Texto 18 - David Hume (Parte 2) - Por Giovanne Reale



6. A crítica humiana da idéia de relação entre causa e efeito


Causa e efeito são duas idéias bem distintas entre si, no sentido de que nenhuma análise da idéia de causa, por mais acurada que seja, pode nos fazer descobrir a priori o efeito que dela deriva. Escreve Hume: “Não é possível à mente encontrar nunca o efeito da pretensa causa, nem mesmo com a investigação e o exame mais acurados, dado que o efeito é totalmente diverso da causa e, conseqüentemente, não pode nunca ser descoberto nela." Se eu atinjo uma bola de bilhar com outra bola, digo que a primeira causou o movimento da segunda; entretanto, o movimento da segunda bola de bilhar é um fato completamente diferente do movimento da primeira e não está incluído nela a priori. Suponhamos, com efeito, que viemos ao mundo de imprevisto: nesse caso, vendo uma bola de bilhar, nós não poderemos de modo algum saber a priori que ela, impelida contra outra, produzirá como efeito o movimento dessa outra. O mesmo deve-se dizer de todos os outros casos desse gênero. Hume exemplifica dizendo que o próprio Adão, ao ver a água pela primeira vez, não tinha condições de inferir a priori que ela tem o poder de afogar por sufocamento.



Sendo assim, então, deve-se dizer que o fundamento de todas as nossas conclusões sobre a causa e o efeito é a experiência. Mas essa resposta propõe imediatamente outra questão, bem mais difícil: qual é o fundamento das próprias conclusões que eu extraia da experiência? Eu experienciei, por exemplo, que o pão que comi sempre me alimentou; mas com base em que fundamento eu extraio a conclusão de que ele deverá me nutrir também no futuro? Do fato de que eu experienciei que certa coisa sempre se acompanhou de outra ao modo de “efeito" eu posso inferir que também outras coisas como aquela deverão se acompanhar de efeitos análogos. 


Por que extraio eu essas conclusões e, ainda por cima, as considero necessárias?


Para responder à questão, vejamos melhor os seus termos. Dois elementos essenciais estão presentes no nexo causa-efeito: a) a contigüidade e a sucessão; b) a conexão necessária. Só que a) a contigüídade e a sucessão são experimentadas, ao passo que b) a conexão necessária não é experimentada (no sentido de que não é uma impressão), mas sim inferida.


Ora, diz Hume, nós a inferimo-la pelo fato de termos experimentado uma conexão constante e, por conseguinte, pelo fato de termos contraído um hábito no constatar a regularidade da contiguidade e da sucessão, a ponto de tornar-se natural para nós, dada a “causa" esperar o “efeito”.


O princípio com base no qual, a partir da simples sucessão hoc post hoc, nós inferimos o nexo necessário hoc propter hoc é constituído portanto pelo costume ou hábito. Escreve Hume: “Com efeito, toda vez que a repetição de um ato ou operação particular produz uma inclinação a renovar esse mesmo ato ou essa mesma operação, sem que sejamos forçados a isso por um raciocínio ou por um processo do intelecto, nós sempre dizemos que essa inclinação é efeito do costume. Empregando esse termo, nós não nutrimos a pretensão de ter indicado a razão última de semelhante inclinação. Limitamo-nos a indicar um princípio da natureza humana, conhecido por todos e bem sabido em virtude  e seus efeitos. Talvez não possamos levar nossas investigações mais além ou pretender apontar a causa dessa causa, mas devemos nos contentar com ela como um princípio último que nós podemos conseguir  fixar para todas as conclusões que extraímos da experiência."


Em conclusão, diz Hume, é o costume que nos permite sair daquilo que está imediatamente presente na experiência. Mas não tem fundamento toda proposição nossa relativa ao futuro.


Mas há ainda um ponto importantíssimo que devemos entender: embora seja básico, o costume de que falamos, em si mesmo, não seria suficiente para explicar inteiramente o fenômeno que estamos discutindo. Uma vez formado, esse costume gera em nós uma "crença" (belief). Ora, é precisamente essa crença que nos dá a impressão de que estamos diante de uma “conexão necessária" e que nos infunde a convicção de que, dado aquilo que nós chamamos “causa", deve se seguir aquilo que nós chamamos "efeito” (e vice-versa).



