Datas de avaliações e apresentações do seminário

Datas das Avaliações e Apresentações

* Data de apresentação dos seminários e entrega monografias: ;
* Data de defesa das monografias: ;

* 1ª Prova - Partes 1 e 2 do curso - 08/04/2014 (Sexta-feira);
* 2ª Prova - Todo conteúdo - 27/06/2014 (terça-feira);
* Última data de entrega das monografias: 30/05/2014 (sexta-feira);
* Data de apresentação e defesa dos seminários: 06 e 10/06/2014 (sexta e terça-feira);


Modelo Monografia para Seminário do livro a ser lido

Prezado aluno,

Segue abaixo modelo de como deve ser organizada a monografia, resumindo padrão exigido pela ABNT, que deverá ser entregue ao final do semestre, referente ao livro que será lido e apresentado no seminário:

* Papel: Tamanho A4. 
* Quantidade de Páginas: Mínimo de 9, máximo de 13 (contando todas as páginas, capa, resumo, bibliografia, etc. Anexos não contam como páginas da monografia).
* Numeração páginas: Canto inferior direito (visualização obrigatória).
* Formatar Página: Margens Superior, Inferior e Direita (2,5cm) e Esquerda (3,5 cm).
* Formatar Fonte: Fonte "Times New Roman", estilo normal, tamanho 12. Capa e Títulos: tamanho 14, Negrito. Espaço entre linhas 1,5. 
* Os itens para essa Monografia são obrigatoriamente

i. Capa: (Deve conter nome do Seminário Maior, Nome da Disciplina, Título da Monografia, Nome/ matrícula do aluno, Semestre de entrega); 
ii. Resumo: Deve conter no máximo 300 palavras;  

iii.  Índice: Sumário, feito pelo próprio Word; 
iv. Introdução: O escopo da introdução é apresentar ao leitor do texto o tema abordado, a pesquisa realizada, trabalhos anteriormente apresentados, se houver, e a importância de tal estudo. Deve-se usar a 3ª pessoa do plural. Exposição de aspectos relevantes tratados; 
v. Desenvolvimento: 
Nos termos da NBR 6024, 2003, divide-se em seções e subseções. Os  
títulos das seções devem ser numerados, à esquerda, junto à margem (sem 
tabulação) e “não se utilizam ponto, hífen, travessão ou qualquer outro sinal 
após o indicativo da seção ou de seu título.” (NBR  6024, 2003, p. 2). 
Exemplificando: 

1 SEÇÃO PRIMÁRIA – (TÍTULO 1)
1.1 SEÇÃO SECUNDÁRIA – (TÍTULO 2) 
1.1.1 Seção terciária – (Título 3)
1.1.1.1 Seção quartenária – (Título 4) 
1.1.1.1.1 Seção quinária – (Título 5)
vi. Conclusão: A conclusão deve ser realizada de forma concisa, objetiva, observando-se as devidas cautelas para não tornar-se perfunctória, expressando a opinião do autor sobre o tema proposto, ressaltando sua importância e significação. 
vii. Referências Bibliográficas: Elemento obrigatório nos termos da NBR 6023/2000, deve guardar estreita relação com o material citado e utilizado pelo discente. O corpo das referências tem espaçamento simples em seu bojo e duplo entre as várias referências. Importante frisar que não se utiliza tabulação e observa-se ordem alfabética. Exemplo:
AMARANTE, Aparecida.  Responsabilidade Civil por dano à honra. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. 
(espaço duplo uma vez) 
BARBOSA, Notaroberto. Direito à própria imagem. São Paulo : Saraiva, 1989. 
(espaço duplo uma vez) 
DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.  
viii. Anexos (se necessário): Elemento opcional, “texto ou documento não elaborado pelo autor, que serve de fundamentação, comprovação e ilustração.” (NBR 14724, 2002, p. 2)

DICAS IMPORTANTES:
a. Monografia filosófica NÃO É um resumo do livro. Tente desenvolver uma análise crítica do livro sobre um tema específico de cunho filosófico. Tente também desenvolver ideias próprias, ou fazer uma análise comparativa com outro autor de seu interesse. 
b. INOVE NO CONTEÚDO, NÃO NA FORMA DE APRESENTAÇÃO ESCRITA;
c. As citações devem conter referência bibliográfica, obrigatoriamente.
d. Quando for fazer uma citação filosófica, ela deve ser breve e estar diretamente relacionada ao texto anterior. A sua formatação deve ser diferenciada, citações com até três linhas devem ser inseridas no corpo do texto, entre aspas, em itálico e com referência logo após da citaçã, ou no rodapé. Já a citação mais extensa (entendendo-se por extensa aquela que possuir mais de três linhas), deve ter destaque de 4 cm do parágrafo. A fonte deve ser menor do que o texto. O espacejamento entre linhas deve ser simples” (NBR 14724, 2003). Nas citações indiretas (forma esta que o escritor resume o entendimento de determinado autor) não se usa aspas.

    Texto 5 - Calvino (por Nicola A. Abbagnano)

    Se o retorno às fontes religiosas é para Lutero essencialmente o regresso ao Evangelho e para Zwingli o regresso à revelação originária concedida a pagãos e a cristãos, para Calvino é, ao invés, o retorno à religiosidade do Velho Testamento. João Calvino (10 de Julho de 1509 - 27 de Maio de 1564) nasceu em França, em Noyon, mas foi na Suíça, em Genebra, que levou a caibo a sua obra de reformador; e desta obra se originaram as igrejas reformadas que não se organizaram sob a influência do Estado, como na Alernanha, mas se desenvolveram livremente. Em 1553 Calvino mandava condenar à fogueira, pelo Conselho de Genebra, o espanhol Miguel Serveto, que negava encarnação, pois via na figura histórica de Cristo uma simples participação na substância eterna do  Pai (Restitutio christianismi, 1553). Mais tarde, foram efetuadas perseguições e condenações contra a chamada corrente libertina, que congregava os defensores da imanência de Deus em todo o universo. A intolerância foi para Calvino uma arma de defesa dia nascente Igreja reformada; enquanto viveu, o poder político em Genebra foi completamente subordinado às exigências espirituais da reforma religiosa. 

