, eu mesmo, pelo menos, existo; portanto, existe um Ser absolutamente necessário. A menor contém uma experiência, a maior contém uma ilação de uma experiência em geral à existência do necessário. Portanto, a prova parte propriamente da experiência; assim, não é conduzida inteiramente a priori ou ontologicamente; e, como o objeto de toda experiência possível é o mundo, então essa prova é chamada de cosmológica”.

3) A terceira prova é a físico-teológica (mas seria melhor chamá-la físico-teleológica), que, partindo da variedade, da ordem, da finalidade e da beleza do mundo, remonta a Deus, considerado como Ser último e supremo, acima de toda possível perfeição e considerado como causa.

1) Ora, Kant observa que o argumento ontológico cai no erro (na ilusão transcendental) de trocar o predicado lógico pelo real. O conceito de ente perfeitíssimo não só é alcançado pela razão, mas é necessário à razão. Entretanto, não se pode extrair a existência real de tal conceito ou Idéia, porque a proposição que afirma a existência de uma coisa não é analítica, mas sintética. A existência de uma coisa não é um conceito que se acrescenta ao conceito daquela coisa, mas sim a posição real da coisa. Ora, a existência dos objetos que pertencem à esfera do sensível nos é dada pela experiência, “mas, no caso dos objetos do pensamento puro', não há absolutamente meio de conhecer a sua existência, já que eles deveriam ser conhecidos inteiramente a priori”; mas, para tanto, deveríamos ter uma “intuição intelectual”, que não temos.

2) Na prova cosmológica, Kant encontra verdadeiro viveiro de erros (erros transcendentais, isto é, erros em que se incorre necessariamente, quando se toma esse caminho). Destaquemos os dois principais. Em primeiro lugar, o princípio que leva a inferir do contingente uma sua causa “Só tem significado no mundo sensível, mas fora dele não tem nenhum sentido”, porque o princípio de causa-efeito em que se baseia a experiência só pode dar lugar a uma proposição sintética no âmbito da experiência (a inferência de uma coisa não contingente representa portanto uma aplicação da categoria fora do seu correto âmbito). Mas, sobretudo, Kant destaca “que a prova cosmológica, no fim das contas, repropõe o argumento ontológico camuflado: com efeito, uma vez que se chega ao Ser necessário como condição do contingente, fica por provar precisamente aquilo de que se tratava, ou seja, a sua existência real, que, como sabemos, não pode ser extraída analiticamente, porque a existência é uma posição e o juízo de existência (como dissemos) é sintético a priori, o que significa que, para captar a existência de Deus, devemos intuí-la intelectualmente.

3) Raciocínio análogo vale também contra a prova físico-teleológica (pela qual, aliás, Kant nutre grande simpatia). Diz Kant que ela “poderia quando muito demonstrar um arquiteto do mundo, que seria sempre muito limitado pela capacidade da matéria por ele elaborada, mas não um criador do mundo, a cuja idéia tudo se submete”. Para demonstrá-lo, a prova físico-teleológica “pula para a prova cosmológica”, que, como se disse, por seu turno, “nada mais é do que uma prova ontológica mascarada".

2.7.6. O uso normativo das Idéias da razão

Assim, as conclusões são as seguintes: é impossível ,uma metafísica como ciência, porque a síntese a priori metafísica suporia um intelecto intuitivo, isto é, diferente do intelecto humano. A dialética mostra as ilusões e os erros em que a razão cai quando pretende fazer metafísica.

Neste ponto, cabe a pergunta: e as Idéias enquanto tais (Idéia de alma, Idéia de mundo, Idéia de Deus) têm algum valor ou serão elas próprias ilusões transcendentais e dialéticas? Kant responde de modo absoluto e categórico que elas não são ilusões. Somente por equívoco elas se tornam "dialéticas”, ou seja, quando são mal entendidas, vale dizer, quando são confundidas com princípios constitutivos de conhecimentos transcendentes, como ocorreu precisamente na metafísica tradicional.

Então, pode-se dizer que as Idéias não têm uso constitutivo (como o têm as categorias). Somente sendo usadas em sentido constitutivo (como se determinassem objetos de conhecimento) é que elas produzem “aparências” que são esplêndidas, mas enganosas. Mas isso não é uso e sim abuso das Idéias, diz Kant.

Que abuso é esse já foi visto nas páginas anteriores. Fica por ser visto qual seja o reto uso, dado que, como dissemos, para Kant, enquanto estruturas da razão, as Idéias não podem ser, como tais, enganos e ilusões. Em outras palavras, o nosso filósofo quer justificar as próprias Idéias (dar uma “dedução transcendental") do ponto de vista crítico.

A resposta de Kant é a seguinte: as Idéias têm uso “normativo”, isto é, valem como “esquemas” para ordenar a experiência e para dar-lhe a maior unidade possível e valem como regras” para
organizar os fenômenos de maneira orgânica a) “como se” (als ob) todos os fenômenos relativos ao homem dependessem de princípio único (a alma), b) “como se” todos os fenômenos da natureza dependessem unitariamente de princípios inteligíveis e c) “como se” a totalidade das coisas dependesse de inteligência suprema.

Eis a célebre passagem de Kant, em que o uso “normativo” e “esquemático” das Idéias e o conceito de “como se” são explicados perfeitamente: “1) Antes de mais nada, em conseqüência dessas Idéias como princípios, devemos conectar (na psicologia) todos os fenômenos, operações e receptividades de nossa alma ao fio condutor da experiência interna, 'como se' ela fosse substância simples, que existisse (pelo menos na vida) constantemente com identidade pessoal, ao passo que os seus estados, aos quais os estados do corpo se referem só como condições externas, mudam continuamente. 2) Em segundo lugar (na cosmologia), em uma pesquisa que não poderá se realizar nunca, nós devemos perseguir a série de condições dos fenômenos naturais, tanto internos como externos, 'como se', em si, ela fosse infinita e sem termo primeiro e supremo,embora nem por isso nós neguemos, fora de todos os fenômenos, os seus primeiros princípios, puramente inteligíveis, mas também não podemos colocá-los na cadeia das explicações naturais, já que precisamente não os conhecemos. 3) Finalmente, em terceiro lugar (em relação à teologia), nós devemos considerar tudo aquilo que, de qualquer forma, pode pertencer à cadeia da experiência possível, 'como se' esta constituísse uma unidade absoluta, mas sempre inteiramente dependente e também sempre condicionada no interior do mundo sensível e ainda 'como se' o conjunto de todos os fenômenos (o próprio mundo sensível) tivesse fora do seu âmbito fundamento único, sumo e onissuficiente, ou seja, uma razão de alguma forma existindo em si mesma, originária e criadora, em relação à qual nós estabelecemos todo uso empírico da nossa razão em sua máxima extensão, 'como se' os objetos derivassem daquele protótipo de razão. Isso significa que deveis derivar os fenômenos internos à alma não de uma substância simples pensante, mas uns dos outros, segundo a Idéia de um ser simples; não deveis extrair a ordem e a unidade sistemática do mundo de uma Inteligência suprema, mas sim extrair a regra da Idéia de uma causa sumamente sábia, regra à qual a razão deve se ater na conexão das causas e dos efeitos no mundo, para a sua própria satisfação".