Assim, segundo Hume, a chave para a solução do problema está na “crença”, que é um sentimento. Assim, de ontológico-racional, o fundamento da causalidade torna-se emotivo-arracional, ou seja, transfere-se da esfera do objetivo para a esfera do subjetivo.



Eis um trecho das Investigações sobre o intelecto humano que se tornou muito famoso: "Qual é, então, a conclusão da questão toda? E uma conclusão simples, embora deva-se admitir que bastante distante das teorias filosóficas comuns. Toda crença em um dado de fato ou em uma existência real deriva simplesmente de algum objeto, presente na memória ou nos sentidos, e de uma conexão habitual desse objeto com algum outro. Em outras palavras, havendo constatado, em muitos casos, que duas espécies determinadas de objetos - chama e calor, neve e frio - sempre estiveram ligadas entre si, quando a neve ou uma chama se apresenta de novo aos sentidos, a mente é levada pelo costume a esperar frio ou calor   e a crer que exista uma qualidade semelhante, que se revelará a uma aproximação maior de nossa parte. Essa crença é a conseqüência necessária do fato de que a mente se encontre em circunstâncias semelhantes: é uma operação da alma, quando nos encontramos nessa situação, torna-se tão inevitável quanto sentir a paixão do amor quando recebemos benefícios ou o ódio quando sofremos injúrias. Todas essas operações são outras espécies de instintos naturais, que nenhum raciocínio ou procedimento do pensamento e do intelecto está em condições de produzir ou obstaculizar."


E, como veremos, exatamente esse “instinto natural" é que se revelaria a última trincheira do empirismo humiano.



7. A crítica das idéias de substância material e de substância espiritual e a existência dos corpos e do eu como objeto de mera crença ateórica



Hume submete a uma crítica análoga o conceito clássico de substância, 1) tanto em referência aos objetos corpóreos, 2) como no que se refere ao sujeito espiritual.



1) Segundo Hume, aquilo que nós captamos, na realidade, outra coisa não é senão uma série de feixes de impressões e idéias. Em virtude da constância com que esses feixes de percepções se apresentam a nós, acabamos por imaginar a existência de, um princípio que constitua o fundamento da coesão entre aquelas percepções. Nós, por exemplo, consideramos aquele feixe de percepções que chamamos de maçã como sustentado por um princípio de coesão que garante que tais impressões permaneçam compactas e constantemente juntas. Mas esse princípio não é uma impressão, somente um modo nosso de imaginar as coisas, que acreditamos existir fora de nós. Pois aquilo que não é redutível a uma impressão, como sabemos, é destituído de validade objetiva.



Eis como, no Tratado, Hume critica a tradicional distinção entre substâncias e acidentes e como reduz a mecânica psicológica que nos leva a operar essa distinção, valendo-se habilmente do esquema com que procurou explicar o princípio da causalidade: "Nós não podemos evitar considerar a cor, o som, o sabor, a figura e as outras propriedades ,dos corpos como existências que não podem existir à parte, exigindo um sujeito inerente que os sustente ou assegure, já que, nunca tendo descoberto nenhuma dessas qualidades sensíveis sem imaginar ao mesmo tempo, pelas razões que expusemos, a existência de uma substância, o mesmo hábito que nos faz inferir uma conexão entre causa e efeito, nos faz aqui inferir que toda qualidade depende de uma substância ignorada. O hábito de imaginar uma dependência tem o mesmo efeito que teria o de observá-la realmente."



2) Hume também faz uma crítica análoga à existência de uma substância espiritual, particularmente contra a existência do eu, entendido como realidade dotada de existência contínua e autoconsciente, idêntica a si mesma e simples. 