    Num capítulo dia sua obra fundamental Instituição da religião cristã (aparecida pela primeira vez em latim em 1536 e por ele traduzida posteriormente para francês e publicada em 1541 nesta língua, a qual constitui o primeiro documento literário da prosa francesa), Calvino propõe-se mostrar a unidade do Velho e do Novo Testamento, combatendo a tese de que o Velho Testamento tenha anunciado aos Hebreus uma felicidade puramente terrena. Calvino insiste na impossibilidade de entender doutrina do Evangelho sem o Velho Testamento; e, na realidade, na sua interpretação da Bíblia são os conceitos do Velho Testamento que prevalecem. Do Velho Testamento extrai o conceito axial da sua concepção religiosa: Deus com absoluta soberania e potência, perante o qual o homem nada é. Na teologia de Calvíno, Deus é omnipotência e imperscrutabilidademais do que amor. Da sua vontade depende o curso das coisas e o destino dos homens, portanto também a sua salvação. " Conforme aquilo que a Escritura claramente demonstra, nós dizemos que o Senhor há muito decidiu, no seu conselho eterno e imutável, que homens havia de destinar à salvação e quais deixar na ruína. Aqueles que ele chama à salvação, dizemos nós que os recebe pela sua misericórdia gratuita, sem ter em conta a dignidade deles. Pelo contrário, o ingresso na vida está vedado a todos aqueles que ele quer votar à condenação; e isso ocorre devido a um seu juízo oculto e incompreensível, embora justo e equânime." (Inst. 7, 111, 62-63). A eleição divina não se segue à previsão divina, senão que a precede. Calvino considera inconciliáveis estas duas afirmações: a de que os fiéis obtêm a sua santidade pela eleição e a de que são eleitos por esta santidade. A santidade origina-se unicamente da eleição: não pode portanto ser causa dela. É impossível atribuir ao homem um mérito qualquer relativamente a Deus. O homem reconcilia-se com Deus apenas através da mediação de Cristo e da participação nas suas promessas. Mas a própria obra mediadora de Cristo é um decreto eterno de Deus, que faz parte da ordem providencial do mundo. "Nós temos, diz Calvino (Ib., 6, 11, 275) esta regra breve mas geral e certíssima: aquele que por completo se aniquilou e despojou, não digo da sua justiça que nada é, mas daquela sombra de justiça que nos engana, está devotamente preparado para receber os frutos da misericórdia de Deus. Porque, quanto mais cada um repouse em si mesmo, tanto mais será,um impedimento, à graça de Deus". Aliás, a graça de Deus não impele o homem do mesmo modo que nós atiramos uma pedra. É uma faculdade natural, reconhece Calvino, querer ou não querer e tanto faz querer o mal como não querer o bem, entregar-se ao pecado como resistir à justiça. O Senhor serve-se da perversidade do homem como de um instrumento da sua ira; enquanto refreia e modera a vontade dos que destina à salvação, dirige-a, forma-a, condu-la segundo a regra da sua justiça, e finalmente confirma-a e fortifica-a com a virtude do Espírito. Deus quer que tudo o que ele faz em nós seja nosso, contanto que entendamos que nada depende de nós (Ib., 2; 11, 188-190). 

    Esta doutrina da predestinação, precisamente no que possui de extremo e de paradoxal, constitui a força da consciência calvinista. Quem conta| apenas com os méritos humanos, permanece necessàriamente em dúvidia quanto à eficácia de tais méritos, tão imperfeitos e precários, e por ísso quanto à própria salvação. Mas quem crê apenas nos méritos de Cristo e se sente, em virtude de tais méritos, predestinado, adquire uma força de convicção que não recua perante as dificuldades e o leva até ao fanatismo. Como Lutero e Zwingli, Calvino abria ao cristão o campo de ação da vida social e levava-o a empenhar-se num trabalho ativo dentro da sociedade e a transformá-la em conformidade com o seu ideal religioso. O trabalho tomava-se assim um dever sagrado, e o êxito nos negócios uma prova evidente do favor de Deus e, segundo os conceitos do Velho Testamento, um sinal da sua predileção. Pela ética calvinista se modelou o espírito da nascente burguesia capitalista: o espírito ativo, agressivo, desdenhoso de todos os sentimentos, continuamente dirigido para o êxito. É significativo que o próprio Calvino tenha reabilitado a usura e haja declarado, moralmente lícito receber juros de empréstimo. Como quer que seja, a verdade é que o carácter religioso, atribuído ao êxito nos negócios estabelece laços estreitos entre a atividade mercantil e a consciência religiosa e reveste de um carácter sagrado a prosperidade econômica. No plano propriamente especulativo, a teologia de Calvino põe o homem perante um muro: a imperscrutabilidade dos desígnios divinos que faz com que o homem nada possa entender da justiça divina e deva limitar-se a sofrê-la.

    ABBAGNANO, Nicola A. História da Filosofia - Quinto volume - Tradução: Nuno Valadas e Antônio Ramos Rosa. - Editora Presença, Lisboa, 1970. Título original: STORIA DELLA FILOSOFIA (pgs. 207 a 211).

    Listas de Exercícios

    Nessa seção serão publicadas todas as listas de exercício. Você deve imprimi-las e respondê-las conforme o curso for acontecendo, tomando cuidado para não perder a data de entrega.

    * Lista 1: Não será preciso entregar.
    * Lista 2: Não será preciso entregar.
    Lista 3: Não será preciso entregar.



    Todos os textos publicados:

    Texto 1 - Renascimento e Humanismo - Nicola A. Abbagnano
    Texto 2 - Michel de Montaigne e o ceticismo como fundamento da sabedoria
    Texto 3 - Reformas religiosas - Contextualização Histórica por Prof. Gilberto Salomão
    Texto 4 - Erasmo, Desidério ou Erasmo de Roterdã
    * Texto 5 - Calvino (por Nicola A. Abbagnano)
    * Texto 6 - Thomas More (por Giovanni Reale)

    * Texto 7 - Revolução científica em três nomes: Padre Copérnico, Kepler e Galileu (Por Nicola Abbagnano)
    * Texto 8 - Sistema do Mundo, metodologia e filosofia na obra de Isaac Newton
    * Texto 9 - Empirismo x Racionalismo - Por Marilena Chauí
    * Texto 10 - Francis Bacon - Por Nicola Abbagnano
    * Texto 11 - Descartes - Por Giovanni Reale
    * Texto 12 -  Spinoza (parte do texto de Giovanne  Reale)
    * Texto 13 -  Leibniz (Por Nicola Abbagnano)
    * Texto 14 - Thomas Hobbes - Por Giovanni Reale
    * Texto 15 - John Locke - por Nicola Abbagnano
    * Texto 16 - Berkeley (A natureza como linguagem)
    * Texto 17 - David Hume (Parte 1) - Por Giovanne Reale
    * Texto 18 - David Hume (Parte 2) - Por Giovanne Reale
    * Texto 19 - Blaise Pascal - Por Giovanne Reale
    * Texto 20 - Iluminismo: A fé na razão e a valorização da ciência
    * Texto 21 - Retirado
    Texto 22 - Iluminismo na França (Partes) - Por Giovanne Reale
    * Texto 23 - Rousseau - Por Nicola Abbagnano
    * Texto 24 - Kant I - Por Giovanne Reale
    * Texto 25 - Kant II - Por Giovanne Reale
    * Texto 26 - Kant III - Por Giovanne Reale

    Texto - Sermão da Sexagésima - Pe. Antônio Vieira

      Texto 4 - Erasmo, Desidério ou Erasmo de Roterdã


      ERASMO, DESIDÉRIO (1467-1536), de Rotterdam, ingressou no convento dos Cônegos Regulares de Emmaus (Steyn), ordenou-se sacerdote e foi tutor de Henrique de Bergen, a cujo serviço realizou numerosas viagens (Inglaterra, França, Suíça, Itália). Em 1517 foi dispensado dos votos, mas continuou no sacerdócio, travando amizade com os maiores humanistas de sua época. O próprio Erasmo foi um dos principais representantes do humanismo renascentista. 