As Idéias, portanto, valem como princípios heurísticos: elas não ampliam o nosso conhecimento dos fenômenos, mas apenas unificam o conhecimento, regulando-o de modo constitutivo. Tal unidade é a unidade do sistema, uma unidade que serve para promover e fortalecer o intelecto, bem como para estimular a busca ao infinito. Esse, precisamente, é o uso positivo da razão e das suas Idéias.

A Crítica da razão pura, portanto, conclui reafirmando o princípio de que os limites da experiência possível são intransponíveis, do ponto de vista científico. Mas, ao mesmo tempo, evidencia bem a não-contraditoriedade do númeno e, portanto, a sua “pensabilidade” e a sua "possibilidade", quando não a sua “cognoscibilidade”.

Não haverá, então, outro caminho de acesso ao númeno que não seja o caminho da própria ciência? Segundo Kant, esse caminho existe: é o caminho da ética, de que devemos tratar agora. E a razão e suas Idéias, de que acabamos de falar, oferecem a passagem natural do âmbito teórico para o campo prático.

3. A Crítica da razão prática e a ética de Kant

3.1. O conceito de "razão prática" e os objetivos da nova Crítica

A razão humana não é somente "razão teórica", ou seja, capaz de conhecer, mas também é “razão prática", ou seja, razão capaz de determinar também a vontade e a ação moral.

E desse importantíssimo aspecto da razão humana, precisamente, que trata a Crítica da razão prática. O objetivo dessa nova obra, porém, não é o de "criticar" a razão pura prática do mesmo modo que a obra anterior “criticou" a razão pura teórica (recorde-se que Kant chama de "pura" a razão considerada como não misturada a nada de empírico e, portanto, capaz de operar sozinha
e, por conseguinte, a priori). Com efeito, no caso da razão teórica foi necessária uma crítica da razão teórica “pura”, posto que esta, como se viu, tende a exorbitar além dos limites da experiência e além do lícito (com as conseqüências que vimos na dialética transcendental). Já a razão prática não corre esse risco, dado que ela tem como objetivo determinar a vontade (ou seja, mover a vontade) e, portanto, possui sem dúvida uma realidade objetiva (precisamente a determinação ou a moção da vontade).

Assim, basta provar que existe uma “razão pura prática” que por si só (sem misturar-se a motivos dependentes dos impulsos e da sensibilidade, ou seja, da experiência) pode mover e determinar a vontade para eliminar todo problema ulterior acerca da sua legitimidade e das suas pretensões. Pelo contrário, desta vez, o que será criticado não será a “razão pura prática”, mas a razão “prática em geral", especialmente a razão prática empiricamente condicionada, que pretenderia por_si só determinar a vontade.

Em suma, a situação da Crítica da razão prática apresenta-se exatamente oposta à da Crítica da razão pura: na “razão prática”, as pretensões de ir além dos próprios limites legítimos são as da razão prática empírica (ligada à experiência), que gostaria por si só de determinar a vontade; já na “razão teórica" as pretensões da razão, ao contrário, eram de prescindir da experiência e alcançar por si só o objeto (sem a experiência). Ou seja, enquanto na Crítica da razão pura Kant critica as pretensões da razão teórica (que representam um excesso) de transcender a experiência, já na Crítica da razão prática ele critica as pretensões opostas da razão prática (que representam um defeito) de permanecer sempre e só ligada à experiência. Por isso, o título é “Crítica da razão prática e não “Crítica da razão pura prática”.

Agora, estamos em condições de compreender esta passagem programática de Kant, absolutamente fundamental: “Nós não devemos elaborar uma crítica da razão pura prática, mas somente da razão prática em geral. Com efeito, aqui (ou seja, em termos de prática), a razão pura, desde que se mostre que existe, não requer nenhuma crítica. Ao contrário, ela própria contém o critério para a crítica de todo o seu próprio uso. Portanto, em geral, a crítica da razão prática tem a obrigação de afastar a razão empiricamente condicionada da pretensão de fornecer, por si só, o fundamento exclusivo de determinação da vontade. Aqui (na prática), apurado que exista, o uso da razão pura é só imanente (entenda-se: não exorbita de seus âmbitos); ao contrário, o empiricamente condicionado que se arrogue a exclusividade (de valer sozinho) é transcendente (entenda-se: transcendente aos seus limites, exorbitando dos seus lícitos âmbitos) e se manifesta em presunções e ordens que ultrapassam inteiramente os limites do seu território.
Temos, assim, uma relação exatamente inversa à que se encontrou no uso especulativo da razão pura".

Insistimos um pouco nesse ponto porque ele é condição para a compreensão de tudo o que vem a seguir. Na Crítica da razão pura, Kant está preocupado em limitar a razão cognoscitiva à esfera da experiência, ao passo que na Crítica da razão prática (e o mesmo veremos na Crítica do juízo) está preocupado com o contrário. Consequentemente, aquela esfera numênica que era teoricamente inacessível torna-se agora "praticamente" acessível. O ser humano, sendo dotado de vontade pura, se revelará ser causa numênica. O imperativo moral (de que falaremos logo) se revelará uma "síntese a priori", não baseada na intuição sensível nem na experiência (e, portanto, de tipo numênico), com conseqüências de enorme importância, que ilustraremos pouco a pouco.

3.2. A lei moral ”como imperativo categórico”

Portanto, trata-se de mostrar que existe uma razão pura prática, ou seja, que a razão é suficiente por si só (= como pura razão, sem o auxílio de impulsos sensíveis) para mover a vontade. Aliás, diz Kant, somente nesse caso podem existir princípios morais válidos sem exceção para todos os homens, ou seja, leis morais que tenham valor universal.