Escreve Hume a esse respeito: “Infelizmente, todas essas decididas afirmações são contrárias à própria experiência (...) invocada: nós não temos nenhuma idéia do eu no modo como ele e explicado aqui. De que impressão poderia derivar tal idéia? E impossível responder a essa pergunta sem cair em contradições e manifestos absurdos. Entretanto, é uma pergunta à qual necessariamente deve ser dada uma resposta se pretendemos fazer passar a ideia do eu como uma ideia clara e inteligível. Sempre é necessária uma impressão qualquer para produzir uma ideia real. Mas o eu ou a pessoa não é uma impressão: é aquilo a que são referidas, por suposição, as nossas diversas impressões e idéias. Se houvesse uma impressão que desse origem à ideia do eu, essa impressão deveria permanecer invariavelmente ao longo de toda a nossa vida, já que se supõe que o eu exista desse modo. No entanto, não há nenhuma impressão que seja constante e invariável: dores e prazeres, vicissitudes e alegrias, paixões e sensações se alternam continuamente, nunca existindo todas juntas. A ideia do eu, portanto, não pode ter derivado de nenhuma dessas impressões nem de qualquer outra: em conseqüência, tal ideia não existe."



As duras conclusões de Hume, portanto, são as mesmas a que ele chega no caso dos objetos. Como os objetos nada mais são do que coleções de impressões, analogamente, nós também não somos nada mais do que coleções ou feixes de impressões e idéias. Nós somos uma espécie de teatro, onde passam e repassam continuamente as impressões e as idéias: mas, note-se bem, trata-se de teatro que não deve ser concebido como um prédio estável, mas simplesmente como o passar e o repassar das próprias impressões. 


Eis o célebre trecho do Tratado em que Hume expressa essa sua visão: “Mas, à exceção de algum metañsico (. . .), eu ouso afirmar que, para o resto da humanidade, nós nada mais somos do que feixes ou coleções de diferentes percepções, que se sucedem com uma rapidez inconcebível, em um perpétua fluxo e movimento. Os nossos olhos não podem girar em suas órbitas sem variar as nossas percepções. O nosso pensamento é ainda mais variável do que a nossa vista. E todos os outros sentidos e faculdades contribuem para essa mudança. Talvez não exista um só poder da alma que permaneça idêntico, sem alteração, por um só momento. A mente é uma espécie de teatro, onde as diversas percepções fazem a sua aparição, passam e repassam, deslizam e se misturam com uma infmidade de comportamentos e situações. Nem há nela, propriamente nenhuma simplicidade em um dado tempo nem identidade em tempos diferentes, qualquer que seja a inclinação natural que tenhamos para imaginar aquela simplicidade e identidade. E não se deve subentender a comparação do teatro: a mente não é constituída senão pelas sucessivas percepções, mas não temos sequer a mais distante noção do lugar onde essas cenas são representadas ou do material de que ele é composto."

O que devemos concluir então? Se o objeto é um feixe de impressões e se também o eu é um feixe de impressões, como poderão se distinguir entre si? Como se poderá falar de “objetos” e “sujeitos”?

A resposta de Hume é evidente: 1) a existência das coisas fora de nós não é objeto de conhecimento, mas sim de “crença" e assim, analogamente, 2) a identidade do eu não é objeto de conhecimento,

mas também objeto de “crença”. 


1) A filosofia nos ensina que qualquer impressão é uma percepção e que, portanto, é subjetiva. Com efeito, a partir da impressão não se pode inferir a existência de um objeto como causa da própria impressão, porque o princípio de causa não tem uma validade teórica, como já vimos. A nossa "crença" na existência independente e contínua dos objetos é fruto da “imaginação”, que, uma vez ingressando em determinada ordem de ideias, prossegue espontaneamente nessa ordem.


Em especial, como se encontra certa uniformidade e coerência em nossas impressões, a imaginação tende a considerar tal uniformidade e coerência como total e completa, supondo precisamente a existência de corpos que seriam a sua "causa". Vejamos um exemplo: eu saio de minha sala e, desse modo, deixo de ter todas as impressões que constituem esta minha sala; depois de certo tempo, ao retornar, tenho as mesmas impressões de antes ou, de todo modo, tenho percepções parcialmente iguais às de antes e em parte diferentes, mas coerentes com elas (por exemplo, encontro a luz reduzida porque já se fez tarde ou encontro o fogo da lareira quase extinto porque a lenha já queimou toda).



