Texto 5 - Calvino (por Nicola A. Abbagnano)

Se o retorno às fontes religiosas é para Lutero essencialmente o regresso ao Evangelho e para Zwingli o regresso à revelação originária concedida a pagãos e a cristãos, para Calvino é, ao invés, o retorno à religiosidade do Velho Testamento. João Calvino (10 de Julho de 1509 - 27 de Maio de 1564) nasceu em França, em Noyon, mas foi na Suíça, em Genebra, que levou a caibo a sua obra de reformador; e desta obra se originaram as igrejas reformadas que não se organizaram sob a influência do Estado, como na Alernanha, mas se desenvolveram livremente. Em 1553 Calvino mandava condenar à fogueira, pelo Conselho de Genebra, o espanhol Miguel Serveto, que negava encarnação, pois via na figura histórica de Cristo uma simples participação na substância eterna do  Pai (Restitutio christianismi, 1553). Mais tarde, foram efetuadas perseguições e condenações contra a chamada corrente libertina, que congregava os defensores da imanência de Deus em todo o universo. A intolerância foi para Calvino uma arma de defesa dia nascente Igreja reformada; enquanto viveu, o poder político em Genebra foi completamente subordinado às exigências espirituais da reforma religiosa. 

Num capítulo dia sua obra fundamental Instituição da religião cristã (aparecida pela primeira vez em latim em 1536 e por ele traduzida posteriormente para francês e publicada em 1541 nesta língua, a qual constitui o primeiro documento literário da prosa francesa), Calvino propõe-se mostrar a unidade do Velho e do Novo Testamento, combatendo a tese de que o Velho Testamento tenha anunciado aos Hebreus uma felicidade puramente terrena. Calvino insiste na impossibilidade de entender doutrina do Evangelho sem o Velho Testamento; e, na realidade, na sua interpretação da Bíblia são os conceitos do Velho Testamento que prevalecem. Do Velho Testamento extrai o conceito axial da sua concepção religiosa: Deus com absoluta soberania e potência, perante o qual o homem nada é. Na teologia de Calvíno, Deus é omnipotência e imperscrutabilidademais do que amor. Da sua vontade depende o curso das coisas e o destino dos homens, portanto também a sua salvação. " Conforme aquilo que a Escritura claramente demonstra, nós dizemos que o Senhor há muito decidiu, no seu conselho eterno e imutável, que homens havia de destinar à salvação e quais deixar na ruína. Aqueles que ele chama à salvação, dizemos nós que os recebe pela sua misericórdia gratuita, sem ter em conta a dignidade deles. Pelo contrário, o ingresso na vida está vedado a todos aqueles que ele quer votar à condenação; e isso ocorre devido a um seu juízo oculto e incompreensível, embora justo e equânime." (Inst. 7, 111, 62-63). A eleição divina não se segue à previsão divina, senão que a precede. Calvino considera inconciliáveis estas duas afirmações: a de que os fiéis obtêm a sua santidade pela eleição e a de que são eleitos por esta santidade. A santidade origina-se unicamente da eleição: não pode portanto ser causa dela. É impossível atribuir ao homem um mérito qualquer relativamente a Deus. O homem reconcilia-se com Deus apenas através da mediação de Cristo e da participação nas suas promessas. Mas a própria obra mediadora de Cristo é um decreto eterno de Deus, que faz parte da ordem providencial do mundo. "Nós temos, diz Calvino (Ib., 6, 11, 275) esta regra breve mas geral e certíssima: aquele que por completo se aniquilou e despojou, não digo da sua justiça que nada é, mas daquela sombra de justiça que nos engana, está devotamente preparado para receber os frutos da misericórdia de Deus. Porque, quanto mais cada um repouse em si mesmo, tanto mais será,um impedimento, à graça de Deus". Aliás, a graça de Deus não impele o homem do mesmo modo que nós atiramos uma pedra. É uma faculdade natural, reconhece Calvino, querer ou não querer e tanto faz querer o mal como não querer o bem, entregar-se ao pecado como resistir à justiça. O Senhor serve-se da perversidade do homem como de um instrumento da sua ira; enquanto refreia e modera a vontade dos que destina à salvação, dirige-a, forma-a, condu-la segundo a regra da sua justiça, e finalmente confirma-a e fortifica-a com a virtude do Espírito. Deus quer que tudo o que ele faz em nós seja nosso, contanto que entendamos que nada depende de nós (Ib., 2; 11, 188-190). 

Esta doutrina da predestinação, precisamente no que possui de extremo e de paradoxal, constitui a força da consciência calvinista. Quem conta| apenas com os méritos humanos, permanece necessàriamente em dúvidia quanto à eficácia de tais méritos, tão imperfeitos e precários, e por ísso quanto à própria salvação. Mas quem crê apenas nos méritos de Cristo e se sente, em virtude de tais méritos, predestinado, adquire uma força de convicção que não recua perante as dificuldades e o leva até ao fanatismo. Como Lutero e Zwingli, Calvino abria ao cristão o campo de ação da vida social e levava-o a empenhar-se num trabalho ativo dentro da sociedade e a transformá-la em conformidade com o seu ideal religioso. O trabalho tomava-se assim um dever sagrado, e o êxito nos negócios uma prova evidente do favor de Deus e, segundo os conceitos do Velho Testamento, um sinal da sua predileção. Pela ética calvinista se modelou o espírito da nascente burguesia capitalista: o espírito ativo, agressivo, desdenhoso de todos os sentimentos, continuamente dirigido para o êxito. É significativo que o próprio Calvino tenha reabilitado a usura e haja declarado, moralmente lícito receber juros de empréstimo. Como quer que seja, a verdade é que o carácter religioso, atribuído ao êxito nos negócios estabelece laços estreitos entre a atividade mercantil e a consciência religiosa e reveste de um carácter sagrado a prosperidade econômica. No plano propriamente especulativo, a teologia de Calvino põe o homem perante um muro: a imperscrutabilidade dos desígnios divinos que faz com que o homem nada possa entender da justiça divina e deva limitar-se a sofrê-la.

ABBAGNANO, Nicola A. História da Filosofia - Quinto volume - Tradução: Nuno Valadas e Antônio Ramos Rosa. - Editora Presença, Lisboa, 1970. Título original: STORIA DELLA FILOSOFIA (pgs. 207 a 211).

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