Texto 16 - Berkeley (A natureza como linguagem)


BERKELEY - A NATUREZA COMO LINGUAGEM


** Texto de autoria de Maria Adriana Camargo (professora do Departamento de Filosofia da UFPr), publicado na revista Mente e Cérebro & Filosofia - Edição nº2 - Gráfica Ediouro



Muitas considerações a respeito dos gregos vinham sendo feitas à época em que George Berkeley publicou sua Nova teoria da visão (1709). Locke, no Ensaio sobre o entendimento humano, já havia apresentado o problema que lhe fora proposto por William Molyneux, sobre a possibilidade de um cego de nascença, a quem fosse dada a visão, poder reconhecer o que ele percebia pelo tato naquilo que então viesse a perceber com os olhos. “Suponha um homem nascido cego, que, quando adulto, aprendeu a distinguir, pelo tato, um cubo e uma esfera de mesmo material e tamanho, de modo a poder dizer, ao tocar um e outro, qual é o cubo e qual é a esfera. Suponha, então, que o cubo e a esfera são colocados sobre uma mesa e que o homem cego passe a enxergar. Eu pergunto: pela visão, ele poderia distinguir a esfera do cubo, antes de chegar a tocá-la?



Concordando com o amigo, Locke considera que tal distinção não poderia ser feita apenas com base no acesso à experiência visual, mas mediante o estabelecimento, por meio de experiências posteriores, de uma relação entre os dois tipos de percepção, do tato e da visão. Ele observa: "Ainda que, pela experiência ele saiba como a esfera e o cubo afetam seu tato, ele não teve a experiência de como aquilo que afeta seu tato deve afetar sua visão; em outras palavras, que o ângulo protuberante do cubo, pelo qual este afeta suas mãos de modo desigual, deve aparecer aos seus olhos do modo como um cubo aparece". 


O teste dessas especulações por uma experiência só foi realizado anos depois. Em 1728, o cirurgião inglês William Cheselden, ao remover as cataratas de um menino de 13 anos, nascido cego, tornou possível a comprovação de se, de fato, podemos ou não reconhecer pela visão um objeto que conhecíamos anteriormente apenas pelo tato. Berkeley conheceu essa experiência, relatada no Philosophical Transactions of the Royal Society of London, nº 402, 1728, e a citou em sua Teoria da visão defendida e explicado (§ 71), de 1733. 

Os relatos constataram muito mais do que a impossibilidade de reconhecimento imediato daquilo que tocamos naquilo que vemos. O menino não só não foi capaz desse reconhecimento imediato, como também não conseguiu distinguir um objeto visual de outro. "Ele não reconhecia a forma das coisas, nem diferenciava uma coisa de outra, qualquer que fosse a distinção entre suas formas ou grandezas. Mas depois de lhe terem dito que coisas eram aquelas cuja forma havia anteriormente conhecido pelo tato, ele as observava cuidadosamente para então ser capaz de reconhecê-las. Mas, como ele mesmo dizia, porque travava conhecimento com muitos objetos, esquecia-se de vários, e aprendia e esquecia muitas coisas por dia. Quando, várias semanas após ter sido operado, se via confuso diante de um quadro em perspectiva, perguntava qual sentido o enganava, se a visão ou o tato." 

Além disso, o garoto mostrava não ter qualquer noção de distância. "Quando ele viu pela primeira vez, estava tão impossibilitado de julgar distâncias, que pensou, como ele mesmo disse, que todos os objetos tocavam seus olhos como quando sentia tocarem sua pele." Tampouco era capaz de considerar o espaço, ou a extensão, como partes menores englobadas por partes maiores. "Não conseguia imaginar qualquer linha que fosse além dos limites do que via. Dizia que sabia que o quarto onde estava fazia parte da casa, mas não conseguia conceber que a casa toda pudesse parecer maior." 



EXPERIÊNCIA ORIGINÁRIA 


Diante de tais relatos, quais questões seriam capazes de justificar o interesse demonstrado por filósofos como Locke e Berkeley, a ponto de estes acompanharem o desenvolvimento dessas experiências e as citarem em suas obras? Decerto o envolvimento relacionava-se com a concepção empirista de ambos e de outros pensadores dos séculos XVII e XVIII. Segundo esses filósofos, tudo o que podemos conceber, afirmar ou negar sobre o que quer que seja tem como referente algo inicialmente apreendido pela visão, tato, olfato, audição, paladar, bem como as paixões e ações implicadas nessa apreensão. Ao postularem que o conhecimento provém da experiência, eles tinham interesse em comprovar o caráter fundamental dos elementos componentes da mesma e definir as capacidades dos sujeitos em organizar esses elementos fundamentais, pelo que, ao mesmo tempo, se estaria tanto determinando aquilo que dá validade a esse conhecimento quanto estabelecendo seus limites. 

E o que, afinal, tais empiristas acreditam apreender na experiência do mundo? Um empirista, como Berkeley, afirmaria que, a princípio, aprendemos cores e luzes, resistência, movimento, maciez, aspereza, o calor, o frio, sons, sabores, odores... E que, em seguida, a repetição e a retenção dessas experiências nos permitem estabelecer relações entre esses elementos mínimos, os quais aos poucos vão se articulando numa complexidade de objetos relacionados por regularidades, à primeira vista. inconcebíveis. Configura-se, portanto, um interesse em saber, antes de tudo, que primeira vista seria essa. Se seria possível alcançá-la. E, se o pudésse-mos, o que poderia nos ensinar. 

Para um ernpirista, mais uma vez, a hipótese a ser confirmada é a de que essa primeira experiência comprovaria justamente que a complexidade do mundo é construída com base em elementos bastante simples. Por isso mesmo, estaríamos impedidos de postular a realidade de algo que não pudesse ser reduzido a tais elementos. Fato e interdição que Berkeley, em especial, tem interesse em pôr à prova ao explorar o exemplo de alguém que, de fato, poderia estar consciente de uma primeira experiência: o menino cego operado pelo Dr. Cheselden. 

O relato daquele que pela primeira vez tem determinadas experiências reveladoras de todo um mundo novo, no caso o mundo visual, surge, então, como uma possibilidade privilegiada para verificar a concepção de mundo físico e de conhecimento próprias do empirismo. Para Berkeley, em particular, tal condição especial de experiência apresenta-se como uma oportunidade única para confirmar a redução, por ele proposta, de noções como as de espaço, distância e identidade do objeto a elementos dados na experiência sensível. 

Assim, ao apropriar-se da experiência original desse neovidente e postando-se, portanto, em um ponto de partida pelo qual, sendo possível determinar o que é dado, pode-se distinguir este dado do que lhe é acrescentado pelo trabalho da memória e da imaginação, o filósofo se pergunta: o que efetivamente percebo pelo sentido da visão? É possível ver a distância, ou o espaço que acredito se interpor entre um objeto e outro? Se não posso reconhecer o objeto que tocava por aquele que agora vejo, é possível afirmar que vejo o mesmo objeto que toco? Quando há discordância entre as informações provenientes do tato e da visão, estou sendo enganado por esses sentidos? E, se for assim, em que medida posso confiar em meus sentidos? E, mais, se em última instância todo o conhecimento humano sobre o mundo físico se funda nos sentidos, e se estes nos enganam, em que medida podemos, de fato, conhecer? Questões, portanto, sobre a origem, limites e validade de nosso conhecimento e, especificamente, no âmbito da discussão aqui proposta, do nosso conhecimento do mundo físico. 

Sigamos, então, um pequeno itinerário do tratamento dessas questões, por Berkeley, com base em sua teoria sobre a visão. E comecemos pela interrogação a respeito da "percepção da distância". 

DISTÂNCIA, PASSO A PASSO 

Como poderíamos descrever a experiência daquilo que percebemos pela visão quando dizemos perceber a distância dos objetos que vemos? Para Berkeley, nossa experiência da distância está condicionada a experiências sucessivas pelas quais detectamos relações estáveis entre o número, o tamanho e a vivacidade dos objetos visualizados. Nesse sentido, ele afirma que, quando percebemos "um grande número de objetos intermediários, como casas, campos, rios e outras coisas semelhantes" que experiências anteriores nos mostraram "ocupar um espaço considerável", julgamos que aquilo que está além desses objetos se encontra a uma grande distância. E, mais, quando um objeto que antes nos pareceu grande e em toda sua vivacidade, aparece-nos agora pálido e de menor tamanho, somos levados também a concluir que ele está mais afastado de nós agora do que anteriormente. Todas essas considerações implicam, portanto, uma ou várias experiências anteriores com as quais possamos comparar a experiência atual, pois não poderíamos, apenas da "pequenez ou palidez, inferir nada em relação à distância dos objetos". (NTV, § 3).

Mas, então, ao levar em conta essa descrição de Berkeley, não seríamos obrigados a admitir que a distância, ainda que não possa ser vista em si mesma — vemos apenas a diferença de vivacidade, grandeza e distinção entre objetos —, possui realidade, na medida em que pode ser inferida dessas percepções visuais? Ou, no mínimo, não teríamos que explicar como devemos interpretar a expressão "ocupar espaço considerável"? 

Quanto a isso, porém, Berkeley não poderia ter sido mais claro. "Quando eu olho um objeto, percebo uma certa figura e uma certa cor, com um certo grau de vivacidade e outros fatores, que, segundo o que eu já observei anteriormente, me determinam a pensar que se eu avançar tantos passos, ou tantas milhas, serei afetado por determinadas idéias do tato; de sorte que, estritamente falando, eu não vejo nem a distância em si mesma nem nada que esteja à distância." (NTV, 5 45) 

É assim que a distância de um objeto percebido pela visão não é vista nem inferida, mas se reduz ao número inter-mediário de percepções apreendidas pelo tato — medidas em passos, ou metros — que separam o observador de um determinado objeto visual que ele prevê alcançar também pelo tato. São os movimentos de um corpo, portanto, percepções táteis, que, em última análise, estão em pauta quando alguém considera a distância. Nas palavras do autor: "depois de ter transposto determinada distância que deve ser medida pelo movimento do seu corpo, movimento percebível pelo tato, ele perceberá tais ou tais idéias táteis que foram habitualmente associadas a deter-minadas idéias visuais". (NTV, idem) 

Assim, a distância se resume na sugestão de percepções táteis por percepções visuais. Sugestão que só se configura porque vivemos a experiência da conjunção constante entre essas percepções. Porque eu tive, por exemplo, a experiência da conjunção constante entre o tamanho, a cor, a vivacidade da xícara que ora vejo (além do número de outros objetos visíveis passíveis de se interporem entre mim e ela) e o movimento de alongamento de meu braço necessário para ter a percepção tátil da xícara, posso dizer que ela está próxima, ou seja, ao alcance da mão

Se, como o bebê que estica os braços do berço, para alcançar a luz que pende do teto do quarto, eu não tivesse vivido as experiências constantes que relacionam determinada aparência visual da lâmpada com o número de percepções táteis necessárias para que possa senti-la em minhas mãos, jamais poderia dimensionar a distância entre mim e a lâmpada. 

Não é de estranhar, portanto, que o cego de nascença, que não teve a experiência caudalosa dessas relações e não foi afetado por sua constância, nada saiba a respeito da distância quando olha pela primeira vez. Como disse o menino recém-operado, aquilo que ele vê, pela primeira vez, parece que "toca seus olhos". Nada mais plausível, segundo Berkeley, uma vez que a distância não é dada pela visão: o que é dado pela visão é a sugestão, por um acúmulo de experiências, de um determinado número de percepções táteis. Sendo assim, a dis-tância surge para nós apenas da relação entre percepções táteis e visuais, ela não existe fora dessa relação. 