      Sua obra de humanista, manifestada em suas edições de autores clássicos e seus trabalhos críticos sobre o Antigo e o Novo Testamentos, representou, entretanto, apenas um aspecto de sua atividade intelectual. Embora não possa ser considerado propriamente um filósofo, ao menos um filósofo sistemático, Erasmo esteve no centro de muitas das discussões filosóficas de sua época. Entre elas cabe mencionar especialmente a que teve como eixo o problema do livre-arbítrio. Contra os que acentuavam excessivamente a submissão do arbítrio humano à vontade divina, Erasmo defendeu a existência e o poder desse arbítrio. Foi isto, além do mais, que o opôs a Lutero (em seu desejo de introduzir uma reforma na Igreja, Erasmo considerara favoravelmente algumas de suas teses). Por esse motivo produziu-se uma ruptura entre Erasmo e Lutero, definitiva a partir da publicação, por parte do último, de seu tratado De servo arbítrio (1525) contra o De libero Arbítrio, publicado por Erasmo um ano antes. A defesa do livre-arbítrio não significa, porém, que Erasmo estivesse a favor de teses naturalistas ou neopelagianas extremas. O que ele pretendia era, antes, encontrar um justo meio que, ao mesmo tempo que salvasse a liberdade, confirmasse a ligação do homem com Deus. Esse justo meio foi, além disso, muito característico da atitude filosófica e humana de Erasmo em todos os problemas importantes. Assim, por exemplo, ás vezes ele parece inclinar-se para o "Deus único" manifestado em todas as religiões e caro a certos espíritos renascentistas. Mas essa inclinação é corrigida por sua insistência no caráter peculiar da vida cristã e em sua opinião de que apenas dentro dessa vida se dá a possibilidade de uma conciliação e de um verdadeiro humanismo. O mesmo ocorre com suas aspirações de reforma. Tratava-se, com efeito, para Erasmo, de conseguir a tão esperada pax fidei, de que falara Nicolau de Cusa, por meio de uma philosophia Christi, baseada no desenvolvimento da vida interna do cristianismo, mas sem destruir - antes revitalizando - a vida e a organização da Igreja. O humanismo, e a atitude tolerante que lhe era inerente, devia constituir justamente, para Erasmo, uma das bases para tal reforma. 


      As doutrinas e opiniões de Erasmo exerceram sua época uma enorme influência. O erasmismo transformou-se em um dos grandes temas de discussão. A forma adotada por ele dependeu em grande medida da situação histórica do país no qual encontrava adeptos. Em muitas partes da Europa ele se transformou em doutrina destinada a impulsionar o saber e a manter a unidade da fé. Em outras partes apareceu como uma doutrina filosófica que mesclava sabiamente humanismo e cristianismo. Em uma delas, como na Espanha, quase sempre, como observou Américo Castro, uma vontade. Hoje chama a atenção a discrepância existente entre a "insignificância" filosófica do erasmismo e a influência exercida em sua época sobre os filósofos. Entretanto, essa discrepância toma-se menos acusada se levarmos em conta que na época de Erasmo a filosofia buscava não apenas novas idéias, mas também novas formas de expressão, e que Erasmo contribuiu notavelmente para estas últimas.



      MORA, José Ferrater. Dicionário Filosófico - Tomo II. 2ª edição. São Paulo. Edições Loyola, 2005 (pgs. 856 e 857).

      Texto 2 - Michel de Montaigne e o ceticismo como fundamento da sabedoria



      REALE, Giovanni; ANTISERI. História da filosofia, vol. 2 – 8ª Edição: Do Humanismo a Kant, São Paulo, Paulus, 2007 (páginas 94 a 97).

      Texto 3 - Reformas religiosas - Contextualização Histórica por Prof. Gilberto Salomão

      Causas e contexto histórico

      Gilberto Salomão*
      Especial para Página 3 Pedagogia & Comunicação - UOL educação
      Reprodução
      O filósofo humanista Erasmo de Roterdã fez severas críticas ao comportamento da Igreja
      O século 16 teve como uma de suas manifestações mais profundas o processo de reformas religiosas, responsável por quebrar o monopólio exercido pela Igreja Católica na Europa e pelo advento de uma série de novas religiões que, embora cristãs, fugiam aos dogmas e ao poder imposto por Roma, as chamadas religiões protestantes. 


      Mais do que apenas um movimento religioso, as reformas protestantes inseriram-se no contexto mais amplo que marcou a Europa a partir da Baixa Idade Média, expressando a superação da estrutura feudal tanto em termos da fé como também em seus aspectos sociais e políticos.



      Da mesma forma, não se pode considerar as reformas religiosas como um processo que se iniciou no século 16. Ao contrário, elas representaram o transbordamento de uma crise que já vinha se manifestando na Europa desde o início da Baixa Idade Média, fruto da inadequação da Igreja à nova realidade, marcada pelo declínio do mundo feudal, pelo crescimento do comércio e da vida urbana, pela centralização do poder político nas mãos dos reis e pelo advento de uma nova camada social, a burguesia. 



      Também não se pode deixar de lado a influência do Renascimento Cultural, no sentido de romper com o monopólio cultural exercido pela Igreja Católica na Idade Média. O Renascimento teve o efeito de possibilitar a aceitação de conceitos e de visões de mundo diferentes daqueles impostos pela Igreja Católica, ao quebrar o quase monopólio intelectual que a Igreja exercia na Idade Média. 



      Num certo aspecto, as Reformas Protestantes são filhas do Renascimento, e representaram, como este, uma adequação de valores e de concepções espirituais às transformações pelas quais a Europa passava - nos campos econômico, social e cultural.


      Humanismo e desvirtuamento da Igreja


      As contestações ao poder e aos dogmas da Igreja não eram um fenômeno desconhecido na Europa do século 16. O próprio crescimento do pensamento humanista, absorvido pela Igreja através das universidades, e uma nova visão teológica, representada pelo tomismo, podem ser vistos como uma abertura da Igreja ao racionalismo e a uma visão de mundo mais humanística, se comparada ao forte teocentrismo que prevalecera até ali. As universidades foram canais por onde pôde penetrar a influência do pensamento racional, ao mesmo tempo em que o tomismo fundia a fé com elementos do racionalismo greco-romano.



      Ao mesmo tempo, há que se levar em conta o desvirtuamento da Igreja e sua incapacidade de dar resposta aos anseios espirituais dos fiéis. Essa questão tem origem no papel que a Igreja passou a ocupar a partir da Idade Média. O fato de ser ela a principal possuidora de terras na Europa, bem como a instituição mais poderosa politicamente, colocava-a ao lado da nobreza como uma instituição beneficiária da estrutura feudal e, também, responsável por sua manutenção. 



      Na verdade, o vínculo orgânico entre a Igreja e a nobreza criava, necessariamente, distorções. A tendência é que as nomeações para cargos na alta hierarquia da Igreja (o termo correto para essas nomeações é investidura) obedecessem a critérios que passavam muito longe da vocação ou formação religiosa do postulante. Essas investiduras eram feitas levando-se em consideração o grau de riqueza, de poder e as benesses que a aliança com esta ou aquela família pudesse trazer para a Igreja.



      A prática das chamadas investiduras leigas acabou acarretando graves problemas para a Igreja medieval. Em primeiro lugar, os problemas políticos, decorrentes da constante disputa com os poderes temporais para a ocupação de cargos e terras. 



      Mais grave que isso, entretanto, foi o fato de gerar um clero inadequado às suas funções religiosas, incapaz de dar resposta às necessidades espirituais dos fiéis. O desregramento do clero evidenciava-se numa atitude conhecida usualmente como nicolaísmo, termo usado para designar o desregramento que passara a marcar o comportamento do clero.



      Mais que isso, a constante busca por um aumento da renda que sustentava o imenso luxo em que vivia o clero, levou a Igreja a intensificar, durante a Idade Média, práticas como a venda de relíquias sagradas ou de cargos eclesiásticos (práticas conhecidas como simonia) e a venda de indulgências (absolvição dos pecados cometidos).



      Assim, cresciam manifestações intelectuais de críticas ao comportamento da Igreja. Nomes como Erasmo de Roterdã ou Thomas Morus propunham uma reforma interna da Igreja, com um retorno à pureza original do cristianismo. Por trás dessas propostas havia, por certo, uma crítica ao excessivo apego da Igreja aos bens materiais e ao poder.