Mas, para se compreender adequadamente o pensamento moral de Kant, será bom precisar algumas distinções sutis, mas importantes das quais ele parte. O filósofo chama de “princípios práticos" as regras gerais, ou seja, as determinações gerais da vontade, sob as quais encontram-se numerosas regras práticas particulares. Por exemplo, um princípio prático é o seguinte; "cuida da tua saúde , entretanto, sob esse princípio encontram-se algumas regras especificas mais particulares, como, por exemplo, as seguintes: “faz esportes”, “alimenta-te adequadamente” “evita o cansaço excessivo” etc.

Os “princípios práticos ” se dividem em dois grandes grupos, que Kant chama, respectivamente, de “máximas” e “imperativos”.

As máximas são princípios práticos que valem somente para os sujeitos que as propõem, mas não para todos os homens, sendo portanto subjetivas. Por exemplo, constitui uma máxima (e, portanto é subjetiva) a afirmação “vinga-te de toda ofensa que receberes", porque só vale para aquele que a propõe e não se impõe e modo algum a outro ser racional (ou então, para dar outro
exemplo, que nos toca muito de perto, para falar com linguagem de hoje, “dá uma de malandro”).

Já os "imperativos", ao contrário, são princípios práticos objetivos, isto é, válidos para todos. Os imperativos são "mandamentos" ou "deveres", ou seja, regras que expressam a necessidade objetiva da ação, o que significa que "se a razão determinasse completamente a vontade, a ação ocorreria inevitavelmente segundo tal regra" (ao passo que, de fato, a intervenção de fatores emocionais e empíricos pode desviar - e, frequentemente desviam - a vontade dessa regra).

Os imperativos, por seu turno, podem ser de dois tipos. a) São "imperativos hipotéticos" quando determinam a vontade só sob a condição de que ela queira alcançar determinados objetivos. Por exemplo: “se quiseres passar de ano, deves estudar", “se quiseres ser campeão, deves treinar”, “se quiseres ter velhice segura, deves economizar” etc. Esses imperativos só valem na condição de que se queira o objetivo para o qual estão voltados, por isso são “hipotéticos" (valem na “hipótese de que” se queira tal fim), mas valem objetivamente para todos aqueles que se propõem aquele fim. O ter ou não ter o desejo de alcançar aquele fim é uma questão remetida ao agente: portanto, a sua “imperatividade”, ou seja, a sua necessidade, é condicionada.

Esses imperativos hipotéticos se configuram a) como “regras de habilidade" quando estão voltados para objetivos precisos, como nos exemplos apresentados, ou então podem ser b) “conselhos de prudência" quando estão voltados para objetivos mais gerais, como, por exemplo, a busca da felicidade (dado que esta é entendida de diversas formas e a consecução dos objetivos a ela ligados depende de numerosas circunstâncias, que freqüentemente não podemos dominar, os imperativos voltados para a busca da felicidade só podem ser “conselhos de prudência”, como, 'por exemplo, "sê cortês com os outros", "procura tornar-te querido" etc...

b) Já quando o imperativo determina a vontade não tendo em vista obter determinado efeito desejado, mas simplesmente como vontade, prescindindo dos efeitos que possa obter, então temos o “imperativo categórico”. O imperativo categórico, portanto, não diz “se quiseres... deves”, mas sim “deves porque deves” ou "deves e pronto”.

Os imperativos categóricos (e somente eles) são “leis práticas” que valem incondicionalmente para o ser racional. Escreve Kant: “Para a legislação da razão (...) se requer que ela não deva pressupor mais nada além de si mesma, porque a regra só é objetiva e universalmente válida quando vale independentemente de todas as condições subjetivas acidentais, que podem se encontrar em um ser racional e não em outro. Suponhamos agora que se diga a alguém que não deve nunca prometer o falso: eis uma regra que concerne exclusivamente à sua vontade. Não importa se os objetivos que essa pessoa possa ter são alcançados desse modo ou não: é o mero querer que é determinado por aquela regra, inteiramente a priori. E, agora, se tal regra se revela praticamente (= moralmente) justa, então ela é lei, porque é imperativo categórico."

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Em conclusão, só os imperativos categóricos são leis morais. Eles são universais e necessários, mas não como o são as leis naturais. Como efeito, enquanto as leis naturais não-podem-deixar-de-se-concretizar, as leis morais podem até não se concretizar, porque a vontade humana está sujeita não só à razão, mas também às inclinações sensíveis, podendo por isso se desviar. E exatamente por essa razão é que as leis morais são chamadas “imperativos” ou “deveres”. Em alemão, o ser necessário em sentido naturalista se diz müssen, ao passo que a necessidade ou dever moral se diz sollen (por exemplo, o “dever” expresso na proposição “todos os homens devem morrer” se expressa com o müssen em alemão, sempre que implica uma necessidade natural, ao passo que o “dever” expresso na proposição “todos os homens devem dar testemunho da verdade”, que não implica uma necessidade natural, se expressa com o sollen).

A necessidade da lei física, portanto, consiste em sua inevitável realização, ao passo que a necessidade da lei moral consiste em valer para todos os seres racionais, sem exceção. Estabelecido assim que a lei moral é um imperativo categórico, ou seja, incondicionado, válido por si mesmo, trata-se então de estabelecer os seguintes pontos básicos: 1) quais são as conotações essenciais desse imperativo, 2) qual é a fórmula que melhor o expressa; 3) qual é o seu fundamento (ou seja, a condição que o torna possível).

É nesses pontos básicos que nos deteremos agora, começando pelo primeiro.

3.3. A essência do imperativo categórico

O imperativo categórico, ou seja, a lei moral não pode consistir em ordenar certas coisas, por mais nobres e elevadas sejam.

Isso significa que a lei moral não depende do conteúdo. Kant chama de “lei material” aquela que depende do conteúdo. E, segundo ele, quando se subordina a lei moral ao conteúdo, cai-se no empirismo e no utilitarismo, porque nesse caso a vontade é determinada pelo conteúdos, conforme agradem ou não.

Então, de que ela depende?

Em uma lei, quando se prescinde do conteúdo, nada mais resta senão a sua “forma". Assim, a essência do imperativo consiste precisamente em sua validade em virtude de sua forma de lei, isto é, por sua “racionalidade .