As considerações sobre a distância permitem a Berkeley a elaboração de um outro argumento. Ao revelarem que existe uma relação de significância entre percepções visuais e táteis, essas reflexões concorrem na defesa da concepção berkeleiana da Natureza (o universo da experiência dos objetos físicos), conside-rada como uma linguagem, na medida em que esta é um composto de signos que se remetem, por meio de regras fixas, ainda que arbitrárias, uns aos outros. E será, justamente, com base nessa noção peculiar de Natureza, que se esvaziará uma outra ilusão comum a muitos pensa-dores — bem como ao menino cuja visão foi restaurada, quando ele adquire uma certa familiaridade com as relações entre o tato e a visão. Trata-se da ilusão de que nossos sentidos nos enganam. 

A IDENTIDADE DO OBJETO 

Ora, não foram poucas as advertências, repetidas ao longo de toda a história da filosofia, contra os enganos provenientes dos sentidos. 

Grandes ou pequenos, com temperatura, cor e cheiro variáveis, os objetos nos aparecem, pelos sentidos, segundo esses argumentos, em constante mudança. Mais ainda, em muitos casos, sabemos que as mudanças ocorridas em sua aparência são determinadas exclusivamente por alterações que devem ser reputadas a nós, que os percebemos. Alguns exemplos: aquele prato delicioso nos parece insosso se estamos resfriados; a água do banho nos parece muito quente se acabamos de nos expor a um sol escaldante, e apenas - morna, se o corpo se ressente dos rigores do inverno; e basta apertar os olhos ou deles afastar ou aproximar os objetos para que os contornos destes tornem-se distorcidos e novas características sejam notadas ou simplesmente desapareçam. 

O perigo de tais argumentos para um empirista é evidente. Afinal, se eles atingem aqueles que apoiam o conhecimento do mundo nas percepções sensíveis, o ceticismo parece conseqüência inapelável. Em uma filosofia de feições empiristas, objeções como essa podem colocar em xeque o próprio fundamento do conhecimento. 


Deixemos que Berkeley se defenda. Para ele, se os argumentos céticos ganham força, é justamente porque os filósofos já se distanciaram da experiência ao privilegiarem um conceito de objeto que implica a permanência de algo uno e igual a si mesmo, em detrimento da diversidade e mutabilidade de nossas percepções sensíveis. 

Portanto, só há engano dos sentidos se entendemos que nossas percepções são características de um objeto que, enquanto tal, deve ser por elas determinado. Assim, a visão parece nos enganar quando uma torre, que de longe nos parecia redonda, se mostra quadrada ao nos aproximarmos dela. Mas, stricto sensu, a torre que vemos ao longe é a mesma que vemos quando estamos mais próximos ou, ainda, a mesma que tocamos? Acreditamos que sim, pela extrema regularidade em que essas percepções distintas se apresentam para nós, ou seja, pela forte relação de significância estabelecida entre elas — mas, segundo Berkeley, por nada mais do que isso. Ele afirma que "não vemos o mesmo objeto que tocamos; nem o objeto percebido pelo microscópio é o mesmo que era percebido a olho nu. Mas se pensarmos que cada variação for suficiente para constituir um novo tipo ou indivíduo, o número interminável ou a confusão de nomes poderia tomar a linguagem impraticável. Desta forma, para evitar estas e outras inconveniências que se tornam evidentes por um mínimo de reflexão, o homem combina várias idéias apreendidas por diversos sentidos, ou pelo mesmo sentido em tempos diferentes ou em circunstâncias diferentes, mas que se observou terem alguma conexão na Natureza com respeito à coexistência ou à sucessão; e a todas elas ele se refere com um nome, e considera como uma coisa". (Diálogos, 245)

Consideradas em si mesmas e nas relações pelas quais elas se associam e constituem nossa experiência, as percepções não são a causa de qualquer tipo de engano. Isso porque, de sua variedade, não podemos chegar a afirmar a existência de um objeto que resista a suas mudanças, ou que exista como seu referente. Tampouco, portanto, devemos duvidar da confiabilidade dos sentidos, ou de que eles estejam em contradição uns com os outros ou com qualquer coisa que esteja além deles, uma vez que esse engano só se configura segundo o falso princípio que pressupõe a existência de uma natureza real única, imutável e não perceptível. Falso princípio que a filosofia de Berkeley quer desmascarar. Esvaziada a noção de objeto, enquanto unidade permanente e imutável, restam como componentes do mundo físico percepções transformadas umas em signos das outras. Resta a concepção de Natureza como linguagem. 

Tal linguagem, para o filósofo, é emi-nentemente visual e, apesar do caráter arbitrário inerente a todas elas, tem tam-bém, como qualquer outra, uma constância que a valida enquanto conjunto de normas estáveis. Usando as imagens do próprio Berkeley, o caráter arbitrário dessa linguagem é o mesmo existente entre o rubor ou a palidez do semblante de um homem e a vergonha ou o medo, que consideramos signos uns dos outros; assim como, mesmo não podendo encontrar um vínculo necessário entre a pouca ou grande vivacidade, a distinção, ou a confusão de nossas percepções, de um lado, e uma maior ou menor distância, de outro, estabelecemos, entre elas, relações de referência. Relações que são em certa medida arbitrárias, mas que se tomam possíveis porque as conexões entre as percepções se dão de forma constante, e sua decifração por nós é exercitada desde que viemos ao mundo, abrimos os olhos e enxergamos pela primeira vez. 

Seu caráter eminentemente visual se configura porque as idéias visuais são mais aptas que as outras para representar as percepções táteis. Isso porque, ao contrário dos sons que, percebidos em um mesmo instante, fundem-se em um só, as imagens nos dão ao mesmo tempo um grande número de objetos visíveis distintos e separados uns dos outros. No entanto, os mesmos critérios que possibilitam a relação de significação entre as idéias visuais e táteis, são responsáveis por ocultá-la. Pois por sua constância, por não termos lembrança de seu aprendizado e por terem maior aptidão a representarem as idéias do tato, confundimos umas com as outras e acreditamos fazerem parte de um mesmo objeto. "Não podemos abrir nossos olhos sem que a noção de distância, de corpos e de figuras tangíveis seja sugerida pelas idéias visuais. A transição das idéias vi-suais às idéias táteis é tão rápida e súbita que dificilmente podemos deixar de pensar que elas são igualmente objeto imediato da visão." (NTV, § 145) 

É assim que, conforme nos esquecemos do aprendizado dessa linguagem, somos levados a fundar suas relações de significação em realidades "extralinguísticas". E é assim, portanto, que, ao nos apropriarmos da experiência daquele que está dando os primeiros passos nas letras, somos capazes de nos livrar de nossos inúmeros vícios de linguagem.


PARA CONHECER MAIS 

• Berkeley et le voile des mots. Geneviève Brykman. Vrin. 1993.



O TORY HANOVERIANO

Precoce e totalmente dedicado ao trabalho intelectual, George Berkeley tornou-se conhecido pela publicação de uma série de obras de fôlego, em rápida sucessão. A primeira surgiu em 1709, quando ele tinha apenas 24 anos de idade: sua Nova teoria da visão. No ano seguinte, apareceu o Tratado sobre os princípios do conhecimento humano e, em 1713, os Três diálogos entre Hilas e Filonous, nos quais retomou e desenvolveu os argumentos do Tratado. Antes, porém, em 1712, o pensador irlandês, clérigo e mais tarde bispo anglicano, havia publicado Obediência passiva, série de três sermões nos quais pregava a sujeição, sem questionamento, ao poder real. 

Era um momento oportuno para esse tipo de proclamação de fidelidade. Chegava ao fim o governo da rainha Ana, filha de Jaime II, que morreria em 1714, sem deixar descendentes vivos. Para evitar que Jaime Stuart, irmão dela, reivindicasse o trono, o Parlamento havia excluído, em 1701, os católicos da sucessão inglesa. Assim, a coroa foi entregue, em 1715, a um parente distante: George, governante de Hanover, pequeno Estado alemão. 

A presença de um alemão, no trono inglês, estimulou o filho do monarca deposto a retomar o poder. Em 1715, ele desembarcou na Escócia, mas não conseguiu apoio e logo deixou o país. Durante a breve incursão, Berkeley provou sua lealdade à recém instalada dinastia de Hanover, escrevendo um opúsculo no qual aconselhava os tories (conservadores) a não embarcar em aventuras. Por tudo isso, o filósofo irlandês chegou a ser apresentado como um "tory hanoveriano". 

CRONOLOGIA 

1685 NASCIMENTO DE GEORGE BERKELEY. 

1700 INGRESSA NO TRINITY COLLEGE, DE DUBLIN, GRADUANDO-SE QUATRO ANOS DEPOIS. 

1709 TORNA-SE DIÁCONO DA IGREJA ANGLICANA. PUBLICA NOVA TEORIA DA VISÃO

1710 É ORDENADO SACERDOTE. LANÇAMENTO DE SEU TRATADO SOBRE OS PRINCÍPIOS DO CONHECIMENTO HUMANO

1712 PUBLICAÇÃO DE OBEDIÊNCIA PASSIVA, COM SERMÕES NOS QUAIS DEFENDE A SUBMISSÃO AO PODER REAL. 

1713 PUBLICAÇÃO DE TRÊS DIÁLOGOS ENTRE HILAS E FILONOUS

1724 TORNA-SE DEÃO NA CIDADE DE DERRY. 

1728 DEPOIS DE CASAR-SE, VAI COM A MULHER PARA A AMÉRICA E FIXA-SE EM NEWPORT (RHODE ISLAND), SÓ RETORNANDO A LONDRES EM 1731. 

1732 PUBLICAÇÃO DE ALCHIPHRON, OBRA ESCRITA EM NEWPORT. 

1731 É CONSAGRADO BISPO DE CLOYNE, EM DUBLIN, 

1741 PUBLICAÇÃO DE SIRIS

1752 DOENTE E ENFRAQUECIDO, RENUNCIA AO EPISCOPADO E FIXA-SE EM OXFORD. 

1753 MORTE DE BERKELEY, EM OXFORD. 


Texto 15 - John Locke - por Nicola Abbagnano


§ 452. LOCKE: VIDA E ESCRITOS


No tronco secular do empirismo inglês, que vai de Rogério Bacon e Ockham a Bacon de Verulam e Hobbes, enxerta João Locke a exigência problemática do cartesianismo. Nascido a 29 de Agosto de 1632, Locke viveu a sua juventude no período tempestuoso da história inglesa em que ocorreram a primeira revolução e a decapitação de Carlos 1. Estudou na Universidade de Oxford, cujo chanceler John Owen. era defensor de uma política de tolerância para com as diferentes religiões: esta ideia não deixou de influir sobre o jovem Locke.

Em 1658 obteve o grau de mestre das artes e foi chamado a ensinar na própria universidade de Oxford. Começou então o período mais importante da sua formação espiritual. A maior influência exercida sobro ele foi a das obras de Descartes, mas estudou também Hobbes e provavelmente Gassendi. Em 1666 começou a ocupar-se de estudos naturais e a estudar medicina; e, conquanto não tomasse nunca o título de doutor, os amigos passaram a tratá-lo de "doutor Locke". Ocupava-se também de problemas econômicos e políticos e entrou na política militante por volta dos trinta e cinco anos, quando se tornou secretário de Lord Ashley, que foi em seguida conde de Shaftesbury. Em 1672 Lord Ashley foi elevado a Lord chanceler e Locke participou activamente na vida política, apesar da sua saúde precária. Em 1675 Shaftesbury perdeu a protecção do rei Carlos 11 e Locke retirou-se para França, onde viveu cerca de quatro anos, dedicando-se à preparação do Ensaio. Voltou a Londres pelos fins de 1679 para ser de novo vizinho de Shaftesbury que retornara ao poder.