      Nacionalismo, heresias e política


      Tais críticas já haviam atingido níveis mais preocupantes para Roma desde o final do século 14. Na Inglaterra, John Wycliff pregava o confisco dos bens da Igreja, o voto de pobreza por parte dos membros do clero e uma retomada das Sagradas Escrituras como única fonte da fé. 



      No reino da Boêmia, então pertencente ao Sacro Império, John Huss, tendo por base as idéias de Wycliff, viu suas pregações constituírem-se na base do sentimento nacionalista da região contra o domínio do Império e da Igreja de Roma. A prisão, seguida da condenação e execução de Huss, não conseguiu apagar a chama nacionalista, o que mostrava um lado intenso da crise vivida pela Igreja, qual seja, o seu domínio sendo alvo de reações nacionalistas.



      Há outra forma de reação a esse desvirtuamento do papel da Igreja e ela fica evidente ao observarmos o crescimento das heresias. O termo era empregado para designar todas as manifestações de pensamento religioso discordante dos dogmas impostos pela Igreja Católica. Durante a Baixa Idade Média, e particularmente no século 13 (considerado o grande século das heresias), cresceram de modo significativo o número de seitas heréticas e o número de adeptos a essas seitas.



      Ao contrário de uma primeira impressão, as heresias constituem-se numa prova de fé e não de falta de fé. Evidenciam a existência de uma população imbuída de uma profunda religiosidade não contemplada pelos dogmas e pelo materialismo da Igreja. Esta, por sua vez, jamais foi capaz de compreender o real significado das heresias. Ao contrário, a Igreja apenas viu nelas o que representavam em termos de ameaça ao seu poder baseado na unidade da fé. Assim, a reação da Igreja Católica às heresias concentrou-se na repressão. Não foi outra a função da criação do Tribunal do Santo Ofício ou Inquisição, justamente no século 13.



      Há outros elementos decisivos nesse processo. A questão política passa a ganhar um peso significativo a partir do início do processo de centralização do poder. Naturalmente, os reis, ao buscarem se fortalecer politicamente, vão entrar em choque com o poder da Igreja. Em muitos casos (e o exemplo da Inglaterra, como veremos a seguir, é apenas o mais evidente), romper com a Igreja Católica e criar uma nova Igreja sob seu comando foi a forma encontrada pelos reis para se libertar do poder político do papado.



      Além disso, num quadro de crescimento do comércio, os dogmas da Igreja, de condenação à usura e ao lucro excessivo, representavam um forte obstáculo para a burguesia. Assim, também essa nova camada ascendente vai ter interesse em romper com os entraves impostos pelo catolicismo e adotar uma nova religião, para a qual suas práticas não se constituíssem em pecados e fossem consideradas como dignificantes do homem.
      A reforma luterana
      Gilberto Salomão*
      Especial para Página 3 Pedagogia & Comunicação
      Reprodução
      O alemão Martinho Lutero estabeleceu os princípios de uma doutrina cristã reformada
      O que hoje chamamos de Alemanha era, desde a Idade Média, parte do Sacro Império Romano Germânico. Criado no século 11 como uma extensão temporal do poder do papado, houve momentos em que o poder imperial entrou em choque com o papa, como na questão envolvendo as investiduras de bispos, no século 16. A vitória do papado nessa que ficou conhecida como a Querela das Investiduras aprofundou o poder político da Igreja na região.


      Por outro lado, o poder enorme exercido pela Igreja tornava-a o local ideal para a venda de relíquias e indulgências. Empenhado na construção da Basílica de São Pedro, o papa Leão 10º (1513-1521) encarregou o dominicano John Tetzel de realizar uma maciça venda de indulgências por toda a Alemanha.



      Foi contra isso que se voltou o duque Frederico da Saxônia, impedindo a entrada de Tetzel em seu território. A alegação para a proibição foi o fato de a Igreja ter feito um acordo com a família de banqueiros alemães, os Függer, no qual os banqueiros emprestavam à Igreja o dinheiro necessário em troca da garantia de metade da renda obtida com a venda de indulgências.

      Martinho Lutero


      Nesse conflito envolveu-se Martinho Lutero (1483-1546), monge agostiniano e professor de teologia na Universidade de Wittenberg, com o apoio de Frederico. Na verdade, as críticas de Lutero à prática da Igreja já eram antigas, encontrando nesse contexto o espaço certo para sua disseminação.



      Em 1517, Lutero fixou na porta da catedral de sua cidade um documento intitulado "95 Teses Contra as Indulgências". Nele, não apenas Lutero criticava violentamente a prática da Igreja, denunciando que o dinheiro das indulgências era usado para financiar o luxo do clero e atacando seu desregramento, como também se opunha a dogmas da Igreja. Ao afirmar que as indulgências eram incorretas, pois o fiel se salva não pelos atos que pratica, mas pela fé, Lutero incorria numa negação à doutrina da Igreja, uma heresia do ponto de vista da Igreja Católica, expondo-se assim à ação da Inquisição.



      Excomungado como herege em 1520 pelo papa, Lutero recusou-se também a se retratar na Dieta de Worms, convocada pelo imperador Carlos 5º (Carlos de Habsburgo) e composta por todos os nobres laicos e eclesiásticos do Sacro Império. Estes, por sua vez, tinham interesse em apoiar Lutero, interessados em livrar-se da autoridade papal e em limitar o poder do imperador, defensor do catolicismo. Foram os príncipes alemães e a alta nobreza que ocultaram Lutero num castelo da Saxônia, impedindo sua execução.

      Guerras e revoltas


      Durante os três anos em que ficou oculto, Lutero traduziu a Bíblia para o alemão, numa forma de tornar seu conhecimento mais difundido entre a população, de modo a provar o quanto a Igreja havia se afastado dos propósitos cristãos. Em sua maioria, os príncipes alemães declararam-se adeptos da nova religião proposta por Lutero. Vendo nisso uma clara ameaça a seu poder, o imperador Carlos 5º impôs o catolicismo como religião oficial do império. Os príncipes protestaram contra essa imposição (daí advindo o termo "protestante"), dando início a um longo processo de guerras de religião na Alemanha.



      Por outro lado, além do apoio da nobreza, por razões políticas, as idéias de Lutero despertaram o apoio dos camponeses, vendo nos ataques à Igreja uma oportunidade de reduzirem o grau de profunda desigualdade e exploração a que estavam submetidos. Várias revoltas camponesas eclodiram na Alemanha, entre elas a principal, liderada por Thomas Müntzer.



      Lutero voltou-se violentamente contra esses movimentos, posto que, dependente do apoio dos nobres, ele jamais poderia colocar-se ao lado de revoltas camponesas. Assim, Lutero defendeu a postura mais agressiva possível contra eles ("[...] É preciso estrangulá-los; é preciso matar o cão raivoso que se lança contra ti ou ele te matará."). A repressão aristocrática aos camponeses durou de 1524 a 1536 e produziu mais de cem mil mortos.

      Mudanças


      Já em 1527, Lutero, juntamente com Melanchton, elaborou a Confissão de Augsburgo, que estabelecia os princípios de sua doutrina. Por ela estabelecia-se: que as Escrituras Sagradas eram o único dogma da nova religião; a fé era vista como a única fonte da salvação; a livre interpretação da Bíblia passava a ser permitida; negava-se a transubstanciação (transformação do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo, presente na fé católica) e a crença de que a presença de Cristo na Eucaristia era espiritual; adotava-se o alemão, e não mais do latim, como idioma nos cultos religiosos; a Igreja passava a ficar submetida ao Estado; e, finalmente, permaneciam apenas dois sacramentos: o batismo e a eucaristia.



