Texto 23 - Rousseau - Por Nicola Abbagnano

§ 496. ROUSSEAU: VIDA E ESCRITOS

Rousseau merece um lugar à parte no iluminismo. O iluminismo não considerava a razão a única realidade humana, porquanto reconhecia os limites dela bem como a força e o valor das necessidades, dos instintos e das paixões. No entanto, via na razão a verdadeira natureza do homem, isto é, a ordem normativa a que a vida humana se reduz na multiplicidade dos seus elementos constitutivos. Rousseau parece infringir neste ponto o ideal iluminista. A natureza humana não é razão, é instinto, sentimento, impulso, espontaneidade. A razão mesma transvia-se e perde-se quando não tem por guia o instinto natural. Os seus produtos e criações mais importantes não impedem o transvio do homem, se a razão não se firma no instinto e não se adéqua à espontaneidade natural. O iluminismo pretende confiar o instinto à razão, Rousseau a razão ao instinto. Porém, o resultado final é o mesmo.

Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra a 28 de Junho de 1712. Filho de um relojoeiro, teve uma educação desordenada e caprichosa. Em 1728, fugiu de Genebra, onde era aprendiz na loja de um gravador, e, após numerosas peripécias (entre outras, foi cáado em Turim), encontrou um refúgio em casa de Madame Warens, que foi para ele ao mesmo tempo mãe, amiga e amante e exerceu uma influência decisiva sobre a sua vida. Na sua estadia na casa desta senhora, Aux Charmettes, nas cercanias de Chambéry, pôde ler e instruir-se, passando aí os únicos anos felizes da sua vida. Em 1741 domiciliou-se em Paris, onde travou alguns anos mais tarde relações com os filósofos, especialmente com Diderot. Foi precisamente quando ia visitar Diderot, que fora arbitrariamente encarcerado, que Rousseau leu (1749), no "Mercure de France" o tema proposto pela Academia de Dijon para um concurso: "O progresso das ciências e das artes terá contribuído para a melhoria. dos costumes?".

Rousseau, mais tarde, descreveu, numa carta (11 Carta a Malesherbes, 12 de Janeiro de 1762) a luz que naquele momento se fez na sua mente e que decidiu da orientação da sua doutrina. O Discurso sobre as ciências e as artes, publicado no ano seguinte (1750), constituiu um grande êxito. A brilhante sociedade de Paris estava pronto a acolhê-lo, mas o temperamento tímido, taciturno e suspicaz do filósofo não era feito para as relações sociais. Conhecera em 1745 uma mulher grosseira e inculta, Teresa Levas seur, que mais tarde desposou e da qual não se separou até à morte. Depois de ter regressado por algum tempo a Genebra, onde as suas extravagâncias e o seu carácter misantrópico lhe valeram muitos inimigos, fixou-se de novo em Paris, numa casa que Madame d'Epinay pusera à sua disposição, junto do bosque de Montmorency; posteriormente, foi hóspede do Marechal de Luxemburgo, no seu castelo de Montmorency (1758-62). Neste período escreveu e publicou as suas obras fundamentais: Nova Heloísa, Contrato Social e Emílio. Após a publicação desta última obra, (1762), que foi condenada como ímpia, Rousseau foi, obrigado a fugir de França. Expulso de vários lugares, aceitou em 1765 a hospitalidade que Hume lhe oferecia em Inglaterra; mas não tardou a incompatibilizar-se também com ele, a quem acusou de conspirar com os seus inimigos. Regressado a Paris, levou aí a existência inquieta e atormentada descrita nos Sonhos de um viandante solitário. Foi, finalmente, acolhido em Ermenonville pelo Marquês de Girandin e ali veio a falecer a 2 de Julho de 1778.