Mas este, inculpado de outra traição, foi obrigado a fugir para a Holanda, onde morreu, pouco depois (1682). Não obstante a sua atitude prudente, Locke tornou-se suspeito e em 1683 exilou-se voluntariamente na Holanda, onde permaneceu por mais de cinco anos. Aí tomou parte ativa nos preparativos da expedição de Guilherme d'Orange que se efetuou em Novembro de 1688. No séquito da Princesa Maria, mulher de Guilherme, Locke retornou a Inglaterra em 1689. A sua autoridade tornou-se então extraordinária: ele era o representante intelectual e o defensor filosófico do novo regime liberal.

Começou então o período mais intenso da sua actividade literária. Em 1689 saía anonimamente a sua Epístola de tolerância. Também anonimamente saíram em 1690 os Dois Tratados sobre o governo. E em 1690 apareceu finalmente o Ensaio sobre o intelecto humano, que obteve logo um sucesso extraordinário. Nos anos seguintes Locke ocupou-se de outras obras filosóficas, entre as quais a polêmica com Stillingfleet, o tratado publicado postumamente sobre a Conduta do intelecto e o Exame de Malebranche. Em 1693 publicou os Pensamentos sobre a educação; e, entre 1695 e 1697, publicava os ensaios sobre a Racionalidade do cristianismo.

Até 1691, Locke aceitara a hospitalidade de Sir Francis Masham no castelo de Oates (Essex), a cerca de vinte milhas de Londres, onde foi rodeado de amorosos cuidados por parte de Lady Masham, que era filha do filósofo Cudworth (§ 419). Ali se extinguiu a 20 de Outubro de 1704.

Um certo número de apontamentos ou esboços que Locke deixara inéditos foram publicados recentemente. Entre eles, além de algumas páginas do seu Diário, avultam: o primeiro esboço do Ensaio (DraftA, 1671) publicado em1936, o segundo esboço do Ensaio, bastante mais completo do que o primeiro (Draft B, 1671), publicado em 1931; os Ensaios sobre direito de natureza (1663-64) publicados em 1954 e dois escritos sobre a tolerância (1660-62) que, juntamente com um Ensaio sobre a tolerância (1667 mas publicado em 1876) e com a Epístola, dão a ideia completa do desenvolvimento do pensamento de Locke sobre este tema.

§ 453. LOCKE: A RAZÃO FINITA E A EXPERIÊNCIA

O que em primeiro lugar distingue Locke de Descartes é o seu conceito da razão. Para Descartes a razão é uma força única, infalível e omnipotente: única, porque igual em todos os homens e possuída por todos na mesma medida; infalível, porque não pode enganar se se seguir o seu método, que é único em todos os campos das suas possíveis aplicações: omnipotente, porque extrai de si mesma o seu material e os seus princípios fundamentais, que lhe são "inatos", isto é, constitutivos. Para Locke, que se inspira em Hobbes, a razão não possui nenhum destes caracteres. A unidade da razão não é dada nem garantida mas há que formá-la e garanti-la através de uma adequada disciplina. "Há urna grande variedade visível entre as inteligências humanas, dizia Locke na Conduta do intelecto, e as suas constituições naturais estabelecem, a este respeito, uma diferença tão grande entre os homens que a arte e o engenho nunca poderão eliminar" (Conduct,§2). A infalibilidade da razão torna-se impossível pela limitada disponibilidade das ideias, pela sua frequente obscuridade, pela falta de provas, e é excluída pela presença na mente humana de falsos princípios e pelo carácter imperfeito da linguagem, da qual todavia a razão tem necessidade (Ensaio, IV, 17, 9-13). E quanto à omnipotência, até 1676 Locke excluía-a negando que a razão produzisse por si os princípios e o material de que se serve. "Nada, dizia ele, pode fazer a razão, essa poderosa faculdade de argumentar, se alguma coisa não é antes posta e concedida. A razão faz uso dos princípios do saber para construir alguma coisa de maior e de mais alto mas não põe esses princípios. Ela não põe o fundamento, conquanto frequentemente erija uma construção majestosa e erga até ao céu a sumidade do sabem (Essay on the Law of Nature, 11; ed. von Leyden, p. 125).

Dadas estas limitações constitutivas, a razão pode compreender no seu âmbito a esfera do saber provável, segundo uma exigência que tinha sido já apresentada por Gassendi. Diz Locke: "Como a razão percebe a conexão necessária e indubitável que todas as ideias ou provas têm umas com as outras, em cada grau de uma qualquer demonstração que produza conhecimento, assim, analogamente, ela percebe a conexão provável que une entre si todas as ideias ou provas de cada grau de uma  demonstração a cujos juízos seja devido o assentimento" (Ensaio, IV, 17, 2). Mas com esta extensão ao provável, a razão torna-se o guia ou a disciplina de todo o saber, mesmo modesto, e fora dela permanecem (segundo as palavras de Locke) só as opiniões humanas que são puros "efeitos do acaso , e da fortuna" isto é, "de um espírito que flutua à mercê de qualquer aventura, sem tino e sem norte" (lb., IV, 17, 2).

Nem mesmo a fé se subtrai então ao controle da razão: e Locke, já muito antes da publicação do Ensaio, nas notas do seu diário, atribui à razão mesma a função de orientação na escolha da fé ("Faith and Reason" in Essays on the Law of Nature, cit., p. 276). E como pertence à razão a disciplina do crer, assim lhe pertence a da convivência humana, isto é, da lei natural e do direito. Nos Ensaios sobre a lei de natureza ele já dizia: "Eu entendo por razão, não a faculdade do intelecto que forma o discurso e deduz os argumentos, mas alguns determinados princípios dos quais emanam as fontes de todas as virtudes assim como tudo o que é necessário para formar bem os costumes, já que o que destes princípios correctamente se deduz, a justo título se diz conforme à recta razão" (Essays, I, p. 111). No Ensaio sobre o intelecto humano estes princípios eram (em resultado da sequência desta exposição) mantidos e reforçados, e sobre eles assentavam as atitudes que Locke assumiu no domínio político e religioso, nas obras da sua maturidade.

A reforma radical que Locke operou no conceito da razão tem como finalidade adaptá-la à sua função de guia autónomo do homem num campo que não se restringe à matemática e à ciência natural mas abraça todas as questões humanas. A própria investigação gnoseológica de Locke nasce num terreno que não é o do conhecimento teórico mas o dos problemas humanos. O próprio Locke nos informou desta origem na Epístola ao leitor anteposta ao Ensaio. Numa reunião de cinco ou seis amigos (ocorrida provavelmente no Inverno de 1670), discutia-se sobre questões que nada tinham a ver com a que depois foi objeto da obra. Na discussão encontravam-se dificuldades por toda a parte e não se conseguia encontrar uma solução para as dúvidas.

Veio então à mente de Locke que, antes de se embrenhar em indagações desta natureza, era necessário examinar as capacidades próprias do homem e ver que objetos o seu intelecto seria ou não capaz de considerar. Desde então, Locke iniciou o trabalho para o Ensaio. E a partir daí, pode dizer-se, nasceu a primeira investigação crítica da filosofia moderna, isto é, a primeira investigação que tem por objeto o estabelecer as efetivas possibilidades humanas dentro dos limites que são próprios do homem.

Tais limites são próprios do homem porque são próprios da sua razão; mas são próprios da sua razão por que ela não é criadora ou onipotente, mas tem de contar com a experiência. É a ação condicionante da experiência que estabelece os limites dos poderes da razão e, portanto, em última análise, do uso que o homem pode fazer dos seus poderes em todos os campos das suas atividades. A experiência condiciona a razão em primeiro lugar fornecendo-lhe o material que ela é incapaz de criar ou produzir por si: as ideias simples, isto é, os elementos de qualquer saber humano. E em segundo lugar propondo à própria razão as regras ou os modelos ou, em geral, os limites, segundo os quais este material está ordenado ou pode ser utilizado. Locke tomava assim do cartesianismo e em particular da Lógica de Port Royal(§416) o conceito da atividade racional como atividade sintética ou ordenadora tanto das ideias como do material bruto de que esta atividade dispõe. Mas corrigia o ponto de vista cartesiano não só considerando a experiência a fonte deste material, mas também atribuindo à experiência mesma a função de controle de todas as construções que o espírito humano pode tirar de fora de si. Esta função de controle é o limite fundamental que a experiência impõe à atividade da razão, impedindo-lhe de se aventurar em construções demasiado audazes ou em problemas cujas soluções num sentido ou noutro não podem ser submetidas a prova. Desde os primeiros esboços do Ensaio Locke insistiu na derivação empírica de todo o material cognitivo, portanto na negação do inatismo (que seria para ele a onipotência da razão) e na redução das capacidades cognitivas humanas à esfera sensível.

Mas no Ensaio (e sobretudo na quarta parte da obra) a função de controle que a experiência é chamada a exercer sobre a atividade racional em todos os seus graus, um controlo intrínseco que é inerente a esta atividade e não lhe vem de fora,torna-se predominante e constitui aquilo que ainda hoje se pode considerar como o ensino fundamental que do empirismo lockiano passou para o iluminismo setecentista, para o racionalismo kantiano e para boa parte da filosofia moderna e contemporânea.

§ 454. LOCKE: OS FUNDAMENTOS DO "ENSAIO"


No Ensaio sobre  o intelecto humano, Locke declara pretender determinar "a origem, a certeza e a extensão o do conhecimento humano" nos seus vários graus, incluindo aqueles em que a certeza é mínima ou em que se não vai além da probabilidade. Declara também pretender conduzir esta investigação "como método ponderativo e histórico",isto é, analítico descritivo (o método que Gassendi recomendara à ciência em geral) evitando deter-se nos problemas metafísicos que podem nascer no decurso dela. Ele rejeita por isso a hipótese de Hobbes sobre a natureza material do espírito e das ideias e limita-se a considerar as ideias só como tais, isto é, como objetos de conhecimento.

Este é o autêntico pressuposto cartesiano da filosofia de Locke. Pensar e ter ideias são a mesma coisa. Logo, porém, Locke introduz a primeira limitação: as ideias derivam exclusivamente da experiência, isto é, são o fruto, não de uma espontaneidade criadora do intelecto humano, mas da sua passividade frente à realidade. E visto que para o homem a realidade ou é realidade interna (o seu eu) ou é realidade externa (as coisas naturais), assim as ideias podem derivar de uma ou de outra destas realidades e chamarem-se ideias de reflexão se derivam do senso interno, e ideias de sensação se derivam do senso externo.

São ideias de sensação, ou mais simplesmente sensações, o amarelo, o quente, o duro, o amargo, etc., e em geral todas as qualidades que atribuímos às coisas. São ideias de reflexão a percepção, o pensamento, a dúvida, o raciocínio, o conhecimento, a vontade e em geral todas as ideias que se referem a operações do nosso espírito. Locke mantém-se fiel ao princípio cartesiano que ter uma ideia significa percebê-la, isto é, ser consciente dela e deste princípio se vale na crítica das ideias inatas exposta no primeiro livro do Ensaio.

Este primeiro livro é como que uma introdução ao corpo da obra, visto que a doutrina das ideias inatas constitui uma instância que, se fosse aceite, tornaria impossível o empirismo como Locke o entende. Mediante as ideias inatas, o homem teria à sua disposição possibilidades ilimitadas e incontroláveis de conhecimento e nenhuma definição precisa das suas efetivas possibilidades seria possível. Locke não diz quais são os filósofos contra os quais se dirige a sua crítica do inatismo. Nomeia, é certo, a propósito do inatismo dos princípios práticos, Herbert di Cherbury (§ 419), mas não extrai dele as teses fundamentais que são objeto da sua crítica. É certo também que os argumentos cartesianos não deviam ser-lhe desconhecidas; mas o inatismo de Descartes não tem o sentido explícito e atual que Locke confuta.

Provavelmente, pretendeu fixar em forma típica as teses fundamentais de todo e qualquer inatismo de modo que a sua crítica adquirisse a máxima universalidade e valesse contra todos os defensores do inatismo. Esta crítica reduz-se substancialmente a um único argumento. As ideias inatas não existem porque não são pensadas: uma ideia não é se não for pensada. As ideias inatas deviam de facto subsistir em todos os homens e por isso também nas crianças e nos idiotas; mas visto que não são pensadas por estas categorias de pessoas, não existem nelas e não podem considerar-se inatas. Diz-se que as crianças chegam à consciência das ideias inatas na idade da razão; mas na idade da razão chega-se também ao conhecimento das que não são consideradas inatas: nada proíbe portanto que se possa chegar àquelas que se consideram inatas. Como não existem ideias inatas, também não existem princípios inatos, nem especulativos nem práticos. Os princípios especulativos que se consideram inatos, por exemplo "tudo o que é é", "é impossível para a mesma coisa ser e não sem não :são em verdade inatos porque não obtêm o consenso universal; mas mesmo se o obtivessem, não poderiam dizer-se inatos, já que pode demonstrar-se que os homens chegam a
eles por outra via, isto é, por outro meio de experiência (Ensaio, 1, 2, 3).

Quanto aos princípios práticos e morais, Locke afirma que "não se pode propor nenhuma regra moral da qual não se possa legitimamente exigir a razão: o que seria perfeitamente ridículo e absurdo se as regras morais fossem inatas ou tão evidentes, como todo o princípio inato deve ser, que se não tivesse necessidade de nenhuma prova em apoio da verdade que se possui e de nenhuma razão para merecer a aprovação dela" (1b., 1, 2, 4). Toda a força da argumentação de Locke está no princípio de que uma ideia ou noção qualquer para existir no espírito deve ser percebida: princípio estritamente cartesiano. Assim se explica que Leibniz (§438), embora admitindo o mesmo princípio, tenha defendido o inatismo distinguindo graus de percepção. Se as ideias inatas não são percebidas claramente pelo espírito, podem, segundo Leibniz, ser percebido, Mas obscuramente e existir por isso no espírito sob a forma de pequenas percepções.

É esta a tese sustentada por Leibniz contra Locke nos Novos ensaios sobre o intelecto humano. Leibniz admite por isso, como Locke, o princípio cartesiano da ideia como objecto de consciência e chega à confirmação do inatismo distinguindo apenas graus diversos de consciência. Locke separa-se de Descartes e dos cartesianistas ao negar que "a alma pense sempre". "Não há nenhuma razão para crer, diz ele (1b., 11, 1, 20), que a alma pense antes que os sentidos lhe tenham fornecido as ideias em torno dos quais ela pensa. À medida que estas aumentam e são avaliadas em virtude do exercício, aumenta a faculdade de pensar nas suas várias manifestações, isto é, o compor as ideias e refletir sobre as próprias operações. Aumenta o seu patrimônio e ao mesmo tempo aumenta a sua faculdade de recordar, imaginar e raciocinar, e todos os outros modos do pensamento". A mesma possibilidade do pensamento é portanto condicionada e limitada, segundo Locke, pela experiência.

§ 455. LOCKE: AS IDEIAS SIMPLES E A PASSIVIDADE DO ESPÍRITO

Se todo o nosso conhecimento resulta de ideias e se as ideias derivam todas da experiência, a análise da nossa capacidade cognitiva deverá em primeiro lugar fornecer uma classificação, isto é, um inventário sistemático de todas as ideias que a experiência nos fornece. É um tal inventário que visa formular o Livro do Ensaio.  Em primeiro lugar cumpre distinguir as ideias simples e as complexas. A experiência (isto é, a sensação e a reflexão), fornecem-nos apenas ideias simples; as ideias complexas são produzidas pelo nosso espírito mediante a reunião de várias ideias simples.

De facto, quando o intelecto é provido pela sensação e pela reflexão de ideias simples, tem a capacidade de reproduzi-las, compará-las e uni-las de um modo infinitamente vário. Mas nem o intelecto mais poderoso pode inventar ou construir uma ideia simples nova, isto é, não derivada da experiência, nem pode destruir nenhuma das ideias adquiridas. Aqui temos o insuperável limite do intelecto humano. Ignorar ou desconhecer este limite significa, segundo Locke, abandonar-se a sonhos quiméricos (Ensaio, 1, 2, 2).

As ideias simples podem derivar ou de um só sentido (como as das cores derivam da vista, as dos sons do ouvido, etc.); ou de mais sentidos (como as ideias de espaço, extensão, figura, repouso o movimento); ou apenas de reflexão (percepção ou pensamento, volição ou vontade); ou ao mesmo tempo da percepção e da reflexão (prazer, dor, força, existência, unidade). Cumpro distinguir das ideias as qualidades do objecto que são modificações da matéria nos corpos que causam em nós aquelas percepções. Todavia, nem toda a ideia é a cópia ou a imagem de uma qualidade objetiva. "Tudo o que o espírito percebe em si mesmo ou que é o imediato objecto da percepção, do pensamento, do intelecto, chama-se ideia: a força que produz em nós a ideia chama-se qualidade do objecto à qual a força pertence" (1b., 11, 8, 8).

Locke retoma a este propósito a distinção entre qualidades objetivas e qualidades subjetivas, que já Galileu e Descartes haviam estabelecido, e que ele vai buscar ao físico Boyle (Origem das formas e das qualidades, 1666), chamando qualidades primárias às objetivas, secundárias às outras. As qualidades primárias, que são originárias dos corpos e inseparáveis deles, produzem em nós as ideias simples de solidez, extensão, figura, movimento, repouso e número. As qualidades secundárias, que não existem nos objetos mas são produzidas em nós pelas várias combinações das qualidades primárias, são as cores, os sons, os sabores e os odores. As qualidades secundárias em nada se assemelham aos corpos, enquanto as primárias são imagens dos corpos mesmos. Outras qualidades dos corpos são as forças, isto é, a sua capacidade de produzir alterações nas qualidades primárias dos outros corpos.

Entre as ideias simples de reflexão, Locke considera fundamental a percepção, que é o próprio pensamento, e ao mesmo tempo examina as que se referem às outras operações do espírito: a memória, a capacidade de distinguir, de comparar, de compor as ideias e, enfim, a de abstrair, da qual nascem as ideias gerais. "Deste modo, conclui-se (lb.,11,11,15),tracei uma breve e verdadeira descrição do primordial início do conhecimento humano, mostrando onde o espírito recebia os seus primeiros objetos e através de que passos efectuava os seus quais vem a ser constituído todo o conhecimento , de que é capaz".

§ 456. LOCKE: AS IDEIAS COMPLEXAS

Ao receber as ideias simples o espírito é puramente Passivo. As ideias simples constituem os materiais e os fundamentos das suas construções. O espírito torna-se activo ao reordenar a seu modo este material e também ao variar e multiplicar indefinidamente os objectos do pensamento. A atividade do espírito explica-se de três modos fundamentais: 1º: Combinando diversas ideias simples numa ideia composta de modo a formar as ideias complexas; 2º: Reunindo duas ideias, seja simples, seja complexas, de modo a considerá-las simultaneamente, sem no entanto as unir numa única ideia, e formando assim ideias de relações; e 3º. Separando uma ideia das outras que a acompanham na realidade, operação que se chama abstrair e mediante a qual são produzidas as ideias gerais. Locke analisa separadamente cada uma destas três manifestações da atividade racional.

As ideias complexas, conquanto infinitas em número, deixam-se reduzir a três categorias fundamentais: modos, substâncias e relações. os modos são as ideias complexas que são consideradas não subsistentes por si mas apenas como manifestações de uma substância (ex. triângulo, gratidão, delito, etc.). Substâncias são, pelo contrário, ideias complexas que são consideradas como subsistentes por si mesmas (por ex. homem, pombo, ovelha, etc.). A relação é o confronto de uma ideia com outra. De todos estes vários tipos de ideias complexas Locke detém-se a considerar as formas principais. Pelo que respeita aos modos, começa por distinguir os modos simples, que são variações ou combinações diferentes da mesma ideia simples (por ex. uma vintena ou uma dúzia, etc.) e os modos mistos, que são combinações de ideias simples
diversas (por ex. a beleza, o furto, etc.). Em seguida passa a examinar os principais modos simples como o espaço, o tempo, o número, o pensamento, a força. A propósito do espaço e do tempo, examina também as ideias de finito e de infinito e nega a este propósito que o homem tenha a ideia do espaço infinito ou do tempo infinito. A ideia do infinito nasce em virtude da possibilidade que temos de repetir indefinidamente a ideia de uma extensão espacial ou temporal; mas toda a ideia positiva de tempo ou de espaço é sempre finita (Ensaio, 11, 17, 13).

A propósito da ideia de força, examina o problema da liberdade humana que é precisamente a força ou o poder que o homem encontra em si mesmo para começar ou impedir, continuar ou interromper, as suas ações voluntárias. Locke reconhece no homem a liberdade de agir, não a de querer. O homem é livre no sentido de poder fazer ou não fazer o que quer, mas não no sentido de poder querer ou não querer o que quer. "O espírito, diz Locke (lb., H, 21, 24), não tem, com respeito à vontade, o poder de agir ou de não agir no qual consiste a liberdade. Ele não tem o poder de impedir a vontade; não pode evitar uma determinação sobre a acção prospectada, por muito breve que seja a consideração dela". O pensamento, por muito rápido que seja, ou deixa o homem no estado em que se encontrava antes de pensar ou o muda: ou continua a ação ou termina-a. É por isso evidente que ele ordena e dirige o homem ao preferir uma alternativa ou ao negligenciar outra e que a continuação da acção ou a mudança tornam inevitavelmente voluntárias. Locke encontra-se com Hobbes (§ 408) nesta negação da liberdade do querer humano; mas funda esta negação unicamente no mecanismo psicológico da decisão e não já na relação entre a vontade e as coisas externas, na qual Hobbes a fundava. 