A lei moral é tal porque me ordena a respeitá-la enquanto lei (“deves porque deves"). E ela é assim porque vale universalmente, sem exceções.

Eis como Kant expressa essa sua concepção fundamental do “formalismo” moral: "Se um ser racional deve pensar suas máximas mas como leis práticas universais, só pode pensar essas máximas como princípios tais que contenham o motivo determinante da vontade, não segundo a matéria, mas unicamente segundo a forma. A matéria de um principio prático é o objeto da verdade. Esta pode ser a razão pela qual a vontade se determina ou pode não sê-lo. Se é o fundamento de determinação da vontade, a regra da vontade é submetida a uma condição empírica (à relação da representação determinante com o sentimento de prazer ou desprazer); Consequentemente, não pode ser uma lei prática. Ora, em uma lei, quando se prescinde de toda matéria, isto é, do objetivo da vontade (enquanto motivo determinante),  nada mais resta senão a simples forma de uma legislação universal. Portanto, um ser racional não pode de modo algum pensar os próprios princípios subjetivamente práticos, isto é, suas próprias máximas, ao mesmo tempo como leis universais, ou então deve admitir que sua simples forma, pela qual elas se adaptam a uma legislação universal, por si só, faça delas leis práticas".

Ao dizer isso Kant nada mais faz do que transferir para a sua própria linguagem filosófica o principio evangélico segundo o qual não é moral aquilo que se faz, mas sim a intenção com que se faz. Aquilo que na moralidade evangélica, é a "boa vontade" como essência da moral, em Kant é adequação da vontade à forma da lei.

V. Mathieu precisou muito bem esse ponto, neste texto que vale a pena transcrever: "A lei moral não pode consistiram ordenar esta eu aquela coisa isto é, não pode dizer respeito (diretamente)
àquilo que Kant chama de 'matéria' da vontade, porque diz respeito à intenção com que a coisa é feita. É o inverso daquilo que acontece com as leis do Estado, que ordenam fazer isto ou aquilo, mas não podem obrigar a que seja feito com determinada intenção; ordenam, por exemplo, que se paguem os impostos e têm meios para obrigar a isso, mas (mesmo que, por vezes, o desejem) não têm meios para fazer com que esses atos sejam cumpridos mais com uma intenção do que com outra (digamos, com a intenção de servir ao Estado ao invés de simplesmente para fugir às sanções etc.). E isso ocorre precisamente porque constituem uma legislação externa. Se a vontade do indivíduo, em si mesma, não concorda com o que elas pedem, só podem ameaçar com certos castigos ou prometer-lhe certos prêmios para obter o que desejam. Nesse caso, porém, a intenção do indivíduo não estará voltada diretamente para aquilo que quer a lei, mas apenas para evitar o castigo e obter o prêmio. E a lei, mesmo que se proponha a isso, não pode transformar essa intenção em outra, porque, novamente, não tem outro meio senão as ameaças ou promessas para se fazer valer. Kant observa que esse é o caso de toda legislação 'heterônoma' (= que vem de fora, como ordem extrínseca); e nem pode ser diferente, desde que a lei diga respeito à coisa que se deve querer e não, como no caso da legislação moral, ao princípio pelo qual se deve querê-la. E isso porque, para fazer querer uma coisa, é preciso usar promessas ou ameaças, ao passo que, para obter certa intenção e, portanto, uma adesão livre da vontade, esse procedimento não pode ser aplicado: precisamente por isso, a adesão obtida não seria livre e, portanto, não seria própria da liberdade do agente. E por isso que Kant afirma que a lei moral só pode ser formal e não “material”. Ele quer dizer que, em última instância, a nossa moralidade não depende das coisas que queremos, mas sim do princípio pelo qual as queremos. O objeto da vontade é moralmente 'bom' quando eu o quero por um princípio bom, mas não é possível dizer o contrário, isto é, que um princípio seja bom quando prescreve um objeto bom. Nesse sentido, Kant diz que o princípio da moralidade não é o conteúdo, mas a forma.”

Podemos resumir da seguinte maneira tudo o que foi dito até aqui: a essência do imperativo categórico não consiste em ordenar aquilo que se deve querer, mas sim como se deve querer aquilo que queremos. Portanto, a moralidade não consiste naquilo que se faz, mas no como se faz aquilo que se faz.

3.4. As fórmulas do imperativo categórico

Sendo assim, o imperativo categórico não pode ser senão um e a sua fórmula mais apropriada a seguinte: "Age de modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre, ao mesmo tempo, como princípio de legislação universal", ou seja, que a tua máxima (subjetiva) se torne lei universal (objetiva).

Essa é a única fórmula que Kant, depois de tê-la apresentado na Fundamentação da metafísica dos costumes, ainda a mantém na Crítica da razão prática. Ela evidencia precisamente a pura
“forma" da lei moral, que é a universalidade (a sua validade sem exceções).

Na Fundamentação, podem-se ler ainda outras duas fórmulas.

Diz a segunda: "Age de modo a considerar a humanidade, seja na tua pessoa, seja na pessoa de qualquer outro, sempre também como objetivo e nunca como simples meio.” Baseada no elevado conceito que coloca o homem não como uma coisa entre outras coisas, mas acima de tudo, essa formulação é omitida na Crítica da razão prática, porque Kant quer levar o seu formalismo às extremas conseqüências, isto é, prescindindo de qualquer conceito de “fim”. Com efeito, essa formulação pressupõe o princípio “a natureza racional existe como fim em si”.

A terceira formulação da Fundamentação diz: “Age de modo que a vontade, com a sua máxima, possa ser considerada como universalmente legisladora em relação a si mesma”.

Essa terceira formulação é muito semelhante à primeira e a diferença está no fato de que, enquanto a primeira destaca a lei, a terceira destaca mais a vontade, como que dizendo que nós não estamos somente submetidos a uma lei, mas que essa lei também é fruto de nossa própria racionalidade e, portanto, depende de nós: somos nós, com a nossa vontade e racionalidade, que damos as leis a nós mesmos.

Essa terceira formulação supõe portanto a “autonomia” da lei moral, da qual falaremos adiante. Na Crítica da razão prática, portanto, Kant também omitiu essa formulação, com o objetivo de
não pressupor tais conceitos, ainda não elucidados, ou seja, para obter o máximo de rigor lógico.