      Em 1555, a Dieta de Augsburgo permitiu que cada príncipe escolhesse a sua religião, que passaria a ser também a de seus súditos ("cujus regio ejus religio"- tal príncipe, sua religião). O luteranismo triunfara na Alemanha. Foi adotado também na Suécia, em 1527, e na Dinamarca e Noruega, em 1536, como forma de afirmação dos poderes reais contra a interferência de Roma.
      A reforma calvinista
      Gilberto Salomão*
      Especial para Página 3 Pedagogia & Comunicação
      Reprodução
      Fugindo da perseguição na França, Calvino estabeleceu-se em Genebra, na Suíça
      Desde 1499, a Suíça havia obtido a independência em relação ao Sacro Império, estando dividida, politicamente, em cantões autônomos. Região rica, palco da ação de uma crescente burguesia, a Suíça, e particularmente a cidade de Genebra, acompanhou a penetração das idéias luteranas no país, trazidas por Ulrich Zwinglio, que receberam forte acolhida junto à burguesia local.


      As idéias de Zwinglio já haviam gerado um violento conflito entre reformistas e católicos entre 1529 e 1531. Essa guerra civil fora encerrada com a Paz de Kappel, que dava autonomia religiosa aos vários cantões suíços.


      João Calvino


      Essa situação atraiu para as cidades suíças vários líderes reformistas perseguidos na Europa inteira. Entre eles, João Calvino (1509-1564), que, fugindo da perseguição aos protestantes na França, refugiou-se na cidade de Genebra. Já em 1536, Calvino publicou sua obraInstituição da Religião Cristã, na qual ele apresentava uma ruptura bem mais sensível com os dogmas católicos do que as idéias de Lutero e de Zwinglio. 



      Segundo a visão de Calvino, a salvação só se alcança através da fé, mas ela é concedida por Deus a alguns eleitos (predestinação), sendo que o homem é pecador por natureza. O culto foi ainda mais simplificado, resumindo-se a comentários bíblicos feitos por sacerdotes sem paramentos, em igrejas simples e despojadas de imagens. A exemplo do luteranismo, apenas o batismo e a eucaristia foram conservados, nesta última também se abandonando a idéia de transubstanciação.



      Não apenas as concepções religiosas de Calvino iam diretamente ao encontro das aspirações da sociedade de Genebra, mas também a ética por ele preconizada. Podem ser citadas, nesse sentido, inúmeras passagens do próprio Calvino, como por exemplo: "Deus chama a cada um para uma vocação particular cujo objetivo é a glorificação dele mesmo. O comerciante que busca o lucro, pelas qualidades que o sucesso econômico exige: o trabalho, a sobriedade, a ordem, responde também o chamado de Deus, santificando de seu lado o mundo pelo esforço e sua ação é santa".


      Huguenotes, puritanos e presbiterianos


      Calvino foi amplamente aceito pela elite local. Guindado à condição de um líder religioso e político, Calvino, através das Ordenações Eclesiásticas, implantou leis rígidas, que davam à sua Igreja o controle total sobre a vida religiosa, moral e política dos cidadãos. A nova Igreja dividiu-se em fiéis, pastores e um conselho, o Consistório, que possuía amplos poderes.



      Composto por três pastores e doze representantes da sociedade local, eleitos por um conselho municipal, o Consistório tinha poderes para regular cada aspecto do comportamento do cidadão, incluindo sua indumentária e as práticas sociais.



      As idéias de Calvino difundiram-se rapidamente, muito mais do que as idéias luteranas, o que é outra mostra de sua consonância com a sociedade urbana em formação. Na França, os calvinistas foram chamados de huguenotes. Na Inglaterra, pelo tipo de comportamento preconizado pelos calvinistas, marcado pela seriedade, pela austeridade inclusive no vestir, pela dedicação fundamental ao trabalho, eles foram chamados de puritanos. Na Escócia, onde as idéias calvinistas foram introduzidas por John Knox, a Igreja calvinista foi organizada a partir de conselhos de pastores, os presbíteros, daí a designação de presbiterianos.
      A reforma anglicana
      Gilberto Salomão*
      Especial para Página 3 Pedagogia & Comunicação
      Reprodução
      O rei Henrique 8o promoveu a Reforna na Inglaterra
      O aspecto político das reformas teve, na Inglaterra, sua manifestação mais evidente. O próprio fato de a reforma religiosa ter sido conduzida diretamente pelos reis ingleses serve como comprovador dessa visão.


      A dinastia Tudor nasceu num quadro de fortalecimento do poder real na Inglaterra, após o esmagamento dos setores dissidentes da nobreza na Guerra das Duas Rosas. O primeiro rei Tudor, Henrique 7º, procurou consolidar esse poder, esbarrando, entretanto, no forte poder político e econômico exercido pela Igreja Católica no país.



      Foi o seu filho, Henrique 8º, quem vislumbrou a oportunidade de se voltar contra esse poder. Em meio à crise provocada na Alemanha pelo movimento luterano, Henrique 8º aproveitou-se do momento favorável para estabelecer um confronto com o papado.

      Uma questão política e dinástica


      A razão ostensiva para esse confronto liga-se a uma questão política e dinástica. Casado com a nobre espanhola, Catarina de Aragão, Henrique 8º tivera com ela uma filha, Mary. Impossibilitada de ter outros filhos, Catarina criava uma situação potencialmente perigosa para a monarquia inglesa. Sem filhos homens (o trono inglês jamais fora ocupado até então por uma mulher), Henrique 8º alegava o risco de morrer sem um herdeiro, o que tornava o rei da Espanha e Imperador do Sacro Império, Carlos 5º, sobrinho de Catarina, um dos pretendentes ao trono inglês.



      Alegando a imperiosa necessidade de um herdeiro, Henrique solicita ao papa a anulação de seu casamento com Catarina. Tratava-se de uma manobra obviamente destinada a criar um confronto. Henrique tinha plena consciência de que o papa jamais iria se indispor contra Carlos 5º, seu principal aliado na luta contra Lutero.



      Ante a recusa papal, Henrique 8º anulou por conta própria seu casamento, desposando, em seguida, Ana Bolena. Excomungado pelo papa, Henrique 8º reagiu, em 1534, com o Ato de Supremacia, por meio do qual ele criou uma Igreja nacional chamada Igreja Anglicana ou Igreja da Inglaterra, da qual era o chefe. Confiscou ainda os bens do clero católico na Inglaterra, distribuindo-os especialmente entre a gentry, a camada de pequenos e médios proprietários rurais, o que lhe assegurou uma ampla base de apoio.



      Henrique não fez mudanças no culto. Elas foram obra de seu filho, Eduardo 4º, que, em 1549, impôs o Livro de Orações Comuns, em inglês, e em 1553 suprimiu a missa e o celibato clerical.



      A Reforma anglicana completou-se no reinado de Elizabeth I (1558-1603) com a Lei dos 39 Artigos (1563). Adotou-se o calvinismo como conteúdo doutrinário, mas manteve-se a forma católica, preservando-se a hierarquia episcopal e parte da liturgia.
      A Reforma católica e a Contra-Reforma
      Gilberto Salomão*
      Especial para Página 3 Pedagogia & Comunicação
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      Ignácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, a ordem dos soldados de Cristo
      A contínua expansão do protestantismo por toda Europa colocou a Igreja Católica em uma situação crítica. Impunha-se uma reforma para moralizar o clero e, ao mesmo tempo, desencadear o combate às novas religiões, classificadas como heresias.