Na obra de Rousseau o entusiasmo e a oratória prevalecem em larga medida sobre o raciocínio e a demonstração. E até é lícito duvidar (e muitas vezes se tem duvidado) se os diversos aspectos do seu pensamento se deixam reduzir a uma coerência que assegure a unidade da sua personalidade de filósofo. Por um lado (nos Discursos e na Nova Heloísa), Rousseau erige-se em defensor de um individualismo radical para o qual o homem não pode nem deve reconhecer outro guia do que o seu sentimento interior. Por outro lado (no Contrato social), defende um absolutismo político radical pelo qual o indivíduo é inteiramente submetido à vontade geral do corpo político. Naquelas obras, considera a sociedade humana como uma construção artificiosa que limita ou destrói a espontaneidade da vida humana; na última, coloca o estado civil acima do estado natural e mostra as vantagens do primeiro. Este contraste, à primeira vista insuperável, pode talvez ser eliminado ou resolvido por um esclarecimento das relações existentes, segundo Rousseau, entre o estado natural e o estado atual do homem.

§ 497. ROUSSEAU: O ESTADO NATURAL

O motivo dominante da obra de Rousseau é o contraste entre o homem natural e o homem artificial. "Tudo está bem, diz ele no início de Emílio, quando sai das mãos do Autor das coisas: tudo degenera entre as mãos do homem". Desta degeneração, faz Rousseau uma análise amarga e implacável, que lembra a de Pascal. Os bens que a humanidade crê ter adquirido, os tesouros do saber, da arte, da vida requintada não contribuíam para felicidade, para a virtude do homem, senão que afastaram da sua origem e o extraviaram da sua natureza. As ciências e as artes devem a sua origem aos nossos vícios e contribuíram para os reforçar. "A astronomia nasceu da superstição; a eloquência da ambição, do ódio, da adulação, da mentira; a geometria, da avareza; a física, de uma vã curiosidade; todas, incluindo a moral, nasceram do orgulho humano" (Discours sur les sciences, 111). Além disso, contribuíram para estabelecer a desigualdade entre os homens, desigualdade de que nascem todos os males sociais. O lustro que a civilização deu ao homem é apenas aparência e vaidade. O homem engana-se quando supõe fugir à sua pobreza interior refugiando-se no mundo; por isso, tem medo do repouso e não tolera estar só consigo mesmo.

O egoísmo, a vaidade e a necessidade de domínio governam as relações entre os homens, de modo que a própria vida social se rege mais pelos vícios do que pelas virtudes. Todavia, esta situação em que o homem se encontra não é, como considerava Pascal, uma coisa intrínseca ao homem nem devida ao modo original. "A perfectibilidade, as virtudes sociais, as outras faculdades que o homem natural possui em potência, não teriam podido desenvolver-se por si mesmas, porquanto necessitavam o concurso fortuito de mais causas estranhas que podiam nunca ter nascido e sem as quais o homem teria permanecido eternamente na sua condição primitiva". Foram, pois, causas estranhas e acidentais "que aperfeiçoaram a razão humana deteriorando a espécie, tornando o homem mau ao torná-lo sociável e conduzindo, enfim, o homem e o mundo ao ponto em que hoje o vemos" (Discours sur l'inégalité, 1). As circunstâncias acidentais que aperfeiçoaram a razão e arruinaram a natureza humana originária são, segundo Rousseau, o estabelecimento da proade em primeiro lugar, depois a instituição da magistratura, finalmente, a mutação do poder legítimo em poder arbitrário; à primeira deve-se a condição de ricos e de pobres, à segunda a de poderosos e de fracos, e à terceira a de patrões e de escravos, que é o último grau da desigualdade (1b., 11).

É evidente que o homem pode remontar do estado em que se encontra ao estado originário, de fato, a decadência é devida a causas acidentais e estranhas sobre as quais a vontade humana pode agir. Por isso, Rousseau entende o progresso como um retomo às origens, isto é, à natureza; e detém-se a delinear com complacência a meta e o término ideal deste retorno: a condição natural do homem. Porém, não entende tal condição como um estado efectivo. "Esta condição, conforme diz no prefácio do Discurso sobre a desigualdade, é um estado que já não existe,que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, mas de que é necessário todavia ter noções justas para julgar também  nosso estado presente". O estado de natureza ou natureza humana primitiva é, portanto, apenas uma norma de juizo, um critério directivo para subtrair o homem à desordem e à injustiça da sua condição presente e reconduzi-lo à ordem e à justiça que devem ser-lhe próprias. O estado natural não é, mas deve ser, não no sentido em que o homem é infalivelmente dirigido para ele, mas apenas no sentido de que tem a possibilidade e a obrigação de tender para ele.