3.5. A liberdade como condição e fundamento da lei moral

O imperativo categórico, portanto, é uma proposição pela qual a vontade é determinada (movida) a priori objetivamente. Isso significa que a razão pura, em si mesma, é “prática", precisamente porque determina a vontade sem que entrem em jogo outros fatores (bastante a pura forma da lei).

A existência da lei moral, ou seja, do imperativo categórico como foi definido acima, não tem necessidade de ser justificada ou provada. Ela se impõe à consciência (diz expressamente Kant)
como “fato da razão” (ein Faktum der Vernunft). E esse "fato" só pode ser explicado admitindo-sese a liberdade. Portanto, a consciência desse fato (lei moral) não deriva de nada anterior, como, por exemplo, da consciência da liberdade, mas sim ao contrário; nós adquirimos consciência da liberdade exatamente porque antes de tudo temos consciência do dever.

Sendo assim, diz Kant, nós nos encontramos diante de fato absolutamente único. O imperativo (a consciência do imperativo), que me ordena querer segundo a pura forma da lei, ordena-me substancialmente à liberdade. Por isso, não se trata de um juízo analítico, mas sintético a priori, porque me diz algo de novo. E me diz algo de novo não em dimensão fenomênica, mas metafenomênica: o dar-se do dever me diz eo ipso que eu sou livre (caso contrário o dever não teria sentido) e, portanto, me diz da dimensão não-fenomênica da liberdade, mesmo sem fazer-se captá-la cognoscitivamente em sua essência.

Vejamos o texto basilar de Kant, difícil, mas de enorme importância, porque ele se revela de tal dimensão a ponto de redimensionar aqueles limites que o próprio Kant havia estabelecido na Crítica da razão pura: “A consciência dessa lei fundamental pode ser chamada fato da razão, não porque possa ser deduzida dos dados racionais anteriores, como, por exemplo, da consciência da liberdade (porque tal consciência não nos é dada antes de mais nada), mas porque se nos impõe por si mesma como uma proposição sintética a priori (considere-se que 'proposição sintética a priori' é precisamente a expressão, em termos de conhecimento, de 'fato' da razão), não fundamentada em nenhuma intuição, nem pura (no sentido de 'sensível puro': Kant alude às formas do espaço e do tempo) nem empírica. Naturalmente, tal proposição seria analítica supondo-se a liberdade do querer, mas, para fazer isso, entendendo-se a liberdade em sentido positivo, seria necessária uma intuição intelectual que não é absolutamente lícito admitir (pelas
razões explicadas na Crítica da razão pura). Entretanto, para poder considerar sem equívocos tal lei como dada, é preciso observar que não se trata de fato empírico, mas sim do único fato da razão pura, que, por meio dele, se anuncia como originariamente legisladora (sic volo, sic jubeo).”

Depois de ter ido até ao ponto de admitir inclusive um caso de juízo sintético a priori não fenomênica, Kant não tirou as devidas conseqüências ao nível metafísico unicamente devido ao arraigado preconceito "cientístico" que o levava a admitir como “conhecimento” pleno jure somente o conhecimento de tipo matemático-geoméaríco e o conhecimento de tipo galileano-newtoniano.

Somente quando se leva isso em conta é que se pode compreender bem por que Kant diz que nós não “conhecemos” (no sentido acima indicado) a liberdade e que, para conhecê-la, devemos ter uma intuição intelectiva (dado que esta não é um fenômeno, mas um númeno), malgrado o fato de apresentar dela uma definição formal precisa.

A liberdade é independência (da vontade) em relação à lei natural dos fenômenos, ou seja, do mecanismo causal. O que equivale ao que se disse sobre o “formalismo”: a liberdade é a característica própria daquela vontade que pode ser determinada pela pura forma da lei, sem necessidade do conteúdo (que é ligado à lei natural do fenômeno). Essa liberdade, que não explica nada no mundo dos fenômenos e que, na dialética da Razão pura, dá lugar a uma antinomia insuperável (cf. p. 90 1), já na esfera moral explica tudo. E é exatamente por isso que nós tomamos consciência dela por via moral. De modo que Kant conclui: “Portanto, ninguém teria jamais ousado introduzir a liberdade na ciência se a lei moral e, com ela, a razão prática, não o houvesse levado a isso, pondo sob seus olhos aquele conceito."

Conclusão: nós conhecemos primeiro a lei moral (o dever) como “fato da razão” e, depois, dela inferimos a liberdade como seu fundamento e como sua condição. Para dar um exemplo particularmente eloqüente, se um tirano, ameaçando-te, te impusesse testemunhar em falso contra um inocente, pode muito bem ocorrer que, por medo, tu cedas e jures em falso; mas, depois, terias remorso. Isso significa que tu compreendes muito bem que “devias” dizer a verdade, mesmo que não o tenhas feito. E, se “devias” dizer a verdade, então também o “podias” (embora tenhas feito o contrário). O remorso significa precisamente que devias e, portanto, podias.

O pensamento kantiano a esse respeito pode, portanto, ser assim resumido: "Deves, portanto podes" (e não ao contrário).

3.6. O princípio da "autonomia moral" e o seu significado

Se definimos a liberdade como “independência da vontade em relação à lei natural dos fenômenos” e como “independência em relação aos conteúdos” da lei moral, então nós temos o seu sentido “negativo” (ou seja, aquilo que ela exclui); se, ao contrário, agregamos a essa conotação outra, ou seja, a conotação de que a vontade (independente) também está em condições de determinar-se por si própria, de se autodeterminar, então temos também o sentido
“positivo” e específico. Esse aspecto positivo da liberdade é aquilo que Kant chama “autonomia” (= determinar-se a si mesmo a sua própria lei). O seu contrário é a “heteronomia”, ou seja, fazer que a vontade dependa e seja determinada por algo diferente.

Vejamos ainda uma passagem essencial a esse respeito, fundamental na história da problemática da liberdade: "A autonomia da vontade é único princípio de toda lei moral e dos deveres conformes a essa lei; toda heteronomia do arbítrio, ao contrário, não somente não determina qualquer obrigatoriedade, mas, inclusive, é contrária ao seu princípio e à moralidade do querer. Em outros termos, o único princípio da moralidade consiste na independência de toda matéria em relação à lei (isto é, de um objeto desejado) e, ao mesmo tempo, no entanto, na determinação do arbítrio por meio da pura forma legislativa universal, da qual deve ser capaz uma máxima. Essa independência, portanto, é a liberdade em sentido negativo; essa legislação autônoma da razão pura e, como tal, prática, é liberdade em sentido positivo. Portanto, a lei moral nada mais expressa do que a autonomia da razão pura prática, isto é, da liberdade, que sem dúvida é também a condição formal de todas as máximas, pois somente obedecendo a ela é que elas podem se harmonizar com a suprema lei prática.”

"Liberdade", “autonomia” e "formalismo" estão indissoluvelmente ligados.

Naturalmente, isso não significa que, autodeterminando-se, a vontade não se proponha conteúdos e que a forma da lei moral não tenha uma matéria, mas sim que esta não pode nunca ser o motivo e a condição determinantes.

Escreve Kant: “A matéria da máxima, portanto, pode permanecer, mas essa não deve ser a sua condição, caso contrário a máxima não seria capaz de construir uma lei. Assim, a simples forma da lei, que limita a matéria, deve ser, ao mesmo tempo, um fundamento para atribuir tal matéria ao querer, mas sem pressupô-la."

Todas as morais que se baseiam nos “conteúdos comprometem a autonomia da vontade, implicam uma dependência dela em relação às coisas e, portanto, à lei da natureza e, por conseguinte, comportam a heteronomia da vontade. Na prática, todas as morais dos filósofos anteriores a Kant, medidas com esse novo critério, revelam-se “heterônomas" e, portanto, falazes. O filósofo considera que todas as morais heterônomas, dependendo dos princípios
em que se baseiam, podem se inserir em um dos casos representados na seguinte tabela, que inclui todos os possíveis casos, inclusive da ética "formal".

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Em particular, deve-se destacar que todo tipo de ética que se baseie na "busca de felicidade" é heterônoma, porque introduz fins “materiais”, com toda uma série de conseqüências negativas. A busca de felicidade polui a pureza da intenção e da vontade, posto que aponta para determinados fins (para aquilo que se deve fazer e não para o como se deve fazê-lo) e assim a condiciona: Como já dissemos, a busca da felicidade dá lugar a imperativos hipotéticos e não a imperativos categóricos. Toda a ética grega, que era precisamente eudemônica (isto é, voltada para a busca da eudaimonía = felicidade), é assim derrubada.

Já a moral evangélica não é eudemônica, porque proclama a pureza do principio moral (a pureza da intenção = a pureza da vontade), como já dissemos.

Nós não devemos agir para alcançar a felicidade, mas devemos agir unicamente pelo puro dever. Entretanto, agindo pelo puro dever, o home torna-se “digno de felicidade”, o que comporta consequencias muito importantes, como veremos adiante.

3.7. O "bem moral” e a “tipicidade do juízo”

Todas as éticas pré-kantianas partiam da determinação da-
quilo que é Íbem moral" e “mal moral”, daí deduzindo em conse-
quencia a lei moral, prescrevendo então visar o bem e evitar o mal.
Em conseqüência do seu formalismo, Kant subverte preci-
samente ostermos da questão: “O conceito de bom e mau não deve
ser determinado antes da lei moral, mas somente depois dela.” O
que significa que “não é o conceito de bem como objeto que torna
possível e determina a lei moral, mas, ao contrário, a lei moral que,
antes, determina o conceito de bem, no sentido que este mereça ser
chamado assim tão absolutamente”.
_ Em suma, _é a lei moral que determina e faz ser o bem moral
e nao o contrário. Entretanto, o paradoxo deixa de ser gritante
quando o pensamos na ótica já mdicada: é a intenção pura ou a
vontade pura que faz ser bom aquilo que quer e não o contrário (não
ha coisa alguma ou qualquer conteúdo dos quais poderiam derivar
a mtençao e a vontade pura).
Mas, pergunta-se, como se poderá passar desse rigoroso
formalismo à ação concreta? Como se poderá passar do imperativo
categórico, que só prescreve a forma, para os casos e conteúdos
particulares? Como será possível a adoção de uma ação particular
sob a lei prática pura (sob o imperativo)?
Çomo se vê: o problema que_ surge aqui é análogo ao surgido
na Critica da razão pura a propósito de encontrar uma ponte, uma
forma de mediaçao entre os conceitos puros e os dados sensíveis. E
Já vimos como Kant resolveu esse problema com a doutrina do “es-
quematismo transcendental" (cf. acima, pp. 889 ss). Aqui, porém,
o problema é mais difícil de resolver, pois se trata de medir o supra-
Sensível (como é o caso da lei e do bem moral) e a ação sensível.
E_I1tã0› Kant usa como “esquema" o conceito de “natureza”
entendida como conjunto de leis que se concretizam necessaria-
mente (ou seja, sem exceção alguma). E passa a desenvolver seu
raciocínio. Imaginemô-la como "tipo" da lei moral (e usar a lei e a
natureza sensível como "tipo" da lei moral significa usá-la à
maneira de “esquema” ou “imagem” para representar a lei e a
natureza inteligível). Agora, tomemos a ação concreta que nos
preparamos para realizar e suponhamos que a máxima na qual ela
se inspira deve se tornar lei necessária (ou seja, não suscetível de
exceções) de uma “natureza” na qual nós mesmos fôssemos obri-
gados a viver. Pois bem, esse “esquema” nos revela imediatamente
se a nossa ação é objetiva (moral) ou não: com efeito, se nos
satisfizesse o viver nesse suposto mundo em que a nossa máxima
se tornasse lei necessária (que não tem exceções), isso quer dizer
que ela estaria em conformidade com o dever; se não, não.
Exemplifiquemos: digamos que, se alguém diz uma falsidade
para evitar dificuldades, percebe-se logo se o seu comportamento
é ou não moral transformando a sua máxima (= me é lícito dizer fal-
sidades para evitar dificuldades) em lei de uma natureza da qual
ele próprio devesse ser parte necessariamente: com efeito, não se-
ria possível viver em um mundo em que todos díssessem necessa-
riamente falsidades (e exatamente aquele que mente seria o pri-
meiro a não querer viver nesse mundo). Da mesma forma, seria
possível viver em um mundo no qual todos matassem necessaria-
mente? Ou então em um mundo no qual todos roubassem neces-
sariamente? E, assim, os exemplos poderiam se multiphcar à
vontade.
“Assim, elevando a máxima (subjetiva) ao nível da univer-
salidade, ficamos em condições de reconhecer se ela é moral ou não:
olha as tuas ações pela ótica do universal e compreenderás se são
ações moralmente boas ou não.
Trata-se de um refinado, complexo e engenhoso modo de ex-
pressar aquele mesmo princípio que, com extrema simplicidade de
veracidade, o Evangelho afirma: "Não faças aos outros aquilo que
não queres que seja feito a ti”.

3.8. O “rigorismo” e o hino kantiano ao "dever”

Levando em conta tudo o que foi dito até aqui, é evidente que,
para Kant, não basta que uma ação seja feita segundo a lei, ou seja,
em conformidade com a lei. Nesse caso, a ação poderia ser
simplesmente “legal” (feita em conformidade com a lei) mas não
"moral". Para ser moral, a vontade que está na base da ação deve
ser determinada “imediatamente” só pela lei, isto é, não “através
da mediação do sentimento, qualquer que seja a sua espécie".
Qualquer intervenção sobre a vontade por parte de moventes que
sejam estranhos à lei moral provoca "hipocrisia". Se faço caridade
aos pobres por puro dever, faço uma ação moral; se a faço por

compaixão (que é um sentimento estranho ao dever) ou para me
mostrar generoso (o que é mera vaidade), faço uma ação
simplesmente legal ou até hipócrita.
Está claro que, como ser sensível, o homem não pode pres-
cindir dos sentimentos e das emoções. Mas, quando eles irrompem
na ação moral, só podem maculá-la: e são perigosos até": quando
impelem no sentido indicado pelo “dever", precisamente porque há
o risco de fazerem a ação cair do plano moral para o plano
puramente legal, no sentido que esclarecemos.
Na sua ética, Kant só reconhece direito de cidadania a um
único sentimento: o sentimento do "respeito". Trata-se, porém, de
um sentimento suscitado pela própria lei moral e, portanto, de um
sentimento diferente dos outros. Com efeito, contrastando as
inclinações e as paixões, a lei moral impõe-se sobre elas, abate a
sua soberba e as humilha: e isso, precisamente, suscita na sensi-
bilidade humana o “respeito” diante de tal "potência" da lei moral.
Como dissemos, trata-se de um sentimento sui generis, ou seja, de
um sentimento que nasce com base em um fundamento intelectual
e racional, enquanto é suscitado pela própria razão. E Kant
precisa: “E esse sentimento é o único que podemos conhecer
inteiramente a priori e do qual podemos conhecer a necessidade."
Evidentemente, o respeito se refere sempre e só a pessoas,
nunca a coisas. As coisas inanimadas e os animais podem suscitar
amor, medo, terror etc., mas nunca “respeito”. E o mesmo vale para
o homem entendido como “coisa”, ou seja, no seu aspecto fenomê-
nico: podemos amar, odiar e até mesmo admirar um grande gênio
ou um poderoso, mas o respeito é outra coisa, nascendo somente
diante do homem que encarna a lei moral.
Por isso, Kant escreve: "Diz Fontanelle: 'Diante de um
poderoso, eu me incline, mas o meu espírito não se inclina.” E eu
posso acrescentar: diante de uma pessoa de condição humilde, na
qual percebo um caráter direito, em uma discrição tal que eu não
tenho consciência de ter, o meu espírito se inclina, queira eu ou não
e por mais que eu erga a cabeça para não pemitir-lhe esquecer
minha condição social. Por que isso? O seu exemplo me apresenta
uma lei que abate a minha soberba, se eu a comparo com o meu
comportamento. E esse próprio fato demonstra aos meus olhos que
a essa lei pode+se obedecer e, portanto, ela é exeqüível. Eu posso até
me sentir dotado do mesmo grau de honestidade, mas o respeito
permanece, porque, sendo no homem todo bem que falta, a lei,
tornada manifesta por um exemplo, continua sempre abatendo o
meu orgulho. E o homem que percebo diante de mim -- e cujas
fraquezas (que, todavia, ele pode ter) não me são conhecidas como
as minhas, de modo que ele me aparece sob uma luz pura - me
oferece uma medida disso. O respeito é um tributo que não podemos
recusar ao mérito (moral), queiramos nós ou não: por mais que
possamos reprimir as suas manifestações exteriores, não podemos
deixar de senti-lo inteiramente." Nesse sentido, como “movente ,
o respeito pode colaborar para que haja obediência à lei moral.
Tudo isso explica melhor as características da lei moral corno
“dever". À medida que exclui a influência de todas as inclinaçoes
sobre a vontade, a lei moral expressa uma "coerção pratica das
inclinações, a sua submissão (e, portanto, PBSPGItO) e, P01' 0011?**
guinte, se manifesta como “obrigatoriedade”. Elm um ser pfrfezto,
a lei moral é lei de “santidade”; em um ser finito, é “dever .
Sendo assim, é compreensível que, colocando o dever aciitna
de tudo, Kant entoe um verdadeiro hino em sua obra, que consti ui
uma das páginas mais elevadas e comovidas do filosofo:
“Dever, nome grande e sublime, que nada contém que hson-
jeie o prazer, mas exige submissão, e que, paraOmOVeI a Vontaííà
nada ameaça que suscite no espírito repugnância ou estupefaçao,
mas apresenta unicamente uma lei, que encontra por si mesma
acesso ao espírito e, no entanto, alcança forçosamente veneraçao
(ainda que nem sempre obediência). Uma lei diante da qual todas
as inclinações emudecem, ainda que, subreptlclamente, trab?"
lhem contra ela. Qual é a origem digna de ti, onde _se encontra a raiz
de tua nobre descendência, que altivamente rejeita todo parentes-
co com as inclinações, aquela raiz da qual sedeve fazer derivar a
condição irrevogável daquele valor que é o unico que os homens
podem se dar por si próprios? Não pode ser nada menos do que
aquilo que eleva o homem acima de si mesmo (como parte do
mundo sensível), daquilo que o liga a uma ordem de coisas que só
o intelecto pode pensar e que, ao mesmo tempo, tem sob si todo o
mundo sensível e, com ele, a existência empiricamente deteniii-
nável do homem no tempo e o conjunto de todos os fins.(o umco
adequado a uma lei prática incondicionada, como é a_lei moral).
Nada mais é do que a personalidade - isto e, a liberdade e
independência em relação ao mecanismo de toda a natureza -,
considerada ao mesmo tempo como a faculdade de um ser subme-
tido a leis também práticas, próprias dele e dadas por sua própria
razão, de modo que a pessoa, como pertencente ao mundo sensível,
é submetida à sua própria personalidade enquanto pertence, ao
mesmo tempo, ao mundo inteligível. E não é de se maravilhar que
o homem, enquanto pertence a ambos os mundos, deva considerar
o seu próprio ser, em relação à sua segunda e suprema destinaçao,
nada menos que com veneração e as leis dessa destinaçao com o
mais profundo respeito."