Pois bem, a imaginação preenche o vácuo da minha ausência, supondo que essas percepções correspondentes e coerentes em relação às anteriores correspondam a uma existência efetiva e separada dos objetos que constituem a minha sala. E mais: ao trabalho realizado pela imaginação se acrescenta ainda o da memória, que dá vivacidade às impressões fragmentadas e intermitentes (por causa de minha saída e da posterior volta à sala). E essa“vivacidade" gera a “crença" na existência dos objetos externos correspondentes. Assim, o que se salva da dúvida cética é essa crença instintiva, que é de gênese alógica e arracional, quase biológica



2) O eu também é reconstruído de modo análogo pela imaginação e pela memória em sua unidade e substancialidade. Em conseqüência, também a existência do eu, entendido como substância à qual são referidas todas as percepções, nada mais é senão objeto de “crença".


Deve-se destacar, porém, que, para Hume, o eu torna-se objeto de consciência imediata através das paixões e, portanto, mais uma vez em âmbito ateórico e por via arracional. Mas logo falaremos disso.



8. A teoria das paixões e a negação da liberdade e da razão prática


As paixões são algo original e próprio da "natureza humana", independentes da razão e não domináveis por ela. Elas são “impressões" que derivam de outras percepções. Hume distingue as paixões em : 1) diretas e 2) indiretas. 1) As primeiras são aquelas que dependem imediatamente do prazer e da dor, como, por exemplo, o desejo, a aversão, a tristeza, a alegria, a esperança, o medo, o desespero, a tranqüilidade. 2) As segundas são, por exemplo, o orgulho, a humildade, a ambição, o amor, o ódio, a inveja, a piedade, a malignidade, a generosidade e as outras que delas derivam.


Hume alonga-se muito ao escrever sobre essas paixões. Mas os elementos importantes do seu discurso podem ser resumidos como segue: ele afirma que as paixões dizem respeito ao eu, “ou seja, aquela pessoa particular de cujas ações e sentimentos cada um de nós está intimamente convencido"; e, falando do orgulho, ele chega inclusive a afirmar que "a natureza ligou a essa emoção certa ideia, a do eu (!), que nunca deixa de se produzir”. Como já observamos, é evidente que, aqui, Hume recupera a consciência e a idéia do eu em bases emocionais.


Em última análise, a própria vontade pode ser redutível às paixões ou, de qualquer modo, constitui algo muito próximo a elas, dado que, segundo Hume, se reduz a uma impressão que deriva do prazer e da dor, precisamente como as paixões. Mas o nosso filósofo parece um tanto incerto sobre esse ponto, como demonstra a seguinte passagem: "Entre todos os efeitos imediatos da dor e do prazer, não há nenhum que seja mais importante do que a vontade, razão pela qual, propriamente falando, ela não se inclui entre as paixões (mas note-se: tem a mesma origem delas). Entretanto, como, para a explicação das paixões, é necessária uma plena compreensão de sua natureza e das suas propriedades, a faremos

agora objeto do nosso exame. Antes de mais nada, desejo observar que, por vontade, não entendo nada mais do que aquela impressão interior que percebemos e da qual nos tornamos conscientes quando, voluntariamente, damos origem a algum novo movimento do nosso corpo ou a alguma nova percepção de nossa mente. E impossível definir essa impressão, como, por outro lado, as anteriores ,impressões do orgulho e da humildade, do amor e do ódio (...)." E evidente que essa posição tão ambígua (a vontade é e não é uma paixão) se reflete imediatamente na concepção de liberdade, que Hume acaba por negar.


Para ele, "livre-arbítrio" seria sinônimo de não-necessidade, vale dizer, de casualidade, constituindo assim um absurdo. Segundo Hume, aquilo que habitualmente se chama de “liberdade” nada mais seria que a simples “espontaneidade”, ou seja, a não-coação externa. Ao realizar os nossos atos, nós não somos determinados por motivos externos, mas sim interiores, mas, de qualquer forma, somos determinados. 

Mas o ponto mais característico da filosofia moral de Hume é a tese segundo a qual “a razão não pode nunca se contrapor à paixão na condução da vontade".

Isso signiñca proclamar a vitória do jogo das paixões e, assim, negar que a razão possa ser prática, ou seja, que a razão possa guiar e determinar a vontade

A passagem seguinte é verdadeiramente paradígmática a esse respeito: “Como, por si só, a razão nunca pode produzir uma ação ou suscitar uma volição, daí infiro que essa mesma faculdade é igualmente incapaz de obstaculizar uma volição ou de disputar a preferência a alguma paixão ou emoção. Tal conseqüência é necessária, pois é impossível que a razão possa ter esse segundo efeito de obstaculizar uma volição sem dar um impulso em uma direção contrária à nossa paixão: agindo sozinho, esse impulso não estaria em condições de produzir uma volição. Nada pode obstaculizar ou reduzir o impulso de uma paixão senão um impulso contrário. Se esse impulso contrário surgisse da razão, isso significaria que esta última faculdade deveria ter uma influência originária sobre a vontade e deveria estar em condições, não apenas de impedir, mas também de causar algum ato de volição. Mas, se a razão não tem essa influência originária, é impossível que possa obstaculizar um princípio que, ao contrário, possui tal capacidade, ou então que consiga fazer a nossa mente hesitar, ainda que seja por um instante. Assim, fica claro que o princípio que se contrapõe à paixão não pode coincidir com a razão e só impropriamente é assim chamado. Quando falamos de uma luta entre a paixão e a razão, não estamos falando com rigor nem filosoficamente. A razão é e só deve ser escrava das paixões, não podendo em caso algum reivindicar uma função diversa da de servir e obedecer a elas." 


Essa posição é exatamente contrária à que Kant defenderia na Crítica da razão prática.


9. O fundamento arracional da moral

A moral foi o argumento que mais interessou a Hume desde o início de sua formação espiritual, a ponto de alguns intérpretes sustentarem que, se todo o sistema humiano não for visto à luz desse interesse fundamental, ele não revela o seu preciso significado. Com efeito, no início do terceiro livro do Tratado, Hume escreve: “A moral constitui um tema que nos interessa mais do que todos os outros. Toda decisão que lhe diz respeito nós imaginamos que ponha em jogo a concórdia social. E é evidente que esse interesse deverá fazer com que nossas especulações se apresentem mais reais e sólidas do que as relativas a temas que nos são amplamente indiferentes. Se algo nos toca de perto, concluímos que não poderá nunca se tratar de uma quimera. E, enquanto a nossa paixão está comprometida de um lado ou de outro, pensamos espontaneamente que a questão se insere na esfera da compreensão humana, coisa de que, por vezes, duvidamos em relação a outros casos desse tipo. Carente desse privilégio, nunca eu me teria aventurado em um terceiro volume desta intricada filosofia em uma idade em que a maior parte dos homens parece concorde em transformar a leitura em um divertimento e rejeitar qualquer coisa que exija um considerável grau de atenção para ser compreendida."

Qual é o fundamento da moral?

Como já vimos, Hume negava que, como tal, a razão pudesse mover a vontade, ou seja, que a razão possa ser fundamento da vida moral. Por conseguinte, a moral deve derivar de algo diferente da razão. Com efeito, diz Hume, a moral suscita paixões e promove ou impede ações, coisas que, pelos motivos expostos, a razão não está em condições de fazer. Assim, conclui Hume, "é impossível que a distinção entre bem e mal moral possa ser estabelecida pela razão, posto que essa distinção tem sobre as nossas ações uma influência da qual a razão é inteiramente incapaz". Quando muito, a razão pode dispor-se a serviço das paixões e colaborar com elas, despertando-as e orientando-as. 

A resposta humiana a esse quesito é óbvia: o fundamento da moral é o sentimento. Eis uma afirmação paradigmática: "A moral (...) é mais propriamente objeto de sentimento do que de juízo, por mais que esse sentido ou sentimento seja habitualmente tão doce e leve que somos levados e confundi-lo com uma ideia, segundo o nosso costumeiro hábito de tomar por idênticas as coisas que têm uma forte semelhança recíproca.” 


Então, que sentimento é esse que serve de fundamento para a moral?



E um sentimento particular de prazer e dor. 


A virtude provoca um prazer de tipo particular, assim como o vício provoca uma dor de tipo particular, de modo que, se conseguirmos explicar tal prazer e tal dor, explicaremos também o vício e a virtude. E eis o que escreve Hume: “Ter o sentido da virtude nada mais significa que sentir uma satisfação de um tipo particular ao contemplar uma certa qualidade. E é exatamente nesse sentir que reside a nossa louvação ou a nossa admiração. Nós não vamos além: não procuramos buscar a causa da satisfação. Nós não ínferimos que uma qualidade seja virtuosa porque ela nos agrada: é no sentir que ela nos agrada de certo modo particular que nós sentimos que, com efeito, ela é virtuosa. Isso também ocorre em nossos juízos sobre todo tipo de beleza, gostos e sensações. A nossa aprovação está implícita no prazer imediato que todas essas coisas nos dão".

Já dissemos que o prazer (ou dor) moral é peculiar. Com efeito, ele deve ser acuradamente distinto de todos os outros tipos de prazer. Com efeito, por prazer nós entendemos sensações muito diferentes entre si: como exemplifica Hume, uma coisa é o prazer que experimentamos em beber uma boa taça de vinho, num prazer que é de caráter puramente hedonístico, mas outra coisa é o prazer que experimentamos ao ouvir uma boa composição musical, o que é um prazer estético. Nós captamos imediatamente a diferença entre esses dois tipos de prazer, não havendo nenhum perigo de que consideremos o vinho harmonioso ou a composição musical saborosa. Analogamente, diante da virtude de uma pessoa, experimentamos um prazer peculiar que nos impele a louvá-la (assim como, diante do vício, experimentamos um desprazer que nos impele a censurá-lo). Segundo Hume, trata-se de um tipo de prazer (ou dor) desinteressado. E essa, precisamente, é a conotação específica do sentimento moral: o ser "desinteressado”.


Eis as próprias palavras com que Hume expressa eficazmente esse seu conceito: "As boas qualidades de um inimigo nos são nocivas, mas, apesar disso, também podem nos impor estima e respeito. Somente quando certa característica é considerada em geral, sem qualquer referência ao nosso interesse particular, é que causa tal sentido qu sentimento que a faz ser considerada moralmente boa ou má. É verdade que esses sentimentos que surgem do interesse e da moral estão sujeitos a serem confundidos e transformam-se naturalmente um no outro. Raramente nos ocorre de não julgar um inimigo como vicioso ou de conseguir distinguir entre a sua oposição aos nossos interesses e a sua efetiva maldade ou baixeza. Mas isso não impede que, em si mesmos, os sentimentos sejam distintos e que um homem de caráter e dotado de discernimento possa evitar essas ilusões. Analogamente, embora, como é óbvio, uma voz musical nada mais seja do que uma voz que naturalmente desperta um particular tipo de prazer, no entanto, é difícil que um homem consiga perceber que a voz de um inimigo é agradável ou a admitir que é uma voz musical. Mas uma pessoa de ouvidos sensíveis e que tenha domínio sobre si mesma conseguirá separar esses sentimentos e louvar aquilo que merece."



Ademais, para Hume, o sentimento da simpatia também se reveste de notável relevância moral. Valorizando esse sentimento, o nosso filósofo coloca-se em clara antítese com a pessimista visão de Hobbes, como o prova este belo trecho: "Não há qualidade da natureza humana mais notável, seja em si e por si, seja por suas conseqüências, do que a nossa propensão a experimentar simpatia pelos outros e a receber por transmissão as inclinações e os sentimentos alheios, por mais diferentes e até mesmo contrários aos nossos que eles sejam. Isso não é evidente só nas crianças, que abraçam tranqüilamente qualquer opinião que lhes seja proposta, mas também em homens do máximo juízo e inteligência, que acham muito difícil seguir a sua própria razão e inclinação em oposição às dos seus amigos e companheiros de todo dia. E a esse princípio que devemos imputar a grande uniformidade que pode ser observada nas inclinações e no modo de pensar daqueles que pertencem a um mesmo povo. E é muito mais provável que essa semelhança surja da simpatia, mais do que de qualquer influência do solo e do clima, que, mesmo permanecendo invariavelmente idênticos, no entanto não conseguem fazer o caráter de um povo permanecer idêntico por cem anos. Um homem de bom caráter logo se põe de acordo com o humor das pessoas em cuja companhia se encontra. E até mesmo o homem mais orgulhoso e conflitivo assume alguns traços de seus concidadãos e seus conhecidos. Um comportamento alegre suscita em minha mente um claro sentido de satisfação e serenidade, ao passo que uma atitude irada e adversa lança-me imediatamente em um estado de tristeza. Ódio, ressentimento, estima, amor, coragem, alegria e melancolia - todas essas são paixões que sinto mais por transmissão dos outros do que pelo meu próprio temperamento e disposição natural."



Por ñm, nas Investigações sobre os princípios da moral, para explicar a ética, Hume recorreu também à dimensão utilitarista. Com efeito, diz ele, o “útil" move a nossa concordância. Mas o “útil” de que se fala no campo da ética não é “o nosso útil particular", mas sim o útil que, além de nós, estende-se "também aos outros", ou seja, o útil público, que é “o útil à felicidade de todos". Assim, escreve Hume: “Desse modo, se a utilidade é uma fonte do sentimento moral e se não consideramos sempre essa utilidade em referência ao eu singular, segue-se então que tudo o que contribui para a felicidade da sociedade granjeia diretamente a nossa aprovação e a nossa boa vontade. Eis um princípio que, em boa medida, explica a origem da moralidade (. ..)."


10. A religião e o seu fundamento irracional

Hume não tinha interesse pessoal pela religião. Ele se havia afastado desde jovem das práticas religiosas, assumindo atitude de indiferença, com traços de verdadeira aversão. Mas, como fato da "natureza humana", a religião não podia deixar de constituir objeto de sua análise. 

Apesar de alguns pontos de contato com certas idéias deístas, a posição de Hume não é deísta, chegando a ser, em alguns caso, claramente antideísta. 

a) Em primeiro lugar, a religião não tem um fundamento racional. Hume refuta e rejeita as provas apresentadas pelos teólogos em favor da existência de Deus. Segundo ele, no máximo, pode-se pensar como plausível alguma analogia com a inteligência, no que se refere à causa do universo. Mas dessa analogia não se extrai nada de certo.

b) A religião também não possui um fundamento moral. Segundo Hume, não há uma verdadeira conexão entre religião e ética. Com efeito, como já vimos, o fundamento da ética é o sentimento, não a religião. Escreve ele na História natural da religião: "Escutai aquilo que os homens proclamam: nada é mais seguro do que seus dogmas religiosos. Examinai as suas vidas: dificilmente poderíeis pensar que têm a mínima confiança nesses dogmas."


c) A religião tem um fundamento instintivo: a ideia do divino nasceu do medo pela morte, da preocupação com a vida futura. Em suma, segundo Hume, "as primeiras idéias religiosas não nasceram da contemplação das obras da natureza, mas sim de uma preocupação com os acontecimentos da vida e das esperanças e dos medos que incessantemente percorrem a mente humana” (é evidente, aqui, o eco de idéias epicuréias e lucrecianas!).



Hume não é ateu por princípio e de modo dogmático, mas é extremamente ambíguo. Ele avalia negativamente a religião, mas depois diz que um povo sem religião pouco difere dos animais. A passagem seguinte mostra exemplarmente essa ambiguidade: “Não há absurdos teológicos tão descomunais que, alguma vez, já não tenham sido sustentados por homens de grande inteligência e cultura. Não há preceitos mais rigorosos que não tenham sido aceitos por homens inteiramente voltados para o prazer e mais preguiçosos. A ignorância é a mãe da devoção: essa é uma máxima proverbial, confirmada pela experiência de todos. Entretanto, procurai um povo inteiramente privado de religião: se o encontrardes, podeis estar certos de que ele pouco difere dos animais.”