A Nova Heloísa, o Contrato Social e o Emílio são as obras em que Rousseau estabelece as condições pelas quais a família, a sociedade e o indivíduo poderão retornar à sua condição natural, saindo da degeneração artificial em que caíram.

§ 498. ROUSSEAU: O RETORNO À NATUREZA

A Nova Heloísa, que narra as aventuras de dois jovens amantes a quem os pais e as convenções sociais impedem a realização do seu amor, é a afirmação da santidade do vínculo familiar fundado na livre escolha dos instintos naturais. Eis como Rousseau faz falar uma personagem (Milord Eduardo) que defende o jovem par: "O vínculo conjugal não será acaso o mais livre, bem como o mais sagrado, dos Contratos? Sim, todas as leis que o coaretam são injustiças, todos os pais que ousam formá-lo ou rompê-lo são tiranos. Este casto nó da natureza não está submetido nem ao poder soberano nem à autoridade paterna, mas apenas à autoridade do Pai comum que sabe comandar os corações e que, ordenando-lhes que se unam, os pode obrigar a amarem-se... A verdadeira ordem social é aquela em que o nível é dado pelo mérito e a união dos corações determinada pela escolha; aqueles que atribuem o seu nível ao nascimento e às riquezas são os verdadeiros perturbadores desta ordem e são eles que são condenados e punidos" (Nouv. Hél., II lett. 2.R). Para o vínculo conjugal, o retomo conjugal significa pois a liberdade da escolha guiada pelo instinto.

O Contrato Social pretende ser em relação à sociedade política o que a Nova Heloísa é relativamente à família: o reconhecimento das condições pelas quais a comunidade pode volver à natureza, isto é, a uma norma de justiça fundamental. A obra é, de fato, a descrição de uma comunidade ético-política na qual cada indivíduo obedece, não a uma vontade estranha, mas a uma vontade geral que ele reconhece como sendo-lhe própria e, portanto, em última análise, é a si mesmo que obedece. A ordem social não é uma ordem natural (1, 1), nasce, todavia, de uma necessidade natural quando os indivíduos já não se sentem capazes de vencer as forças que se opõem à conservação de si próprios: neste ponto, o gênero humano pereceria se não modificasse a sua maneira de viver. O problema que então se levanta é o seguinte: "Encontrar urna forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se com todos, não obedeça senão a si próprio e permaneça tão livre como dantes" (1, 6).

Este problema é resolvido com o pacto, que está na base da sociedade política. A cláusula fundamental deste pacto é a alienação total dos direitos de cada associado a favor de toda a comunidade. Em troca da sua pessoa privada, cada contraente recebe a nova qualidade de membro ou parte indivisível do todo; e assim nasce um corpo moral e colectivo, composto de tantos membros quantos votos tem a assembleia, corpo que tem a sua unidade, o seu eu comum, a sua vida e a sua vontade (1,6). Com a passagem do estado natural ao estado civil, o homem substitui na sua conduta a justiça ao instinto e dá às suas ações a moralidade de que antes careciam. "Só então a voz do dever substitui o impulso físico e o direito o apetite, e o homem, que até aí só tivera em conta a sua pessoa, vê-se obrigado a agir segundo outros princípios e a consultar a razão antes de escutar as suas tendências" (1, 8). A passagem do estado natural ao estado civil não é, pois, uma decadência do homem, se o estado civil é, como deve ser, a continuação e o aperfeiçoamento do estado natural. E toda a obra de Rousseau, é dedicada a expor condições pelas quais este estado há-de manter-se tal qual é. A vontade própria do corpo social ou soberano é a vontade geral que não é a soma das vontades particulares, mas a vontade que tende sempre ao bem geral e que por isso não se pode enganar (11, 3). Desta vontade emanam as leis, que são os atos da vontade geral; e não são, por isso, as ordens de um homem ou de vários homens, mas sim as condições aira a realização do bem público (11, 6). O governo é o intermediário entre os súbditos e o corpo político; a ele se deve a execução da liberdade civil e política (111, 1).