Particularmente importante é a análise da ideia complexa de substância. Considerando que várias ideias simples são constantemente unidas entre si,  o espírito é levado inadvertidamente a considerá-las como uma única ideia simples; e já que não chega a imaginar como uma ideia simples pode subsistir por si, habitua-se a supor um qualquer substratum que seja o fundamento dela. Este substratum chama-se substância. Locke afirma claramente o carácter arbitrário do conceito de substância, que supera o testemunho da experiência. "Se, diz ele (lb., II, 23, 2), alguém perguntar que coisa é o substrato a que a cor ou o peso aderem, responder-se-á que tal substrato são as próprias partes extensas e sólidas; e se se perguntar a que coisa aderem a solidez e a extensão, não se poderá responder, no melhor dos casos, senão como aquele indiano, a quem, depois de haver afirmado que o mundo é sustentado por um grande elefante, perguntaram sobre que se apoiava o elefante, ao que respondeu: sobre uma grande tartaruga. E, como lhe perguntassem ainda, que apoio tinha a tartaruga, respondeu: alguma coisa que eu não conheço, na verdade... A ideia a que nós damos o nome geral de substância não é senão tal suposto mas desconhecido sustentáculo das qualidades efetivamente existentes". Essa crítica da substância ficou famosa na tradição filosófica. Todavia, ela toca apenas um aspecto da substância, aquele pela qual ela é hypokeimenon ou subjectum ou, como diz Locke, substratum: que é apenas um dos significados que a substância tem na metafísica clássica, por exemplo, em Aristóteles. Mas há em Locke também a crítica de um alto aspecto ou significado da substância, bastante mais importante do ponto de vista metafísico; e é o aspecto pelo qual a substância é razão de ser ou causa das próprias determinações.

Esta crítica encontra-se no terceiro livro do Ensaio a propósito dos nomes das substâncias e assume a forma da crítica das essências reais. Se estas essências, raciocina Locke, fossem acessíveis ao entendimento humano, este deveria ser capaz de deduzir delas, por via de raciocínio, todas as determinações das coisas a que aquelas essências pertencem, por exemplo, deveria ser capaz de deduzir da essência real do ouro a sua fusibilidade ou a sua maleabilidade e as outras suas qualidades sem que tais qualidades fossem sequer conhecidas por experiência. Mas isto, segundo Locke, é impossível ao homem. "Não poderemos nunca saber, diz ele, qual seja o número preciso das propriedades que dependem da essência real do ouro, e por consequência o ouro não existiria a menos que conhecêssemos a essência real do ouro por si mesma e com base nesta determinássemos a espécie em questão." (1b., HI, 6, 19). Aquilo que sabemos do ouro é um conjunto de qualidades e para explicar a coexistência constante destas qualidades recorremos ao termo de substância; mas a substância autêntica, se existisse ou fosse conhecida pelo homem, deveria ser conhecida independentemente das qualidades e constituir aquela razão de ser da qual elas deveriam ser deduzidas sem recorrer à experiência. É este sem dúvida o aspecto mais importante da crítica de Locke à noção de substância e a um dos princípios fundamentais da metafísica tradicional.

A atividade do espírito, manifesta-se não só na produção das ideias complexas como no propor ou no reconhecer as relações. O intelecto de fato não se limita nunca à consideração de uma coisa no seu isolamento: progride sempre para lá dela para reconhecer as relações em que ela está com as outras. Nascem assim as relações e os nomes relativos com que se indicam as coisas que são postas em relação. Entre elas, são fundamentais as de causa e efeito, de identidade e de diversidade, e a propósito destas últimas Locke aborda o problema da identidade da pessoa humana. Ele percebe esta identidade na consciência que acompanha os estados ou os pensamentos diversos que se sucedem no sentido interno. O homem não só percebe como também percebe o perceber; todas as suas sensações ou percepções são acompanhadas da consciência que é o seu eu a senti-las ou a percebê-las. Esta consciência procede de modo a que as várias sensações ou percepções constituam um único eu e é por isso o fundamento da unidade da pessoa (1b., 11, 27, 10). A substância espiritual não pode garantir a identidade se a consciência não intervier: sem esta a substância não pode ser uma pessoa, como o não pode ser uma carcaça (Ib., 11, 27, 23). Entre as relações Locke coloca também as leis morais em virtude das quais julgamos o valor das ações. O bem e o mal moral consistem na conformidade ou não conformidade de uma acção à lei que pode ser lei divina, ou lei jurídica, ou lei do costume. Mesmo as ideias de virtude e de vício derivam por isso da experiência porque consistem numa coleção de ideias simples que o homem recebe da sensação ou da reflexão. 

§ 457. LOCKE: A LINGUAGEM E AS IDEIAS GERAIS

A atividade do espírito manifesta-se, não só no formar ideias complexas de modos, de substâncias e de relações, mas também na abstração que dá origem às ideias gerais. Mas as ideias gerais são condicionadas pela linguagem; e à linguagem e à formação das ideias gerais Locke dedica a terceira parte do Ensaio. A linguagem, nascida da necessidade de comunicação entre os homens, é constituída por palavras que são, segundo Locke, sinais convencionais. Estes sinais referem-se originariamente às ideias existentes no espírito de quem fala; mas quem as emprega supõe, no próprio ato, que eles sejam também sinais das ideias que existem no espírito dos outros homens com que comunica e que além disso signifiquem a realidade das coisas. Ora, conquanto na realidade só existam coisas particulares, a maior parte das palavras são,
em todas as línguas, constituídas por termos gerais. As palavras tornam-se gerais quando se tornam sinais de ideias gerais; e as ideias tornam-se gerais quando se separam das circunstâncias de tempo e lugar e de qualquer outra ideia que possa determinar esta ou aquela existência particular. "Por meio de tal abstração, diz Locke, as ideias tornam-se capazes de representar mais indivíduos em vez de um, como cada um deles possui em si uma conformidade com a ideia abstrata, é chamado com o nome que indica a ideia mesma".

O ponto de vista de Locke é pois rigorosamente nominalístico. "O geral e o universal não pertencem à existência real das coisas, mas são invenções e criaturas do intelecto, feitas para o seu próprio uso, e concernem só aos sinais, isto é, às palavras ou ideias" (Ensaio, 111, 3, 11). A doutrina de que as palavras e as ideias gerais são sinais havia sido exposta por Guilherme de Ockam (§ 316) no século XIV; a Summa totius logicae do franciscano inglês era ainda lida e estudada em Inglaterra nos tempos de Locke, que adota a sua doutrina fundamental. Os nomes e as ideias gerais são sinais das coisas: isto é, estão em lugar das coisas mesmas. Os nomes gerais indicam as ideias gerais e as ideias gerais são produzidas pelo intelecto na medida em que este observa a semelhança que existe entre grupos de coisas particulares. Assim, às ideias gerais não corresponde em realidade senão a semelhança que existe entre as próprias coisas. Formada a ideia geral, o intelecto assume-a como modelo das coisas particulares às quais ela corresponde e que portanto são indicadas com um único nome. Formada, por exemplo, a ideia geral do homem mediante a observação da semelhança que existe entre os homens, o intelecto emprega o nome homem para indicar todos os homens e atribui à espécie homem todos os indivíduos semelhantes (1b., 111, 3, 13). A imutabilidade das essências, que são precisamente as ideias gerais, é simplesmente a persistência destas ideias no espírito, persistência independente das mutações que sofrem os objetos reais correspondentes. Mas a essência não implica por si própria nenhuma forma de universalidade real porque é apenas um sinal criado pelo intelecto (Ib., 111, 4, 19): Locke reproduz assim o radical nominalismo de Ockam. 

§ 458. LOCKE: A REALIDADE DO CONHECIMENTO


O IV livro do Ensaio aborda os problemas relativos à validade do conhecimento e, por conseguinte, à sua extensão e aos graus da sua certeza, e é nele que se apresentam as conclusões relativas ao escopo geral da obra. A experiência fornece o material do conhecimento, mas não é o próprio conhecimento. Este tem sempre que tratar de ideias porque a ideia é o único objecto possível do intelecto; mas não se reduz às ideias por que consiste na percepção de um acordo ou de um desacordo das ideias entre si. Como tal, o conhecimento pode ser de duas espécies fundamentais. É conhecimento intuitivo quando o acordo ou o desacordo de duas ideias é visto imediatamente e em virtude das próprias ideias, sem a intervenção de outras ideias. Assim se concebe imediatamente que o branco não é negro, que três são mais do que dois, etc. Este conhecimento é o mais claro e o mais certo que o homem possa alcançar e é por isso o fundamento da certeza e da evidência de todos os outros conhecimentos. Oconhecimento é, ao invés, demonstrativo quando o acordo ou o desacordo entre duas ideias não é percebido imediatamente mas se torna evidente mediante o uso de ideias intermediárias que se chamam provas. O conhecimento demonstrativo funda-se evidentemente num certo número de conhecimentos intuitivos. De facto, cada passo de um raciocínio, que tenda a demonstrar a relação de duas ideias à primeira vista afastadas entre si, é feito mediante a relação intuitiva entre estas duas ideias com outras que, por seu turno, estão em relação intuitiva.

A certeza da dimensão funda-se na da intuição. Mas especialmente nas longas demonstrações, quando as provas são muito numerosas, o erro torna-se possível; de modo que o conhecimento demonstrativo é bastante menos seguro do que o intuitivo. (Ensaio, IV, 2, 1-7). Além destas duas espécies de conhecimento, há um outro que é o conhecimento das coisas existentes fora de nós. Locke é consciente do problema que emerge da própria orientação da sua doutrina. Se o espírito, em todos os seus pensamentos e raciocínios, não tem de tratar senão com ideias, se o conhecimento consiste na percepção do acordo ou do desacordo entre as ideias, de que modo se pode chegar a conhecer uma realidade diversa das ideias? Reduzido o conhecimento a ideias e relações, não ficará reduzido a um puro castelo no ar, a uma fantasia não diferente do mais quimérico sonho? É certo, segundo Locke, que o conhecimento só é real se houver uma conformidade entre as ideia se a realidade das coisas. Mas como pode ser garantida tal conformidade se a realidade das coisas nos éconhecida só através das ideias? A tais interrogações, valorizadas em toda a força do seu significado (lb., IV, 4, 1-3), Locke prepara a resposta com observações preliminares. Pelo que toca às ideias simples, que o espírito não tem capacidade para produzir por si, é necessário admitir que elas devem ser o produto das coisas que atuam sobre o espírito de modo natural e produzem nele as percepções correspondentes. 

As ideias complexas, ao invés, exceptuando as de substância, são construções do espírito, portanto não valem como imagens das coisas nem se referem à realidade como ao seu original. As ideias de substância devem, para ser verdadeiras, corresponder, elas também, aos seus arquétipos ou modelos externos. Isto é
válido também para as proposições, que devem consistir numa união ou separação de sinais correspondentes ao acordo ou ao desacordo das coisas representadas pelos próprios sinais. Exceptuam-se apenas as proposições universais, cuja verdade consiste simplesmente na correspondência entre a palavra e as ideias e não na correspondência entre as palavras e as coisas; e exceptuam-se também as máximas que são proposições de imediata evidência, não concernentes à realidade existente. Estas considerações preliininares (lb., IV, 4, 5-7) deixam todavia irresolvido o problema da justificação dos conhecimentos que implicam legitimamente uma referência à realidade externa. Este problema é considerado por Locke sob três aspectos, correspondentes a três ordens diversas de realidade. Ele afirma que "nós temos o conhecimento da nossa própria existência por meio da intuição: da existência de Deus por meio da demonstração; e, das outras coisas por meio da sensação".

No que se refere à existência do eu, Locke serve-se do procedimento cartesiano. Eu penso, raciocino, duvido e assim percebo a minha própria existência, que a própria dúvida me reconfirma. Por conseguinte, a experiência convence-nos de que temos um conhecimento intuitivo da nossa própria existência e uma infalível percepção interna da nossa realidade (lb., IV, 9, 3). No que respeita à existência de Deus, Locke adopta com algumas variantes a demonstração causal. O nada não pode produzir nada; se alguma coisa existe (e alguma coisa existe seguramente por que eu existo) quer dizer que foi produzida por outra coisa; e, não se podendo ascender ao infinito, tem de se admitir que um ser eterno produziu todas as coisas. Este ser eterno produziu mediante o homem a inteligência, deve ter portanto uma inteligência infinitamente superior
à que foi por ele criada; e pelo mesmo motivo uma potência superior à de todas as forças criadas que atuam na natureza. Evidentemente, este ser eterno, inteligentíssimo, potentíssimo, é Deus (lb., IV, 10).