11. Dissolução do empirismo na “razão cética” e na “crença arracional”

Hume considerava-se cético moderado. Com efeito, em sua opinião, o ceticismo moderado “pode beneficiar o gênero humano”, visto que consiste na “limitação de nossas investigações aos temas que melhor se adaptam, às limitadas capacidades do intelecto humano”.


Em última análise, no que se refere às ciência abstratas, essas capacidades se restringem ao conhecimento das relações entre idéias e, portanto, no caso das razões que examinamos, se restringem somente à matemática. Todas as outras investigações se referem a dados de fato, suscetíveis de constatação, mas não de demonstrações. Em suma, o que domina todos esses âmbitos é a experiência e não o raciocínio. Assim, as ciências empíricas baseiam-se na experiência, a moral no sentimento, a estética no gosto e a religião na fé e na revelação.


Sendo assim, na Investigações sobre o intelecto humano, Hume tira a sua célebre conclusão: “Quando, persuadidos desses princípios, percorremos os livros de uma biblioteca, de que devemos nos desfazer? Se pegamos algum volume, digamos de teologia ou de metafísica escolástica, por exemplo, nos perguntamos: 'Será que contém raciocínios abstratos em torno da quantidade ou do número?' Não. 'Contém raciocínios baseados na experiência e relativos aos dados de fato ou à existência das coisas?' Não. Então, joguemo-lo às chamas, já que não pode conter nada mais que tergiversação e engano.”

Essas conclusões céticas podem ser reduzidas a um fundamento único: a negação da valência ontológica do princípio de causa e efeito. Seria muito fácil mostrar que, na realidade, no mesmo momento em que o exclui, Hume o está reintroduzindo subrepticiamente, sem se dar conta disso, para poder proceder ao seu discurso. As impressões são “causadas” pelos objetos, as idéias são “causadas” pelas impressões, a associação das idéias tem uma “causa”, o hábito é “causado” por seu turno e, assim, os exemplo poderiam se multiplicar! Se tivéssemos verdadeiramente que eliminar o princípio de causa, não só a metafísica ruiria por terra, mas também toda a filosofia teórica e moral de Hume. 


Mas não é para isso que queremos chamar a atenção (já que isso nos levaria para o campo da crítica ao sistema humiano), mas muito mais para a postura geral que caracteriza o pensamento do nosso filósofo: à razão cética problemática, Hume contrapõe o instinto e o elemento alógico, passional e sentimental, portador de uma segurança incontida e, portanto, dogmática. A própria razão filosófica, que é uma necessidade originária de indagar; aparece em Hume, em certos momentos, quase como uma espécie de instinto, também ele incontido. Em suma, para Hume, a última palavra parece ser deixada precisamente para o instinto, ou seja, para o arracional, quando não até para o irracional, como dizíamos no princípio.


As duas afirmações seguintes, verdadeiramente simbólicas, mostram claramente como o empirismo humiano afastou-se do empirismo lockiano. Locke dizia: "A razão deve ser o nosso último juiz e o nosso guia em toda coisa." Hume, ao contrário, afirma: “A razão é e só pode ser escrava das paixões, não podendo reivindicar em caso algum uma função diversa da de obedecer a elas."


Como se vê, quando levado às conseqüências extremas, o empirismo choca-se contra limites agora intransponíveis (pelo menos com sua lógica intrínseca). Caberia a Kant a grande empresa de abrir novos caminhos, capazes de evitar tanto esses extremismos irracionalistas e céticos como os extremismos de caráter oposto em que haviam incorrido os sistemas racionalistas.



Mas, antes de Kant, devemos tratar de dois pensadores que nadaram contra a corrente: saindo dos esquemas típicos da época moderna e das linhas que levam a Kant, eles, abreviando os tempos, anunciam mensagens que são ainda mais “modernas” do que a “modernidade” de sua época. E, ainda antes de Kant, devemos também apresentar um quatro geral da cultura e do pensamento iluministas, dos quais os filósofos até agora tratados foram, de certo modo, iniciadores ou até mesmo expoentes de relevo e dos quais o próprio pensamento de Kant, em ampla medida, é uma expressão.

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