Os governos tendem a degenerar quando se opõem à soberania do corpo político com uma vontade particular que se opõe à vontade geral. Mas os depositários do poder executivo não exercem nenhuma autoridade legítima sobre o povo, que é o verdadeiro soberano. "Eles não são os senhores do povo, mas sim os seus empregados e o povo pode nomeá-los e destituí-los quando lhes aprouver. Não lhes cabe contratar, mas obedecer; e, encarregando-se das funções que o estado impõe, não fazem mais do que cumprir os seus deveres de cidadãos, sem terem de modo algum direito a discutir as condições" (111, 18).

O pacto social estabelecido em tais condições assegura, segundo Rousseau, a liberdade dos cidadãos, pois constitui a garantia de que cada um dos seus membros só obedece a si próprio. De fato, a vontade geral não é mais do que a vontade dirigida para o interesse de todos, é ao obedecer à vontade geral o indivíduo não sofre nenhuma diminuição ou limitação. Assim, por um lado, Rousseau distingue a vontade geral das decisões que, efetivamente, o povo toma, e bem assim da vontade de todos (11, 3); por outro lado, exige a completa subordinação do indivíduo à vontade geral, porque fora da vontade geral ele não pode ter senão interesses ou móbeis particulares e, portanto, injustos. Por outros termos, a verdadeira natureza do estado não consiste em dar aos indivíduos um substituto da liberdade natural, mas sim 'uma outra forma de liberdade que assegura ao indivíduo o que a liberdade natural lhe garantia, enquanto lhe era " possível, ou seja, a sua vida e a sua felicidade.

Sob este ponto de vista, as teses do Contrato social não se opõem às das outras obras. A natureza do homem é a liberdade, porém, a comunidade política não pode assegurar ao indivíduo a liberdade do instinto desordenado, mas só a de um instinto disciplinado e pela razão, o que precisamente acontece moralizado coincidência da vontade Particular com mediante a necessidade de uma a vontade geral.

Admitida a vida associada, o retorno à natureza desta vida associada apresenta-se a Rousseau como a ordem e a disciplina racional do instinto espontâneo. Também aqui a natureza só vale como norma, isto é, como _m e de justiça- soda], Rous- _Im critério de ordP Contrato Na Nova Heloísa e no ado do retorno seau expôs as condições e o signific à natureza no que respeita à sociedade familiar e à sociedade política. No Emílio formula as mesmas condições para o indivíduo. Aqui tudo depende da io substituir a educação tradieducaÇãO: é necessár . . iiva cional, que oprime e destrói a natureza primit com uma suporstrutura artificial, por unia educação que se proponha corno único fim a conservação c O reforço de tal natureza.Eniffio é a história de um garoto educado precisamente Para esse fim. A obra do educador deve ser, pelo menos a principio, negar a virtude e a verdade mas tiva: não deve ensina oração e do erro a mente. A proteger do vício O c nte dirigida no ação do educador deve ser única, e espisentido de fazer que O desenvolvimento físico ritual da criança 'Ira. de uni modo espontâneo, isIÇão seja unia criação, que nada que cada nova aqu mas tudo do interior, isto é, proceda do exterior, cando. Na dosdo sentimento e do instinto do edu irinento espontâneo ROussCau crição deste desenvOlv disse-se com razão segue a, orientação sensualistadesenvolvimento de Emílio é comparável ao que o primeiras faculdP, famosa e@,,tátua de Condillac- "As dades, diz Rousseau (Émile, 11), que se formam e se aperfeiçoam em nós são os sentidos, que por isso deveriam ser cultivados em primeiro lugar e que, ao invés, são esquecidos ou negligenciados. Exercitar os sentidos não quer dizer apenas usá-los, mas começar a julgar bem. através deles, aprender, por assim dizer, a sentir, porque não sabemos tocar, ver ou ouvir, senão da maneira como tivermos aprendido."

O impulso de aprender, isto é, de transformar os dados sensíveis em conhecimentos intelectuais, deve vir a Emílio da natureza; e o critério que o deve orientar na escolha dos conhecimentos a adquirir é a utilidade. "Logo que o nosso aluno adquira o conceito da palavra útil, teremos um novo meio extremamente valioso para o guiar, porquanto tal palavra terá para ele o sentido de alguma coisa que interessa imediatamente ao seu bem-estar atual" Ub., 111). Emílio terá a primeira ideia da solidariedade social e das obrigações que ela impõe aprendendo um trabalho manual, e será levado a amar os outros pelo amor próprio, que, quando não é artificiosamente desviado ou exagerado, é a fonte de todos os sentimentos benévolos. Quando na adolescência as suas paixões começarem a despontar, convém deixar que se desenvolvam a fim de que tenham possibilidade e tempo de se equilibrarem pouco a pouco, e assira não será o homem que as ordenará, mas a própria natureza que modelará a sua
obra (Ib., IV). Da própria disciplina na-tuira,1 das paixões nascem em Emílio os valores morais. "Formar o homem da natureza não significa fazer dele um selvagem que haveria que abandonar no meio dos bosques, mas uma criatura que, vivendo no turbilhão da sociedade, não se deixa arrastar nem pelas paixões nem pelas opiniões dos homens, uma criatura que vê com os seus próprios olhos e sente com o seu coração, e que não reconhece outra autoridade senão a da própria razão" (Ib., IV).

O princípio de que tudo deve nascer com perfeita espontaneidade do foro íntimo do educando contrasta, na obra de Rousseau, com todo o conjunto de advertências, de artifícios e de fidelidade que o preceptor urde por toda a parte em torno dele para lhe proporcionar o ensejo favorável a determinados desenvolvimentos. O motivo de tal contraste é que a educação não é, segundo Rousseau, o resultado de uma liberdade desordenada e caprichosa, mas sim de uma liberdade bem orientada". "Não se deve educar uma criança quando não se sabe conduzi-la onde se deseja mediante as únicas leis do possível e do impossível, cujas esferas, sendo-lhe igualmente desconhecidas, se podem ampliar ou restringir em torno dele conforme se deseje.

Pode-se encadeá-lo, impulsioná-lo, refreá-lo sem que ele se queixe, apenas através da voz da necessidade; e pode-se torná-lo manso e dócil apenas por meio da força das coisas sem que nenhum vício tenha ocasião de germinar no seu coração, porque nunca as paixões se acendem quando são vãos os seus efeitos" (lb., II). Além disso, segundo Rousseau, a verdadeira virtude só nasce no homem através do esforço contra os obstáculos e as dificuldades exteriores. Quando, no fim do Emílio, se supõe que o jovem se enamorou de Sofia, o preceptor impõe-lhe uma longa viagem e, portanto, a separação dela para o ensinar a dominar as paixões. "Não há felicidade sem coragem, nem virtude sem luta: a palavra virtude deriva da palavra força; a força é a base de todas as virtudes... Criei-te mais bondoso do que virtuoso, mas quem é apenas bom conserva-se bom enquanto tem prazer em sê-lo, enquanto a sua bondade não é anulada pela fúria das paixões... Até agora só tens sido livre na aparência, fruíste unicamente da liberdade precária de um escravo a que nada se lhe impôs. Agora, é tempo de seres realmente livre, mas hás-de saber ser senhor de ti mesmo, governa o teu coração: só com este pacto se adquire a virtude" (1b., V).

Assim também no Emílio a natureza humana não é o instinto ou a sua imediatez,mas antes a ordem racional e o equilíbrio ideal do instinto e das paixões. Porém, não é uma condição primitiva de que o homem esteja de posse, mas uma norma a reconhecer e a fazer valer; não é um fato mas um dever ser. E assim se explica como Kant pôde inspirar-se em Rousseau na sua doutrina moral e nele ver o Newton do mundo moral (Werke, Ed. Hartonstein, VIII, 630).

§ 499. ROUSSEAU: A RELIGIÃO NATURAL

A religião natural exposta na Profissão de fé do Vigário Saboiano (Emílio, IV), embora apelando para o instinto e o sentimento natural, dirige-se sobre tudo à razão, a qual só pode iluminar e esclarecer o que o instinto e o sentimento obscuramente testemunham. A regra de que se serve o vigário saboiano consiste de fato em interrogar a luz interior, em analisar as diversas opiniões e em admitir apenas as que apresentem a maior verosimilhança. A luz interior, que é a consciência ou sentimento natural, não é aqui senão a razão, como equilíbrio ou harmonia das paixões e dos interesses espontâneos da alma. O primeiro dogma da religião natural é a existência de Deus, que se deduz da necessidade de admitir uma causa do movimento que anima a matéria bem como da necessidade de explicar a ordem e a finalidade do universo. O segundo dogma é a espiritualidade, a atividade e a liberdade da alma. Rousseau opõe-se ao princípio, cuja possibilidade fora admitida por quase todos os iluminIstas, de que a matéria pode pensar. Tal como Condillac, defende a imaterialidade da alma, que nos assegura a imortalidade; a imortalidade justifica a providência divina. "Se não houvesse outra prova da imaterialidade da alma senão o triunfo dos maus e a opressão dos justos neste mundo, isso me bastaria para não duvidar dela. Uma contradição tão manifesta, uma dissonância tão discrepante na harmonia do universo faz-me pensar que nem tudo acaba para nós na vida, e que, ao invés, tudo com a morte entra na ordem".

A religião natural é apresentada no Emílio como uma aquisição ou uma descoberta que cada qual pode e deve fazer por si, mas que não se pode ~r a ninguém. "Agora cabe-vos julgar, diz no fim da sua Profissão o Vigário ao seu interlocutor. Começais a pôr a vossa consciência em estado de poder ser esclarecida; sede sincero convosco, Q das minhas ideias aceitai aquelas que vos persuadir era e rejeitai as outras, porque não estais ainda tão corrompido pelo vício que tenhais de recear escolher mal".

Mas no Contrato social Rousseau. admite que haja "uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos cabe ao soberano fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser bom cidadão e súbdito fiel (IV, 8). O Estado não pode obrigar a crer nestes axugos, mas pode desterrar aquele que não acredita neles, não por ser ímpio,mas por ser insociável. Os artigos deste credo civil são os mesmos da religião natural tendo a mais "a santidade do Contrato social e das leis" e um dogma negativo, a intolerância. Deve notar-se (como já o fizemos) o contraste entro a absoluta liberdade religiosa que parece o pressuposto do Emílio e a obrigatoriedade do credo civil no Contrato social. Mas convém notar que no Contrato social Rousseau. supõe realizada com todas as suas conseqüências a ordem racional da natureza humana, cujo órgão é a vontade geral. A religião civil não faz senão tornar explícitas as condições de tal realização que não podem deixar de ser reconhecidas pelos indivíduos. Com efeito, infringir o credo civil, comportando-se como se não o admitisse, é para Rousseau o crime mais grave porque significa ser perjuro para com as leis (logo, para consigo mesmo) e isto pune-se com a morte (1b., IV, 8).

Deste modo, Rousseau liga-se à corrente principal do iluminismo e revela-se a voz mais apaixonada e mais profunda deste movimento. A sua polêmica contra a razão é, na realidade, a polêmica contra uma razão que pretende anular os instintos e as paixões e substituí-las por uma superestrutura, artificial. Mas de semelhante razão, como se viu, iluminismo não sabia que fazer. Rousseau deu forma mais paradoxal e enérgica ao todo iluminismo francês: o ideal de uma razão como ordem e equilíbrio de todos os aspectos o atitudes do homem e, portanto, como condição do retorno e da restituição do homem a si mesmo.

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