Quanto à realidade das coisas, o homem não tem outro meio de a conhecer senão pela sensação e, precisamente, pela sensação atual. Não há nenhuma relação necessária entre a ideia e a coisa: só o facto de recebermos num dado momento a ideia do exterior nos faz conhecer que algo existe nesse momento fora de nós e produz a ideia em nós. Não é a sensação mas a atualidade da sensação que permite afirmar a realidade do seu objecto. "Ter a ideia de uma coisa no nosso espírito, diz Locke (Ib., IV, 11, 1), não prova a existência de uma coisa, assim como o retrato de um homem não prova que ele está no mundo ou, as visões de um sonho não constituem uma história verdadeira" . Indubitavelmente, o conhecimento que temos da realidade das coisas exteriores não é tão certo como o conhecimento intuitivo de nós próprios ou o conhecimento demonstrativo de Deus; todavia, é bastante certo para merecer o nome de conhecimento. Ninguém é tão céptico que possa não estar certo da realidade das coisas que vê e sente.

E se pode duvidar delas, diz Locke, nunca poderá ter uma discussão comigo, já que nunca estará seguro de que eu diga alguma coisa contra sua opinião (1b., IV, 11, 3). Não é admissível que as nossas faculdades nos enganem a tal ponto; é indispensável confiarmos nas nossas faculdades desde o momento em que só podermos conhecê-las empregando-as. Assim, a certeza que a sensação atual nos dá sobre a realidade da coisa que a produz é suficiente a todos os objetivos humanos. Ademais, pode ser confirmada por razões concorrentes. Em primeiro lugar, de facto, as ideias vêm a faltar-nos quando nos falta o órgão de sentido adequado: o que é uma prova de que as sensações são produzidas por causas externas que impressionam os sentidos. Em segundo lugar, as ideias são produzidas no nosso espírito sem que nós as possamos evitar; o que quer dizer que não são produzidos por nós, mas por uma causa externa. Em terceiro lugar, muitas ideias são produzidas em nós com dor ou com prazer, ao passo que podemos recordá-las sem que sejam
acompanhadas por estes sentimentos; o que quer dizer que só o objecto externo os produz em nós quando impressiona os sentidos. Em quarto lugar, os sentidos são testemunhas recíprocas em relação às coisas externas e assim se confirmam mutuamente. Locke sustenta que a certeza obtida através da sensação atual e dos motivos que a confirmam é suficiente ao homem para as necessidades da sua condição. Uma vez mais, ele reconhece que as faculdades humanas não estão adaptadas para se estenderem a todo o ser nem para alcançarem um conhecimento perfeito e livre de escrúpulos ou dúvidas, mas ao mesmo tempo reconhece que, tais como são, alcançam uma evidência suficiente aos objectivos da vida, isto é, para nos orientarmos frente à felicidade e à miséria; e "para lá disso, nadanos concerne, seja do ser, seja do conhecer" (1b., IV, 11, 8). 

Por outro lado, aprova o princípio de que a certeza da realidade das coisas é garantida apenas pela sensação atual e que para além desta não há certeza. Mesmo que tenha visto há um minuto aquela colecção
de ideias simples que é um homem, não o vejo actualmente, não posso estar certo de que o mesmo homem continue a existir, uma vez que não existe conexão necessária entre a sua existência de há um minuto e a sua existência de agora. De mil modos ele pode ter cessado de existir desde o momento em que a sua existência
foi testemunhada pelos meus sentidos. É certamente provável que milhões de homens existam atualmente e é compreensível que as minhas ações sejam inspiradas pela confiança na existência deles; mas tudo isto é probabilidade, não certeza (1b., IV, li, 9).

§ 459. LOCKE: A RAZÃO

Para além do conhecimento certo estende-se o domínio do conhecimento provável. O conhecimento certo é muito restrito: consiste apenas na intuição do nosso eu, na demonstração de Deus e na sensação actual das coisas externas. Dada esta restrição, a vida humana seria impossível se dependesse em todos os casos da
posse de um conhecimento certo. Providencialmente, portanto, o homem é dotado também de uma faculdade com a qual supre a falta de um conhecimento certo; e esta faculdade é o juízo. O juízo consiste, como o conhecimento, no acordo ou no desacordo das ideias entre si. Mas, diversamente do conhecimento, este acordo não é percebido, mas apenas presumido. No conhecimento a demonstração consiste em mostrar o acordo ou o desacordo de duas ideias mediante uma ou mais provas que têm uma conexão constante, imutável e visível, uma com a outra. O juízo, ao invés, não faz demonstrações, aponta apenas probabilidades, devidas à intervenção de provas cujo conhecimento não é constante nem imutável mas é ou parece suficiente para induzir o espírito a aceitá-las. A probabilidade, portanto, concerne a proposições que não são certas mas nos oferecem apenas um certo encorajamento a considerá-las verdadeiras. Os fundamentos da probabilidade são dois: 1º a conformidade de alguma coisa com o conhecimento, a observação e a experiência; 2º o testemunho do soutros, atestando as suas observações e as suas experiências. Nestes dois fundamentos se baseiam os graus diversos da probabilidade, e aos
graus diversos da probabilidade devem corresponder graus diversos do consenso dado às proposições prováveis. O primeiro grau de probabilidade é o de uma proposição sobre a qual se obtém o consenso geral de todos os homens. Esta probabilidade é tão alta que é vizinha do conhecimento. Obtém-se o segundo grau de probabilidade quando a nossa experiência coincide com o testemunho de muitas outras pessoas dignas de fé. O terceiro grau da probabilidade respeita às coisas que ocorrem indiferentemente, quando são testemunhadas por pessoas dignas de fé. Nesta última espécie de probabilidade se funda a história, a qual, por conseguinte, exorbita do conhecimento certo e é confinada por Locke no último e mais baixo grau da probabilidade (Ensaio, IV, 16, § 11).

O conhecimento demonstrativo e o juízo provável constituem, um e outro, a atividade própria da razão. Evidentemente, o conhecimento intuitivo, que consiste na percepção de um acordo ou de um desacordo entre as ideias, e o conhecimento sensível da realidade externa exorbitam da razão, a qual não tem com respeito a eles nenhum papel. Mas a intuição e os sentidos constituem um campo muito restrito de conhecimento. Este campo é ampliado com seguridade pelo conhecimento demonstrativo no qual a razão intervém para encontrar as provas, isto é, as ideias intermédias e para as ordenar entre si. Na demonstração, a razão apresenta-se como sagacidade, isto é, descoberta de provas e ação, isto é, ordenação das próprias provas. Mas no conhecimento provável o papel da razão é igualmente essencial porque lhe impede de encontrar, examinar e valorar os fundamentos da probabilidade. A faculdade que encontrou a necessária e indubitável conexão das ideias na demonstração e a conexão provável das provas
no juízo é a razão. Abaixo da probabilidade subsistem apenas opiniões, que são efeitos do acaso e pelas quais o espírito oscila entre todas as aventuras, sem tinonemnorte (lb.,IV,17,2). Locke nega que a razão tenha o seu instrumento mais apropriado no silogismo da lógica aristotélico-escolástica. O silogismo não é necessário para raciocinar rectamente porque não serve nem para descobrir as ideias nem para estabelecer a conexão entre elas. O seu único uso é polémico: pode servir para defender os conhecimentos que supomos ter.

Os limites, da razão são dados, como disse, pela limitada disponibilidade do material empírico e pela falibilidade da própria razão. Em primeiro lugar, de facto, a razão nada pode fazer onde faltem as ideias. "Onde quer que careçamos de ideias, diz Locke, o nosso raciocínio pára e estamos nos limites de toda a nossa reflexão" (lb., IV, 17, 9). Em segundo lugar, mesmo dispondo das ideias, a razão é limitada ou impedida pela confusão ou imperfeição delas; e em terceiro lugar, é limitada ou impedida pela falta, de provas, isto é, pela falta daquelas ideias que deveriam servir para demonstrar a concordância certa ou provável entre duas ideias. Mas a razão é também falível, podendo por isso partir de falsos princípios
e, neste caso, em vez de ajudar o homem ainda o embrulhará mais; ou pode valer-se de palavras dúbias e de sinais incertos nos discursos e na argumentação e deste modo ser conduzida a um ponto morto (lb., IV, 17, 10-13).

Mas com todos os seus limites e as suas imperfeições, a razão é, segundo Locke, o único guia de que o homem dispõe em todas as circunstâncias da vida. A própria fé não pode passar sem ela. Locke entende por fé o assentimento dado a proposições que não são garantias pela razão mas apenas pelo crédito de quem as propõe, enquanto é inspirado por Deus por meio de uma comunicação extraordinária. A fé funda-se portanto na revelação. Mas nem mesmo ela pode fazer com que os homens adquiram ideias simples que não recebam da sensação ou da reflexão. Nem pode provocar o assentimento a proposições que contradigam a evidência da razão. De modo que é a razão que estabelece de algum modo os limites da fé; e, finalmente, só a razão pode decidir sobre a legitimidade e sobre o valor da revelação em que a fé se funda (lb., IV, 19, 10). A uma fé assim reconduzida ao controlo da razão, opõe-se, segundo Locke, o entusiasmo, que é o fanatismo de quem crê possuir a verdade absoluta e ser inspirado por Deus em todas as suas afirmações. Locke mostra o círculo vicioso em que se envolve o entusiasmo: afirma-se que uma certa verdade é revelada por se crer nela firmemente e crê-se nela firmemente porque se a julga revelada.
Na realidade, aúnica"luz do espírito" éaevidência racionalde uma proposição; e Locke confirma a este propósito o princípio que dirigiu a sua obra: "A razão deve ser em tudo o nosso juiz e guia" (1b., IV, 19, 14).

Uma vez que a razão é limitada e falível nas suas possibilidades, o erro liga-se de algum modo ao seu próprio funcionamento e não deriva, como Descartes afirmava,de uma prevalência da vontade sobre o intelecto. O erro é devido, segundo Locke, a quatro razões fundamentais: 1º - a a falta de provas,  entendendo-se por falta não só a ausência absoluta de provas mas também a temporária ou relativa ausência delas, por exemplo o não tê-las ainda encontrado; 2º - a a falta de capacidade para usar as provas; 3º -  a a falta de vontade de vê-las; 4º - a finalmente, a errada medida da probabilidade. Esta última, por sua vez, pode ser devida à assunção de princípios que se julgam certos, e que são por vezes dúbios ou falsos; ou a ideias instiladas desde a infância; ou a qualquer paixão dominante; ou, enfim, à autoridade. Em tais casos, a primeira coisa a fazer é suspender o assentimento; e o assentimento pode-se suspender, não quando estamos em presença de um conhecimento evidente, intuitivo ou demonstrativo ou de um conhecimento provável, mas quando precisamente faltam as condições da probabilidade. Nos outros casos, só se pode suspender o assentimento detendo a investigação e recusando-se a empregar os instrumentos que ela requer.

§ 460. LOCKE: O PROBLEMA POLITICO E A LIBERDADE


O Ensaio sobre o entendimento humano, de que expusemos os princípios fundamentais, é certamente o produto mais maduro e feliz da investigação de Locke. Mas os resultados do Ensaio não tinham, segundo Locke, valor final mas instrumental: deviam servir para limitar e dirigir o uso que em todos os campos da sua actividade o homem pode fazer da razão, seu único guia. O próprio Locke, como se disse (§ 453), foi levado a empreender as investigações cujo resultado foi o Ensaio, porque se lhe punham problemas de uma natureza muito diferente. Sabemos que estes problemas eram de natureza política e moral; e a problemas desta natureza, que lhe foram impostos ou sugeridos pelas próprias circunstâncias da sua vida, Locke mantém-se constantemente atento quer durante a preparação do Ensaio, quer após a publicação dele. Sobre a moral, em sentido estrito, Locke não nos deixou escritos. Sabemos pelo Ensaio que era defensor do carácter racional ou demonstrativo da ética, na medida em que considerava que não se pode propor nenhuma regra moral de que se não deva dar a razão; que a razão de tais regras devia ser a sua utilidade para a conservação da sociedade e a felicidade pública; que, para isso, dada a disparidade das regras morais seguidas nos diferentes grupos em que a humanidade se divide, seria necessário isolar e recomendar aquelas que se revelem verdadeiramente eficientes nesse sentido. Mas uma investigação segundo estas diretivas, não a empreendeu Locke. Pelo contrário, no domínio do pensamento político e religioso, Locke deixou-nos contributos fundamentais. As obras por ele publicadas, a Epístola sobre a tolerância, os Dois tratados sobre o governo civil, a Racionalidade do cristianismo são escritos que asseguram a Locke neste campo um lugar tão importante como o que o Ensaio lhe assegura no campo mais estritamente filosófico. Estas obras fazem de Locke um dos primeiros e mais eficazes defensores das liberdades dos cidadãos, do estado democrático, da tolerância religiosa e da liberdade das igrejas: ideais que lhe surgem como teoremas, demonstrados e demonstráveis por obra daquela razão finita sobre cuja natureza e regras de uso nos esclarece o Ensaio. Mas nós sabemos pelos escritos inéditos que as conclusões alcançadas nestas obras são o resultado de uma longa investigação, não isenta de oscilações e contrastes; e que nessa investigação Locke exerceu a sua reflexão racional sobre os eventos e as exigências do mundo político e religioso do seu tempo, isto é, sobre a esfera de experiência própria deste campo. Assim, no seu próprio procedimento, foi de algum modo fiel ao seu conceito de razão; ou, se se prefere, no seu conceito da razão exprimiu e codificou o modo como ele próprio a exerceu.

A base de todas as discussões políticas de Locke (como, aliás, desde a Antiguidade e da Idade Média) é o conceito de direito natural; e o desenvolvimento das suas ideias políticas é acompanhado pelas interpretações que ele deu deste conceito. Nos dois escritos juvenis sobre a tolerância e nos Ensaios sobre
direito natural, a lei de natureza é identificada com a lei divina em conformidade com a tradição histórica e medieval que Locke via reproduzida emnumerosos escritos do seu tempo. Correspondentemente, a origem e o fundamento da autoridade edo poder político eram fundados na vontade divina. Mas já nos primeiros escritos Locke reservava aoshomens a faculdade de escolher, mediante um contrato, o depositário da investidura divina, que por si é indirecta e impessoal.

E nos Ensaios confiava à razão a tarefa de revelar e interpretar a lei divina. "A lei de natureza, dizia ele, pode-se descrever como o mandamento que indica o que está ou não está de acordo com a natureza racional e desse modo mesmo manda ou proíbe... A razão não funda e dita tanto estas leis de natureza quanto a busca e a descobre como uma lei decretada por um poder superior e inato nos nossos corações; de modo que ela não é o autor, mas o intérprete daquela lei" (Essays on the Law of Nafure, 1, p. 110). Para Grócio e para Hobbes é a razão mesma que "indica o que está ou não de acordo com a natureza racional"; passa o Locke dos Ensaios é o mandamento de Deus, que a razão se limita a manifestar. O limite da razão para o seu exercício no campo político é, nestes primeiros escritos, não só um limite inferior, fornecido pelo material sobre que a razão deve operar, mas também um limite superior, constituído pela vontade divina. Nos Tratados sobre o governo civil, isto é, na obra que exprime o ponto de vista em que Locke se fixou na sua maturidade, o limite superior desapareceu: a lei de natureza adquire, aos olhos de Locke, a sua autonomia racional mas o seu limite inferior permanece porque ela recebe o seu conteúdo da experiência que neste caso é a experiência da vida humana associada.

O primeiro dos Dois tratados destina-se a refutar as teses contidas no Patriarca ou a potência naturaldos Reis (1680)de Robert Filmer (falecido em 1653) segundo o qual o poder dos reis derivado por direito hereditário de Adão, a quem Deus conferiu a autoridade sobre todos os seus descendentes e o domínio do mundo. O segundo dos Dois tratados contém a parte positiva da doutrina. Existe, segundo Locke, uma lei de natureza que é a razão mesma na medida em que tem por objecto as, relações entre os homens e prescreve a reciprocidade perfeita de tais relações. Locke, como Hobbes, afirma que esta regra limita o direito natural de cada um mediante igual direito dos outros. Diz Locke: "O estado de natureza é governado pela lei de natureza, que liga todos: e a razão, que é esta lei, ensina a todos os homens, contanto que a queiram consultar, que, sendo todos iguais e independentes, nenhum deve prejudicar os outros, na sua vida, na sua saúde, liberdade ou prioridade" (Two Treatises of Government, 11, 26). Esta lei de natureza vale para todos os homens enquanto homens (sejam ou não cidadãos). No estado de natureza, isto é, anteriormente à constituição de um poder político, ela é a única lei válida, de modo que a liberdade dos homens neste estado consiste não em vergar-se à vontade ou autoridade de outro mas em respeitar apenas a norma natural. Nem mesmo neste estado a liberdade consiste para cada um "no viver como lhe apraz" Ub., 11, 4, 22). O direito natural do homem é limitado à própria pessoa e é, portanto, direito à vida, à liberdade e à propriedade enquanto produzida pelo próprio trabalho. Este direito implica, indubitavelmente, também o de punir o ofensor e de ser o executor da lei da natureza; mas nem mesmo este segundo direito implica o uso de uma força absoluta ou arbitrária, mas apenas a reacção que a razão indique como proporcionada à transgressão (lb., 11, 2, 8).

O estado de natureza não é por isso necessariamente, como queria Hobbes, um estado de guerra, mas pode tomar-se num estado de guerra quando uma ou mais pessoas recorrem à força, ou a uma intenção declarada de força, para obter aquilo que a norma natural proibiria obter, isto é, um controlo sobre a liberdade, sobre a vida e sobre os bens dos outros. É precisamente para evitar este estado de guerra que os homens formam a sociedade e abandonam o estado de natureza: porque um poder a que se possa fazer apelo para obter socorro exclui a permanência indefinida no estado de guerra. Mas a constituição de um poder civil não tira aos homens o direito de que gozavam no estado de natureza, excepto o de fazerem justiça por si próprios, visto que, pelo contrário, a justificação do poder consiste na sua eficácia para garantir aos homens, pacificamente, tais direitos. Se a liberdade natural consiste para o homem em ser limitado apenas pelas leis de natureza (que é a razão mesma), a liberdade do homem na sociedade consiste
"em não se sujeitar aoutro poder legislativo senão oestabelecido pelo consenso nem ao domínio de outra vontade ou à limitação de outra lei do que aquela que este poder legislativo estabelecerá conformemente àconfiança depositada nele" (lb., H, 4, 22). Por outros termos, o consenso dos cidadãos de que se origina
o poder civil faz deste poder um poder escolhido pelos próprios cidadãos e, portanto, ao mesmotempo um acto e uma garantia de liberdade dos cidadãos mesmos.

No entanto, aleide natureza não implica, como sustentava Hobbes,que o contacto que dá origem a uma comunidade civil forme um poder absoluto ou ilimitado, senão que exclui este. O homem que não possui nenhum poder sobre a própria vida (que pela lei da natureza tem o dever de conservar), não pode, mediante um contrato, tornar-se escravo de um outro e pôr-se a si mesmo sob um poder absoluto que disponha da vida dele como lhe aprouver. Só o consenso daqueles que participam numa comunidade estabelece o direito desta comunidade sobre os seus membros; mas este consenso, como é um acto de liberdade, isto é, de escolha, visa a manter ou garantir esta liberdade mesma é não pode legitimar a sujeição do homem à inconstante, incerta e arbitrária vontade de um outro homem.

O primeiro fim de uma comunidade política é o de determinar como a força da comunidade deve ser empregue para se conservar a si mesma e aos seus membros. Este fim responde à função do poder legislativo, que é por isso limitado pelas exigências intrínsecas ao próprio fim. Em primeiro lugar, de facto, as leis promulgadas não devem variar nos casos particulares mas serem iguais para todos. Em segundo lugar, elas só podem visar ao bem do povo. Em terceiro lugar, não se podem impor taxas sem o consenso do próprio povo. Um dos fins fundamentais do governo civil é a defesa da propriedade que é direito natural do homem; e sem esta limitação do poder do governo o usufruto da propriedade torna-se ilusório.

Finalmente,o poder legislativo não pode transferir a outros a sua faculdade de fazer leis (1b., 11, 11, 134 segs.). Além do poder legislativo, que deve ser exercido por uma assembleia, e separado dele, deve haver um poder executivo ao qual é entregue a execução das leis formuladas pelo primeiro. Locke distingue do poder executivo um poder federativo que tem como tarefa representar a comunidade frente às outras comunidades ouaindivíduos estranhos aela eao qualincumbem as decisões sobre a guerra ou a paz, as alianças, as leis, etc. (lb., H, 12, 145-47). O poder executivo e o federativo devem estar nas mesmas mãos,
porque são praticamente inseparáveis. Mesmo depois da constituição de uma sociedade política, o povo conserva o supremo poder de remover ou alterar o legislativo. Em caso algum a constituição de uma sociedade civil significa que os homens se fiem cegamente na vontade absoluta e no arbitrário domínio de um outro homem. Por isso, cada um conserva o direito de se defender contra os próprios legisladores, quando eles são tão loucos ou tão maus que maltratam as liberdades e as propriedades dos súditos. O mesmo direito possuem os cidadãos frente ao poder executivo, o qual, por sua própria natureza, está já
subordinado ao poder legislativo e deve dar-lhe conta das suas providências (lb., 11, 13, § 152). E mesmo que possua a prerrogativa de aplicar as leis com a largueza e a elasticidade que se requer nos casos particulares, encontra sempre um limite desta prerrogativa nas exigências do bem público. Um poder legítimo está, portanto, estreitamente vinculado. E a diferença entre a monarquia e a tirania, que é uma usurpação de poder, consiste nisto: o rei faz das leis os limites do seu poder e do bem público o alvo do seu governo; o tirano subordina tudo à sua vontade e ao seu apetite (lb., 11, 18, 199). Contra a tirania. como contra todo o poder político que exceda os seus limites e ponha o arbítrio no lugar da lei, o povo tem o direito de recorrer à resistência activa e à força. Neste caso, a resistência não é rebelião porque é antes a
resistência contra a rebelião dos governos à lei e à própria natureza da sociedade civil. O povo torna-se juiz dos governantes e de algum modo apela para o próprio juízo de Deus (lb., 11, 19, 241).

§ 461. LOCKE: O PROBLEMA RELIGIOSO

À Tolerância

A Epístola sobre a tolerância publicada por Locke em 1689 é um dos mais sólidos monumentos elevados à liberdade de consciência. Como iremos ver, os argumentos aduzidos neste escrito em favor da liberdade religiosa e da não intervenção do estado em matéria religiosa conservam ainda hoje, à distância de séculos,
a sua validade. Foi o único escrito sobre este tema publicado por Locke, isto é, o único em que exprime as suas convicções maduras e definitivas. Mas ele compusera anteriormente outros dois escritos (1661-62) e um Ensaio sobre a tolerância (1667) que deixara inéditos. Os primeiros dois escritos são substancialmente contrários à tolerância religiosa. O pressuposto desta atitude é que o que há de essencial ou "necessário" na religião é o culto interior de Deus; e nesta esfera a liberdade do homem coincide com o respeito da lei natural ou revelada, e está ao abrigo de toda a intromissão do poder porque está salvaguardada pela intimidade da consciência. Os atos externos do culto são igualmente necessários à religião; mas não é necessária esta ou aquela modalidade que eles possam assumir pela diversidade das gentes que os praticam, oudos tempos, ou dos costumes. A variedade que o culto externo pode assumir torna indiferentes assuas modalidades particulares; e a tese de Locke é a de que "o magistrado pode legitimamente determinar o uso de coisas indiferentes relacionadas com a religião" (Escritos editados e inéditos sobre a tolerância, p. 21).

No Ensaio sobre a tolerância, a perspectiva mudou. Locke já não se preocupa, como nos primeiros escritos,em reservara o magistrado civil aquele direito de intervenção que deveria, a seu ver, evitar discórdias e cisões na sociedade civil; mas preocupa-se, ao invés, em estabelecer solidamente os limites do poder civil em matéria religiosa. Ele divide as opiniões e as acções dos homens em três classes. Na primeira, inclui as "que não respeitam ao governo e à sociedade" e como tais classifica as opiniões puramente especulativas e o culto divino. Na segunda, inclui as que, embora não sendo nem boas nem más,
concernemà sociedade e às relações entre os homens, e nesse grupo mete as que concernem ao trabalho, matrimónio, educação dos filhos, etc. Na terceira, inclui as que não só respeitam à sociedade mas são também em si mesmas boas ou más, como as virtudes e os vícios mortais. Para com a primeira classe de opiniões e acções (que compreende também os ritos e os actos do culto externo), Locke defende uma tolerância ilimitada; para com a segunda classe, sustenta uma tolerância limitada pela exigência de não enfraquecer o estado e de não causar danos à comunidade; para com a terceira classe, exclui toda a tolerância.

Os papistas, segundo Locke, deveriam ser excluídos do benefício da tolerância na medida em que se considerem obrigados a negar a tolerância dos outros. Mas, na Epístola, o conceito de tolerância é estabelecido através de uma análise comparativa do conceito de Estado e do conceito de Igreja e é reconhecido como ponto de encontro dos deveres e interesses respectivos dessas instituições. O Estado, diz Locke, é "uma sociedade de homens constituída para conservar e promover apenas os bens civis", entendendo-se por "bens civis" a vida, a liberdade, a integridade do corpo, a sua imunidade à dor, a posse das coisas externas. Esta tarefa do Estado estabelece os limites da sua soberania; e a salvação da alma está claramente fora destes limites. O único instrumento de que o magistrado civil na realidade dispõe é a coacção; mas a coação é incapaz de conduzir à salvação porque ninguém pode ser salvo mau grado seu. A salvação depende da fé, e a fé não pode ser incutida nas almas à força: "Se alguém quer acolher algum dogma, ou praticar algum culto para salvar a alma, deve crer com todo o ânimo que esse dogma é verdadeiro e que o culto será grato a Deus; mas de modo algum uma pena poderá instilar na alma uma convicção deste género". Por outro lado, nem os cidadãos nem a própria Igreja podem pedir a intervenção do magistrado em matéria religiosa. A Igreja, diz Locke, é "uma livre sociedade de homens que se reúnem espontaneamente para honrar publicamente a Deus de modo que julguem ser aceite pela divindade, para obter a salvação da alma". Como sociedade livre e voluntária, a Igreja não faz nem pode fazer coisa alguma que respeite à propriedade dos bens civis ou terrenos, nem pode recorrer à força seja por que motivo for, desde o momento em que o uso da força é reservado ao magistrado civil. Aliás, a força, mesmo quando exercida pela Igreja, é inútil e nociva à salvação. Certamente, a Igreja tem o direito de expulsar do seu seio aqueles cujas crenças considere incompatíveis com os princípios que defende. Mas a excomunhão não deve de modo algum transformar-se numa diminuição dos direitos civis do condenado.  Referindo-se a este, diz Locke, que "devem ser inviolavelmente conservados todos os direitos que lhe cabem como homem e como cidadão; estas coisas não pertencem à religião. Um cristão, tal como um pagão, deve ser poupado a toda a violência, a toda a injustiça". Nem a Igreja pode derivar nenhum direito do Estado, nem o Estado da Igreja. "A igreja, quer nela entre o magistrado ou dela saia o magistrado, permanece sempre o que era, uma sociedade livre e voluntária; nem adquire o poder da espada por nela entrar o magistrado nem, se o magistrado sai dela, perde o direito que já tinha de ensinar e de excomunga". Embora nem mesmo na Epístola, apesar de tudo, a tolerância encontre um reconhecimento radical porque Locke sustenta que "os que negam a existência de Deus não podem ser tolerados de modo algum", o escrito de Locke representa, ainda hoje, a melhor justificação que a história da filosofia nos deus da liberdade de consciência. Por outro lado Locke não pretende negar ou diminuir o valor da religião, reduzindo-o à pura fé no sentido em que a fé se contrapõe à razão.

Os escritores libertinos (que Locke conhecia) mostravam a tendência para confinar no domínio da fé as crenças absurdas ou repugnantes à razão (§ 418); Locke, que usa alguns dos argumentos de que eles se servira para negar o valor racional da religião, por exemplo a pluralidade e disparidade da fé e dos cultos religiosos, afirma e defende todavia a possibilidade do carácter racional da religião o considera o cristianismo uma religião racional. A Racionalidade do cristianismo destina-se a pôr em evidência no cristianismo aquele núcleo essencial e limpo de superstições que o torna aceitável pela razão e dele faz o melhor aliado da razão mesma pelo que toca à vida moral do género humano. O núcleo essencial do cristianismo é, segundo Locke, o reconhecimento de Cristo como Messias e o reconhecimento da verdadeira natureza de Deus. Estes são os únicos artigos de fé necessários ao cristianismo e constituem uma religião simples, adaptada à compreensão dos literatos e dos trabalhadores, e livre da subtileza dos teólogos. Naturalmente, a fé em Cristo implica também a obediência aos seus preceitos, conquanto ninguém seja obrigado a conhecer todos estes preceitos, que cada qual deve procurar aprender e compreender por si próprio nas Sagradas Escrituras. A justificação do cristianismo reside, segundo Locke, na sua racionalidade e utilidade. Sem ele, "a parte racional e pensante do gênero humano" poderia decerto ter descoberto "o único, supremo e indivisível Deus"; mas, para todo o resto da humanidade, esta descoberta teria permanecido inviável.

A revelação cristã difundiu-a em todo o mundo. E, além disso, deu autoridade e força a estes preceitos morais que de outro modo teriam sido apenas o patrimônio dos filósofos. Por outros termos, o cristianismo foi para Locke uma nova, mais vasta e eficaz promulgação da lei moral e das verdades fundamentais que regem a vida humana. A característica desta posição de Locke é que o cristianismo não é estranho à razão, de modo que não tem necessidade de ser expurgado do exterior, por obra dela, de uma parte supersticiosa e caduca. A razão é de certo modo intrínseca ao próprio cristianismo, que nasceu como esforço de libertar a humanidade de antigos vínculos e tradições; porque a "racionalidade" lhe é conatural e constitui um traço que lhe assegurou no passado e lhe assegura no presente a função histórica. Uma vez mais, para Locke, a razão não é uma força estranha à experiência humana fazendo em redor de si o vazio e destruindo os campos específicos em que essa experiência se articula, mas é antes uma força que atua no interior destes campos e lhes assegura a vida e a validez.

§ 462. LOCKE: A EDUCAÇÃO

Neste sentido de "razão", a educação do homem é uma educação pela razão. Os Pensamentos sobre a educação de Locke são uma obra circunstancial que tem como escopo declarado o delinear o projeto da educação de um jovem pertencente à aristocracia inglesa. Mas este projeto não tem simplesmente em mira a formação das boas maneiras ou, em geral, de uma cultura que ponha o jovem à sua vontade
e lhe permita brilhar no ambiente a que é destinado. Locke é decididamente adverso a uma educação dessas e antes insiste no carácter subordinado da cultura. "Admito que o ler, o escrever e a cultura sejam necessários, diz Locke, mas não que sejam a coisa más importante. Creio que consideraríeis muito estúpido
quem não estimasse infinitamente mais um homem virtuoso e sage do que um grande erudito" (Pensamento, § 147). Por outro lado, a educação deve antes ter por alvo o ambiente ou o grupo social a que o indivíduo pertence: não pode ser, segundo Locke, a educação de um indivíduo abstraído dos seus vínculos com a sociedade. Mas isto não quer dizer que ela não deva capacitar o indivíduo a julgar e criticar as opiniões, os costumes, as superstições do ambiente a que pertence. Sob este aspecto, a tarefa fundamental da educação
é a de preparar o indivíduo a fazer prevalecer, nos seus comportamentos, as exigências da razão. As virtudes, o carácter, a sageza, são os aspectos com que se configura em Locke o objectivo da educação; mas este objectivo pode ser reassumido na prevalência da razão. "Parece-me evidente que o princípio de toda a virtude e de toda a excelência consiste em nos privamos da satisfação dos nossos desejos quando estes não sejam autorizados pela razão" (1b., § 38).

Conformemente ao conceito que Locke tem da razão, a prevalência desta no homem só se pode obter preparando o homem a exercê-la sobre os conteúdos particulares que a experiência lhe oferece. A razão não fecha o homem em si mesmo, mas abre-o ao mundo. Isto faz com que aeducação possa formar, mediante o exercício, um conjunto de habilitações ou de capacidades inteligentes que permitem ao homem afrontar e dominar as mais diversas circunstâncias da vida. Por outro lado, uma educação pela razão não é concebida sem o reconhecimento e a formação do senso da dignidade humana. Desta exigência procede a condenação das punições corporais como meio de educação. Estas punições reforçam mais do que enfraquecem a propensão natural para o prazer porque a estimulam fortemente; tornam odiosas as coisas que querem inculcar; finalmente, produzem uma "disciplina de escravos". "O pequerrucho, diz Locke, submete-se e simula a obediência enquanto se encontra dominado pelo temor do açoite; mas assim que este desaparece como o facto de não ser visto lhe assegura a impunidade, ainda mais dá vazão à sua tendência". Em casos extremos, isto é, quando parece ter-se atingido o resultado desejado, tais punições fazem de um jovem desordenado "uma criatura estupidificada" (Ib., 35, 48, 52). Às punições como instrumentos de educação Locke quer que se substitua o sentimento da honra, isto é, o desejo de obter a aprovação dos outros e de evitar a sua reprovação ou desestima. Trata-se de um incentivo de natureza eminentemente social, que estimula fortemente as relações do jovem educando com o grupo a que pertence; mas trata-se sobretudo, na mente de Locke, de um incentivo que não destrói nem diminui a dignidade da pessoa racional.