3.9. Os postulados da razão prática e o primado da razão prática em relação à razão pura

Aquele mundo inteligível e numênico que escapava à razão
pura, fazendo-se-lhe presente apenas como exigência ideal (Idéias
da razão), revela-se portanto acessível por via prática. De simples
Idéias (exigências estruturais da razão), a liberdade (objeto da
terceira antinomia da Idéia cosmológica), a imortalidade (da alma)
e Deus tornam-se postulados na Crítica da razão prática.
Os postulados "não são dogmas teóricos, mas pressupostos,
de um ponto de vista necessariamente prático; portanto,não
amplificam o conhecimento especulativo, mas dão às Idéias da
razão especulativa em geral (por meio de sua relação com os
princípios práticos) uma realidade objetiva e autorizam conceitos
dos quais, se assim não fosse, não se poderia presumir nem mesmo
a afirmação da sua possibilidade”.
A força dos postulados está no fato de que nós temos de
admiti-los para poder explicar a lei moral e o seu exercício. Se não
os admitíssemos, não poderíamos explicar a lei moral. E, como esta
é um fato inegável, assim a realidade dos postulados também é
inegável. E por isso que Kant diz que os postulados “dão as Idéias
da razão especulativa em geral uma realidade objetiva".
Eis uma apresentação sintética dos três postulados:
1) Já vimos que a liberdade é a condição do imperativo e, ao
mesmo tempo, dele deriva. Kant fala até mesmo (cf. acima, p. 913
s) do imperativo categórico como de uma proposição sintética a
priori que implica estruturalmente a liberdade e, portanto, como
algo que é capaz de levar para além do mundo dos fenômenos. Mas
ele diz ainda mais. A categoria de causa, que é um conceito puro,
é em si mesma aplicável tanto ao mundo fenomênico (causa
entendida mecanicamente) como ao mundo numênico (causa livre).
E, embora seja teoricamente impossível a aplicação da causalidade
ao númeno, no entanto é possível a sua aplicação à vontade pura
no campo da moral- e, assim, é possível conceber a vontade pura
como causa livre. Desse modo, o homem descobre pertencer a dois
mundos: por um lado, como fenômeno, ele se reconhece como
determinado e sujeito à causalidade mecânica; por outro lado,
porém, ele se descobre como ser inteligível e livre, em virtude da lei
moral. E nada impede que uma mesma ação, pertencente à esfera
sensível, seja condicionada mecanicamente e determinada
necessariamente no seu desenvolvimento, mas que, no entanto,
sendo devida a um agente que pertence ao mundo inteligível,
também possa pertencer “ao mundo inteligível, ter como seu
fundamento uma causalidade sensivelmente incondicionada e,
portanto, ser pensada como livre”. (Em outras palavras, nada
impede que uma mesma ação possa ser produzida por uma causa
livre e, portanto, numênica, mas, ao mesmo tempo, se desdobre
segundo as leis da necessidade em dimensão fenomênica.)
2) A existência de Deus é recuperada no nível de “postuladd”
do seguinte modo. A virtude (que é o exercício e a concretização do
dever) é “bem supremo". Entretanto, ela ainda não é o bem em seu
caráter completo e íntegra. Só chega a sê-lo a virtude à qual se
agregue também a felicidade que lhe compete por sua própria
natureza de virtude. Juntamente com a felicidade que lhe compete,
a virtude constitui o “sumo bem". Ora, a busca da felicidade nunca
gera a virtude (porque faz a moral cair no eudemonismo, pelas
razões que já vimos), mas a busca da virtude também não gera a
felicidade por si só. Pelo menos, é o que ocorre neste mundo, que não
é governado pelas leis morais, mas sim, pelas mecânicas.
Entretanto, a busca da virtude nos torna dignos de felicidade.
E ser dignos de felicidade, mas não ser felizes é absurdo. E saímos
desse absurdo postulando um mundo inteligível e um Deus,
onisciente e onipotente, que proporcione a felicidade aos méritos e
aos graus da virtude.
Em outras palavras, a lei moral me ordena ser virtuoso; isso
me torna digno de felicidade; precisamente por isso, é lícito
postular a existência de um Deus que faça corresponder em outro
mundo aquela felicidade que compete ao mérito e que não se
realiza neste mundo. (Sem esse “postulado”, ter-se-ia uma situação
absurda, contrária à razão.)
3) A imortalidade da alma é postulada como segue. O sumo
bem requer a "perfeita adequação da vontade à lei moral”. E isso,
precisamente, nos é ordenado pelo imperativo. Mas essa “perfeita
adequação da vontade à lei moral” é a “santidade”. Ora, como esta
a) é exigida categoricamente e b) ninguém neste mundo pode
concretizá-la, “ela só poderá ser encontrada em um progresso ao
infinito”, ou seja, em um progresso que cada vez mais se aproxime
daquela "adequação completa": “Mas tal progresso infinito só é
possível pressupondo uma existência e uma personalidade do
próprio ser racional que perdurem ao infinito - e isso toma o nome
de imortalidade da alma." Trata-se de um modo bastante insólito
de conceber a imortalidade e a vida eterna (o paraíso): isto é, não
como uma condição de certo modo estática ou, pelo menos,
aprocessual, mas precisamente como um incremento e um progresso
infinitos. Para Kant, a imortalidade e a outra vida constituem um
aproximar-se-sempre-mais-da-santidade, um contínuo crescimento
na dimensão da santidade.

A razão prática, portanto, “preencheu" aquelas exigências da razão pura que eram as Idéias, dando-lhes uma “realidade moral". Portanto, ela não está justaposta à razão pura, mas sobreposta ou melhor, sobreordenada a ela. O contrário é impensável, diz Kant “porque, em última análise, todo interesse é prático e até mesma o interesse da razão especulativa só é perfeito condicionadamente e no uso prático”.

A Crítica da razão pura só adquire o seu justo significado à luz Crítica da razão prática, que constitui a mais viva e apaixonante obra de Kant.

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