      O surgimento da Companhia de Jesus, em 1534, por obra de Ignácio de Loyola, revelou-se fundamental para a realização da Reforma católica. Os jesuítas, chamados de "soldados de Cristo", devotando uma cega obediência ao papa, encarregaram-se de organizar um concílio.


      Inquisição


      Enquanto aguardava a instalação do concílio, o papa Paulo 3º (1534-1549) tomou medidas para combater o protestantismo. Em 1542, a Inquisição (ou Tribunal do Santo Ofício) foi reativada. Dominada pelos dominicanos, ela conseguiu, utilizando de métodos violentíssimos, deter o avanço protestante na Itália, na Espanha e em Portugal. Nos países ibéricos, o apoio real foi fundamental para a derrota do protestantismo. E em 1543 foi elaborado o Index Librorum Prohibitorum, ou simplesmente Index, um catálogo que arrolava obras de leitura proibida aos católicos.


      Concílio de Trento


      O Concílio de Trento reuniu-se, finalmente, em 1545, durando até 1563. Foi ecumênico, ou seja, reuniu representantes de toda Igreja. Ele produziu uma Igreja reformada, embora os dogmas católicos não sofressem alteração: o princípio da salvação pelas boas obras foi confirmado; o culto à Virgem e aos santos foi reafirmado; a infalibilidade papal, o celibato clerical e a indissolubilidade do casamento foram mantidos. 



      Graças às pressões dos jesuítas, a autoridade papal foi reforçada. A disciplina do clero restabelecida: fixaram-se condições e idades mínimas para o exercício das funções eclesiásticas; o acúmulo de bispados e paróquias foi proibido, bem como a venda de indulgências. Criaram-se seminários para a formação dos eclesiásticos e foram elaborados um Catecismo e um Missal.



      Com a Igreja revigorada, os católicos dedicaram-se à Contra-Reforma, com o sistemático combate às religiões protestantes. Internamente, a Inquisição encarregou-se de manter o controle sobre as populações católicas, perseguindo os heréticos e contendo a difusão das doutrinas protestantes.



      Externamente, procurou-se reconquistar, por meio da educação, as áreas perdidas para o protestantismo. Pelo empenho dos jesuítas, vários colégios encarregados do ensino primário foram fundados na Europa. O resultado foi modesto. Após duas gerações, parte da Renânia, o sul dos Países Baixos e a Polônia haviam sido reconquistados.



      O maior êxito da Contra-Reforma deu-se pela difusão do catolicismo entre os povos pagãos, por meio da catequese. Graças ao controle ibérico sobre a maioria da América, as massas indígenas foram convertidas, e os esforços, especialmente dos jesuítas, alcançaram na Ásia, a China e o Japão, embora com resultados modestos e passageiros.



      *Gilberto Salomão, formado em história pela USP, é professor do Curso Intergraus e autor dos livros de história do Sistema de Ensino Poliedro.

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      Texto 00 - Sermão da Sexagésima - Pe. Antônio Vieira

      SERMÃO DA SEXAGÉSIMA
      PADRE ANTÓNIO VIEIRA
       

      Pregado na Capela Real, no ano de 1655.




      Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII, 11.I

      E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.
      Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que «saiu o pregador evangélico a semear» a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare.
      Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar e propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem. Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: «Uma vez que iam, não tornavam». As rédeas por que se governavam era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto: mas esse espírito tinha impulsos para os levar,não tinha regresso para os trazer; porque sair para tornar melhor é não sair. Assim argüis com muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos que havia de fazer? Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo), mas com pouca ventura. «Uma parte do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos»: Aliud cecidit inter spinas et simul exortae spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de humidade»: Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. «Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves»: Aliud cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud. Ora vede como todas as criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas há no Mundo se reduzem a quatro gêneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no; e os homens? Pisaram-no: Conculcatum est. Ab hominibus (diz a Glossa).
      Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: «Ide, e pregai a toda a criatura». Como assim, Senhor?! Os animais não são criaturas?! As árvores não são criaturas?! As pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras?! Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos animais?! Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos vão pregar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas?! Grande desgraça!
      Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcutum est. Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocatins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o Notum aruit, quia non habebant humorem! E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens: Conculcatum est! Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados.
      Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? -- Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, «quando iam não tornavam»: Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que «aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco»: Ibant et revertebantur in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e última parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum.
      Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram es pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também? Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? -- Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.
      II
      Semen est verbum Dei.
      O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum.
      Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na experiência, comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? -- Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que aprendais a ouvir.
      III
      Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?
      Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? -- A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? -- Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta: do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? -- disse o mesmo Deus por Isaías.
      Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.
      Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? -- Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.
      Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse a força do que semeava. E tanta a força da divina palavra, que, sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem.
      Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes.
      Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? -- Por culpa nossa.
      IV
      Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? -- No pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e buscando esta causa.
      Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram santos eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores são eu e outros como eu? -- Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que saneia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? -- o conceito que de sua vida têm os ouvintes.
      Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de David derrubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus. As vozes da harpa de David lançavam fora os demônios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et percutiebat manu sua. Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar faz-se com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram em palavras? -- Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras! Quis Deus converter o Mundo, e que fez? -- Mandou ao Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum non factum. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est. De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do Mundo. Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu e na Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra não? A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est; na terra entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o que entra pelos ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão seriam muito outros.
      Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de pinhos e que lha pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma cana por ceptro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina aparece a imagem do Ecce Homo; eis todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coma e daqueles espinhos, já tinha dito daquele ceptro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? -- Porque então era Ecce Homo ouvido, e agora é Ecce Homo visto; a relação do pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura entra pelos olhos. Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermões? -- Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o Baptista tantos pecadores? -- Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Baptista pregavam penitência: Agite poenitentiam. «Homens, fazei penitência» -- e o exemplo clamava: Ecce Homo: «eis aqui está o homem» que é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Baptista pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Baptista pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício à raiz da carne. As palavras do Baptista pregavam despegos e retiros do Mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo Clamava: Ecce Homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as sociedades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e vêem outra, como se hão-de converter? Jacob punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daqui procedia que os cordeiros nasciam malhados. Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão-de conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma cousa é o semeador e outra o que semeia, como se há-de fazer fruto?
      Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a palavra de Deus; mas tem contra si o exemplo e experiência de Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente, contumaz, e, ainda depois de engolido e vomitado iracundo, impaciente, pouco caritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso de ver subvertida a Nínive e de a ver subverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes; contudo este mesmo homem com um sermão converteu o maior rei, a maior corte e o maior reinado do Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios idólatras. Outra é logo a causa que buscamos. Qual será?
      V
      Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitectura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. «Caía o trigo nos espinhos e nascia» Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae «Caía o trigo nas pedras e nascia»: Aliud cecidit super petram, et ortum. «Caía o trigo na terra boa e nascia»: Aliud cecidit in terram bonam, et natum. Ia o trigo caindo e ia nascendo.
      Assim há-de ser o pregar. Hão-de cair as coisas hão-de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio; uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair: Cecidit. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos de cair: há-de cair com queda, há-de cair com cadência há-de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar; hão-de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão-de ser escabrosas nem dissonantes; hão-de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.
      Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? -- O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum -- diz David. Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum. E quais são estes sermões e estas palavras do céu? -- As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há-de estar branco, da outra há-de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão-de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão-de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão-de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: -- estrelas que todos vêem, e muito poucos as medem.
      Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. E possível que somos portugueses e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos de entender o que diz?! Assim como há Lexicon para o grego e Calepino para o latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara para os nomes próprios, porque os cultos têm desbaptizados os santos, e cada autor que alegam é um enigma. Assim o disse o Ceptro Penitente, assim o disse o Evangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o Favo de Claraval, a Púrpura de Belém, a Boca de Ouro. Há tal modo de alegar! O Ceptro Penitente dizem que é David, como se todos os ceptros não foram penitência; o Evangelista Apeles, que é S. Lucas; o Favo de Claraval, S. Bernardo; a Águia de África, Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, S. Jerónimo; a Boca de Ouro, S. Crisóstomo. E quem quitaria ao outro cuidar que a Púrpura de Belém é Herodes que a Águia de África é Cipião, e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de ter por néscio? Pois o que na conversação seria necessidade, como há-de ser discrição no púlpito?
      Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos pelo pulido e estudado se defendem com o grande Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo, com Leão, e pelo escuro e duro com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia, com Zeno Veronense e outros, não podemos negar a reverência a tamanhos autores posto que desejáramos nos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual será logo a causa de nossa queixa?
      VI
      Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos e quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão há-de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos géneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o sermão há-de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste género. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há-de colher senão vento? O Baptista convertia muitos em Judeia; mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate viam Domini: a preparação para o Reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas; mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur: a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto; e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão há-de ser de uma só cor, há-de ter um só objecto, um só assunto, uma só matéria.
      Há-de tomar o pregador uma só matéria; há-de defini-la, para que se conheça; há-de dividi-la, para que se distinga; há-de prová-la com a Escritura; há-de declará-la com a razão; há-de confirmá-la com o exemplo; há-de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades; há-de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários; e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto.
      Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão-de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas, porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão-de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras. Há-de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há-de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de ordenar o sermão. De maneira que há-de haver frutos, há-de haver flores, há-de haver varas, há-de haver folhas, há-de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são versas. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, à que podemos chamar «árvore da vida», há-de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como hão-de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça fruto com eles.
      Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não só com os preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos oradores evangélicos, S. João Crisóstomo, de S. Basílio Magno, S. Bernardo. S. Cipriano, e com as famosíssimas orações de S. Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, S. Gregório e muitos outros, se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermão e homilias, uma coisa é expor, e outra pregar; uma ensinar e outra persuadir, desta última é que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no mundo Santo António de Pádua e S. Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja ainda esta a verdadeira causa que busco.
      VII
      Será porventura a falta de ciência que há em muitos pregadores? Muitos pregadores há que vivem do que não colheram e semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão parece também esta. O pregador há-de pregar o seu, e não o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu, e não o alheio, porque o alheio e, o furtado não é bom para semear, ainda que o furto seja de ciência. Comeu Eva o pomo da ciência, e queixava-me eu antigamente desta nossa mãe; já que comeu o pomo, por que lhe não guardou as pevides? Não seria bem que chegasse a nós a árvore, já que nos chegaram os encargos dela? Pois por que não o fez assim Eva? Porque o pomo era furtado, e o alheio é bom para comer, mas não é bom para semear: é bom para comer, porque dizem que é saboroso; não é bom para semear, porque não nasce. Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo, que se nasce, não há-de deitar raízes, e o que não tem raízes não pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores não fazem fruto; porque pregam o alheio, e não o seu: Semen suum. O pregar é entrar em batalha com os vícios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória. Quando David saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com armas alheias ninguém pode vencer, ainda que seja David. As armas de Saul só servem a Saul, e as de David a David; e mais aproveita um cajado e uma funda própria, que a espada e a lança alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo que derrube gigante.
      Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens, que foi ordená-los de pregadores; e que faziam os Apóstolos? Diz o texto que estavam: Reficientes retia sua: «Refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos, e não eram alheias. Notai: Retia sua: Não diz que eram suas porque as compraram, senão que eram suas porque as faziam; não eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, senão porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas; e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens. Com redes alheias, ou feitas por mão alheia, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é porque nesta pesca de entendimentos só quem sabe fazer a rede sabe fazer o lanço. Como se faz uma rede? Do fio e do nó se compõe a malha; quem não enfia nem ata, como há-de fazer rede? E quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há-de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves; e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça.
      As razões não hão-de ser enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento.
      Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na cabeça. Pois por que na cabeça e não na boca, que é o lugar da língua? Porque o que há-de dizer o pregador, não lhe há-de sair só da boca; há-lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca pára nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento. Ainda tem mais mistério estas línguas do Espírito Santo. Diz o texto que não se puseram todas as línguas sobre todos os Apóstolos, senão cada uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos eorum. E por que cada uma sobre cada um, e não todas sobre todos? Porque não servem todas as línguas a todos, senão a cada um a sua. Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais. E senão vede-o no estilo de cada um dos Apóstolos, sobre que desceu o Espírito Santo. Só de cinco temos escrituras; mas a diferença com que escreveram, como sabem os doutos, é admirável. As penas todas eram tiradas das asas daquela pomba divina; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão próprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil, João misterioso, Pedro grave, Jacob forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco S. Lucas e S. Marcos, que também ali estavam, e achareis o número daqueles sete trovões que ouviu S. João no Apocalipse. Loquuti sunt septem tonitrua voces suas. Eram trovões que falavam e desarticulavam as vozes, mas essas vozes eram suas: Voces suas; «suas, e não alheias», como notou Ansberto: Non alienas, sed suas. Enfim, pregar o alheio é pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez coisa boa.
      Contudo eu não me firmo de todo nesta razão, porque do grande Baptista sabemos que pregou o que tinha pregado Isaías, como notou S. Lucas, e não com outro nome, senão de sermões: Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonun Isaiae prophetae. Deixo o que tomou Santo Ambrósio de S. Basílio; S. Próspero e Beda de Santo Agostinho; Teofilato e Eutímio de S. João Crisóstomo.
      VIII
      Será finalmente a causa, que tanto há buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. Boa era também esta, mas não a podemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era ofício de boca. Porém o que nos negou o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no semeador verdadeiro, que é Cristo. Tanto que Cristo acabou a parábola, diz o Evangelho que começou o Senhor a bradar: Haec dicens clamabat. Bradou o Senhor, e não arrazoou sobre a parábola, porque era tal o auditório, que fiou mais dos brados que da razão.
      Perguntaram ao Baptista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in deserto: Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Baptista. A definição do pregador, cuidava eu que era: voz que arrazoa e não voz que brada. Pois por que se definiu o Baptista pelo bradar e não pelo arrazoar; não pela razão, senão pelos brados? Porque há muita gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razão, e tais eram aqueles a quem o Baptista pregava. Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos examinou as acusações que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego nullam causam invenio in homine isto: Eu nenhuma causa acho neste homem. Neste tempo todo o povo e os escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: At illi magis clamabant, crucifigatur. De maneira que Cristo tinha por si a razão e tinha contra si os brados. E qual pôde mais? Puderam mais os brados que a razão. A razão não valeu para o livrar, os brados bastaram para o pôr na Cruz. E como os brados no Mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores «nuvens»: Qui sunt isti, qui ut nubes volant? A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração; com o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há-de ser a voz do pregador, um trovão do Céu, que assombre e faça tremer o Mundo.
      Mas que diremos à oração de Moisés? Concrescat ut pluvia doctrina mea: fluat ut ros eloquim meum: Desça minha doutrina como chuva do céu, e a minha voz e as minhas palavras como orvalho que se destila brandamente e sem ruído. Que diremos ao exemplo ordinário de Cristo, tão celebrado por Isaías: Non clamabit neque audietur vox ejus foris? Não clamará, não bradará, mas falará com uma voz tão moderada que se não possa ouvir fora. E não há dúvida que o praticar familiarmente, e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, não só concilia maior atenção, mas naturalmente e sem força se insinua, entra, penetra e se mete na alma. Em conclusão que a causa de não fazerem hoje fruto os pregadores com a palavra de Deus, nem é a circunstância da pessoa: Qui seminat: nem a do estilo: Seminare; nem a da matéria: Semen; nem a da ciência: Suum; nem a da voz: Clamabat. Moisés tinha fraca voz; Amós tinha grosseiro estilo; Salamão multiplicava e variava os assuntos; Balaão não tinha exemplo de vida; o seu animal não tinha ciência; e contudo todos estes, falando, persuadiam e convenciam. Pois se nenhuma destas razões que discorremos, nem todas elas juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que é a verdadeira causa?
      IX
      As palavras que tomei por tema o dizem. Semen est verbum Dei. Sabeis, Cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como diria) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, que muito que não tenham a eficácia e os efeitos da palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: «Quem semeia ventos, colhe tempestades». Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr tormenta, em vez de colher fruto?
      Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus: Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demónio. Tentou o Demónio a Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore dei. Esta sentença era tirada do capítulo VIII do Deuteronómio. Vendo o Demónio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo XC, diz-lhe desta maneira: Mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: «Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal.» De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, senão a Cristo, a sua fé.
      Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis que tantas vezes levantais, essas empresas ao vosso parecer agudas que prosseguis, achaste-las alguma vez nos Profetas do Testamento Velho, ou nos Apóstolos e Evangelistas do Testamento Novo, ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo que não, porque desde a primeira palavra do Génesis até à última do Apocalipse, não há tal coisa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que toam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos queixamos que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem?! E então ver cabecear o auditório a estas coisas, quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir! Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos? Oh, que bem levantou o pregador! Assim é; mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a alguém parecer demasiada a censura, ouça-me.
      Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista S. Mateus que por fim vieram duas testemunhas falsas: Novissime venerunt duo falsi testes. Estas testemunhas referiram que ouviram dizer a Cristo que, se os Judeus destruíssem o templo, ele o tornaria a reedificar em três dias. Se lermos o Evangelista S. João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o templo dentro em três dias, e isto mesmo é o que referiram as testemunhas, como lhes chama o Evangelista testemunhas falsas: Duo falsi testes? O mesmo S. João deu a razão: Loquebatur de templo corporis sui. Quando Cristo disse que em três dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o qual os Judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava do templo místico e as testemunhas o referiram ao templo material de Jerusalém, ainda que as palavras eram verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas, porque Cristo as dissera em um sentido, e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas, o que são imaginações minhas, que me não quero excluir deste número! Que muito logo que as nossas imaginações, e as nossas vaidades, e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!
      Miseráveis de nós, e miseráveis dos nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a profecia de S. Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt: Virá tempo, diz S. Paulo, «em que os homens não sofrerão a doutrina sã. Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus: Mas para seu apetite terão grande número de pregadores feitos a montão e sem escolha, os quais não façam mais que adular-lhes as orelhas. A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur: Fecharão os ouvidos à verdade, e abri-los-ão às fábulas». Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento, porque são sutilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente era acabarem-se as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Séneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do Mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros, e muito mais sólidos, do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano, e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes, sobre cristão, religioso!
      Pouco disse S. Paulo em lhe chamar comédia, porque muitos sermões há que não são comédia, são farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este se rompeu, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós que é o que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afectada e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia o rei veste como rei, e fala como rei; o lacaio, veste como lacaio, e fala como lacaio; o rústico veste como rústico, e fala como rústico; mas um pregador, vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro, e o sermão comédia se quer, não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava S. Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos de seus filhos? Pois por que não os imitamos? Por que não pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou S. Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou S. Francisco de Borja; e eu, que tenho o mesmo hábito, por que não pregarei a sua doutrina, já que me falta o seu espírito?
      X
      Dir-me-eis o que a mim me dizem, e o que já tenho experimentado, que, se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes, e não gostam de ouvir. Oh, boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem e não gostem embora, e façamos nós nosso ofício! A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar, e por isso mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais hão mister. O trigo que caiu no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os demónios, que tiram a palavra de Deus dos corações dos homens: Venit Diabolus, et tollit verbum de corde ipsorum! Pois por que não comeu o Diabo o trigo que caiu entre os espinhos, ou o trigo que caiu nas pedras, senão o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho: Conculcatum est ab hominibus: Pisaram-no os homens; e a doutrina que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa é a de que o Diabo se teme. Dessoutros conceitos, dessoutros pensamentos, dessoutras sutilezas que os homens estimam e prezam, dessas não se teme nem se acautela o Diabo, porque sabe que não são essas as pregações que lhe hão-de tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: Secus viam: daquela doutrina que parece comum: Secus viam; daquela doutrina que parece trivial: Secus viam; daquela doutrina que parece trilhada: Secus viam; daquela doutrina que nos põe em caminho e em via da nossa salvação (que é a que os homens pisam e a que os homens desprezam), essa é a de que o Demónio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e tirar do Mundo; e por isso mesmo essa é a que deviam pregar os pregadores, e a que deviam buscar os ouvintes. Mas se eles não o fizerem assim e zombarem de nós, zombemos nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam, diz S. Paulo: O pregador há-de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o Apóstolo: Há-de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é mundo: mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de sua fama?, isso é ser pregador de Jesus Cristo.
      Pois o gostarem ou não gostarem os ouvintes! Oh, que advertência tão digna! Que médico há que repare no gosto do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem e não gostem; salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas. Quais vos parece que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parábola, diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com gosto: Hi sunt, qui cum gaudio suscipiunt verbum. Pois será bem que os ouvintes gostem e que no cabo fiquem pedras?! Não gostem e abrandem-se; não gostem e quebrem-se; não gostem e frutifiquem. Este é o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: Et fructum afferunt in patientia, conclui Cristo. De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer; frutifiquemos nós, e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atónito, sem saber parte de si, então é a preparação qual convém, então se pode esperar que faça fruto: Et fructum afferunt in patientia.
      Enfim, para que os pregadores saibam como hão-de pregar e os ouvintes a quem hão-de ouvir, acabo com um exemplo do nosso Reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dois famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos; não os nomeio, porque os hei-de desigualar. Altercou-se entre alguns doutores da Universidade qual dos dois fosse maior pregador; e como não há juízo sem inclinação, uns diziam este, outros, aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: «Entre dois sujeitos tão grandes não me atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim.»
      Com isto tenho acabado. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saíreis muito descontentes de vós. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós. Si hominibus placerem, Christus servus non essem, dizia o maior de todos os pregadores, S. Paulo: Se eu contentara aos homens, não seria servo de Deus. Oh, contentemos a Deus, e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma Igreja há tribunas mais altas que as que vemos: Spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus. Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos há-de julgar. Que conta há-de dar a Deus um pregador no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: Não mo disseram. Mas o pregador? Vae mihi, quia tacui: Ai de mim, que não disse o que convinha! Não seja mais assim, por amor de Deus e de nós.
      Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum.