Texto 13 - Leibniz (Por Nicola Abbagnano)

LEIBNIZ

§ 436. LEIBNIZ: VIDA E ESCRITOS


Se a filosofia de Espinosa é uma doutrina da ordem necessária do mundo, a filosofia de Leibniz pode ser descrita como sendo uma doutrina da ordem livre do mundo. A diferença entre as duas filosofias tem o seu fundamento na diferença entre dois conceitos de razão: a razão é para Espinosa a faculdade que estabelece ou reconhece relações necessárias, ao passo que é para Leibniz a simples possibilidade de estabelecer relações.

Gotfried Wilhelm Leibniz nasceu a 21 de Junho de 1646 em Leibniz. Foi um garoto precoce: aprendeu sozinho o latim e muito cedo conseguiu dar soluções pessoais aos problemas que se debatiam nas escolas. Estudou jurisprudência em Leipzig e em Altdorf (perto de Nuremberga), onde se licenciou em 1666. Os seus primeiros escritos são precisamente teses para a obtenção de títulos académicos: uma discussão intitulada De principio individui, vários escritos jurídicos e a Ars combnatoria em que se anuncia já a sua ideia de um "alfabeto dos pensamentos humanos" e de uma lógica organizada matematicamente.

Em Nuremberg, Leibniz trava conhecimento com o barão de Boineburgo, um dos mais eminentes homens políticos alemães da época, que o levou a Francoforte e o apresentou ao Eleitor de Mogúncia. Leibniz escreve então o Novo methodus discendae docendaeque jurisprudentiae (1667), que é o mais importante dos seus ensaios jurídicos. Em Mogúncia obtém o cargo de conselheiro do Eleitor e desempenha vários cargos científicos e políticos. Começava assim a atividade política, que ocupou grande parte, da sua vida e que, embora sendo inspirada por circunstâncias ocasionais e pelo interesse das pessoas que se valeram dele,
obedece no seu conjunto a um grandioso desígnio: o de uma organização política universal ao serviço da civilização e da ciência. Entretanto, a sua atividade filosófica incide sobre problemas de ordem teológica, lógica e sobretudo física. Em 1671 compõe a Hypothesis physica nova. Inicia também neste período a correspondência com os maiores cientistas do tempo, na qual se encontra consignada boa parte da sua atividade de escritor.

Em 1762, Leibniz foi enviado a Paris com uma missão diplomática destinada a dissuadir Luís XIV da sua projetada invasão da Holanda inspirando-lhe o desejo de conquistar o Egito. O projeto gorou-se e foi declarada guerra à Holanda. Leibniz foi autorizado a permanecer em Paris, onde estreitou relações com os homens mais importantes da época. Aí permaneceu quatro anos que foram decisivos para a sua formação científica. Em França dominava então o cartesianismo, mas Leibniz interessou-se sobretudo pelas descobertas matemáticas e físicas. Em 1676, descobriu o cálculo integral que no entanto só tornou público em 1684 nos "Acta cruditorum". O cálculo integral havia sido descoberto por Newton uma dezena de anos antes; mas Leibniz fez a sua descoberta independentemente e formulou-a de modo a torná-la mais fecunda, possibilitando uma mais rápida e cômoda aplicação. Em 1676, regressou à Alemanha, onde aceitou o cargo de bibliotecário junto do duque de Hannover, João Federico de Braunchweig-Luneburg. 

Na viagem de Paris a Hannover, travou conhecimento com Espinosa em Haia e com ele teve longas conversações. Espinosa havia então já terminado a sua Ética e por isso, provavelmente, nada lhe trouxe o conhecimento de Leibniz. Mas Leibniz viu-se, neste encontro com ele, perante uma doutrina que era direta e simetricamente oposta à sua. E esta doutrina tornou-se, nos seus escritos filosóficos e especialmente na Teodiceia, o seu ponto de referência polêmico constante. Leibniz acabou por ver nela a expressão típica do ateísmo, do naturalismo e especialmente daquela necessidade cega que nega a liberdade humana e a providência divina.

Leibniz permaneceu durante a vida inteira ao serviço dos Duques de Hannover. Primeiro bibliotecário, depois historiógrafo da casa, foi incumbido pelos príncipes de Hannover dos mais variados encargos e foi o defensor teórico da sua política. Numerosos escritos políticos foram com esse intuito compostos por ele. A sua obra maior neste campo é a pesquisa histórica que empreendeu sobre as origens da casa de Braunschweig, que pretendia descender do próprio tronco dos Estcodi. A fim de demonstrar com documentos a exatidão desta
genealogia, Leibniz viajou durante três anos (1687-90) pela Alemanha e Itália para consultar arquivos e descobrir documentos; mas essa viagem proporcionou-lhe também o ensejo de abordar cientistas e homens vários e de nutrir a sua insaciável curiosidade científica. Mais conforme aos seus ideais foi o projeto, em que
trabalhou longamente, de reunir a Igreja católica à protestante. Também este projeto lhe foi sugerido pelo interesse dos Duques de Hannover que, sendo católicos, governavam no entanto um país protestante. Leibniz manteve numerosa correspondência com muitos homens da época, e especialmente com Bossuet, que defendia o ponto de vista católico. O projeto falhou, mas as tentativas feitas por Leibniz nesta ocasião revelavam o aspecto fundamental do seu pensamento, que é o de tender a uma ordem universal na qual encontrem lugar e se harmonizem espontaneamente os mais diversos pontos de vista.

Esta mesma tendência se revela nas suas tentativas de organizar na Europa uma espécie de  República das ciências em que participassem, através das academias nacionais, os homens de ciência de toda a Europa. Em 1700, fundou em Berlim, segundo o modelo da sociedade de Paris e de Londres, uma sociedade das ciências que se tornou depois a Academia Prussiana. Em seguida, tendo sabido, através de padres missionários e especialmente Grimaldi, do grande interesse que o imperador chinês mostrava pelas ciências, bem como das tentativas realizadas por cientistas chineses, pensou também estabelecer contatos culturais com a China. Quando Pedro o Grande empreendeu a renovação cultural da Rússia, Leibniz tornou-se seu conselheiro e fez projetos para as instituições que deviam levar a Rússia a participar daquela organização universal das ciências que Leibniz patrocinava.

A pesquisa científica e filosófica constituía a atividade privada de Leibniz. Ela está quase toda consignada na sua vastíssima correspondência e em breves ensaios publicados nas revistas do tempo. Em 1684 publicava nos "Acta cruditorum" o Nova methodus pro maximis et minimis em que tornava conhecida a sua descoberta do cálculo integral. Entretanto perseguia o seu ideal de uma ciência que contivesse os princípios e os fundamentos de todas as outras e determinasse os caracteres fundamentais comuns a todas as ciências e as regras da combinação delas. Os resultados que Leibniz alcançou restas tentativas encontram-se em vários manuscritos, tais como Mathesis universalis, Itútia mathematica, etc.

Quase todos os escritos de Leibniz têm carácter circunstancial. Em 1681 compôs o Discurso de metafísica, um breve ensaio, que todavia é um documento importante do seu pensamento. Seguiram-se-lhe o Novo sistema da natureza e da comunicação das substâncias (1695); os Princípios da natureza e da graça fundados na razão (1714); a Monadologia (1714), dedicada ao Príncipe Eugénio de Sabóia, que ele conhecera em Viena; os Novos ensaios sobre o intelecto humano (1705), que é uma crítica da obra de Locke. O único livro publicado (em 1710) por Leibniz foi o Ensaio de teodiceia que teve o seu ponto de partida nas críticas expostas por Bayle no artigo Rorarius do seu Dicionário histórico e crítico da filosofia. Leibniz nunca escreveu uma exposição completa e sistemática do seu pensamento.

Os seus últimos anos foram os mais infelizes. Acumulara uma quantidade de cargos que lhe valiam altas rendas mas o distraíam do trabalho de historiógrafo a que o príncipe gostaria de o ver dedicar-se. Quando morrem ambas suas protetoras (a Rainha Sofia Carlota e sua mãe Sofia), impediram-no de sair de Hannover e procuraram humilhá-lo de todos os modos. Quando morreu, a 14 de Novembro de 1716, era já uma figura esquecida. E no entanto conhece-se o local onde foi sepultado. Embora Leibniz tenha sido um filósofo de profissão, demonstrou nas múltiplas manifestações da sua atividade um espírito sistemático e universalista, que é de natureza genuinamente filosófica.

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Qualquer que fosse o problema particular considerado, logo ele o reconduzia a um princípio geral e reconhecido como o elemento ou a expressão de um sistema universal. A sua filosofia não é mais do que a tentativa de fundar e justificar a possibilidade de um tal sistema.

§ 437. LEIBNIZ: A ORDEM CONTINGENTE E A RAZÃO PROBLEMÁTICA


Todas as manifestações da personalidade de Leibniz, tanto as científicas e filosóficas como as políticas e religiosas, deixam-se reconduzir a um único pensamento central: o de uma ordem, não geometricamente determinada e por isso necessária, mas espontaneamente organizada e portanto livre. A ordem universal que Leibniz quer reconhecer e fazer valer em todos os campos não é necessária (como a que constituía o ideal de Espinosa), mas é susceptível de se organizar e desenvolver-se do melhor modo, segundo uma regra não necessária. E, todavia, é, como a de Espinosa, uma ordem matemática ou geométrica cujo conteúdo Leibniz exprimiu com toda a clareza no Discurso de metafísica (§ 6):

"Nada ocorre no mundo que seja absolutamente irregular nem se pode imaginar nada de semelhante. Suponhamos que alguém marque por acaso num mapa uma quantidade de pontos: digo que é possível encontrar uma linha geométrica cuja noção seja constante e uniforme segundo uma regra determinada e tal que passe por todos estes  (13) pontos precisamente na ordem em que a mão a traçou. E se alguém traçar um linha contínua, ora recta, ora circular, ora de outra natureza, é possível encontrar uma noção ou regra ou equação comum a todos os pontos desta linha, em virtude da qual as mutações mesmas da linha vêm a ser explicadas... Assim se pode dizer que fosse de que forma Deus tivesse criado o mundo, o mundo seria sempre regular e provido de uma ordem geral". 

Um conceito de ordem assim formulado exclui toda a rigidez e necessidade e inclui a possibilidade da liberdade, isto é, da escolha entre várias ordens possíveis. Mas escolha não significa arbítrio, segundo Leibniz. Entre as várias ordens possíveis, Deus escolheu a  mais perfeita, isto é, a que é ao mesmo tempo a mais simples e a mais rica de fenômenos. A escolha, portanto, é regulada pelo princípio do melhor, isto é, por uma regra moral e finalística. Uma ordem que inclua a possibilidade de uma escolha livre e que seja susceptível de ser determinada pela melhor escolha é a ordem que Leibniz procurou reconhecer e realizar em todos os campos da realidade. As suas tentativas de criar uma organização universal das ciências, como as de conciliar protestantismo e catolicismo, obedecem à exigência de tal ordem. A sua busca de uma ciência geral, de uma espécie de cálculo que servisse para descobrir a verdade em todos os ramos do saber, nasce da exigência de criar um órgão, um instrumento que permita descobrir e estabelecer aquela ordem em todos os campos. A própria realidade física deve revelar tal ordem. "São precisos, diz Leibniz, filósofos (14) naturais que não só introduzam a geometria no campo das ciências físicas (dado que a geometria carece de causas finais) mas tornem também manifesta nas ciências naturais uma organização por assim dizer civil" (Lett.alThonjasius, in Gerhadt, 1, p. 33). A própria realidade física é uma "grande república" organizada e nascida de um princípio de liberdade. A ordem, a razão do mundo, é liberdade, segundo Leibniz.

Deste ponto de vista é evidente que para Leibniz a categoria fundamental para a interpretação da realidade não é a necessidade, mas a possibilidade. Tudo o que existe é uma possibilidade que se realizou: e realizou-se não em virtude de uma regra necessária ou sem qualquer regra, mas em virtude de uma regra não necessária e livremente aceite. O que quer dizer que nem tudo o que é possível se realizou ou se realiza e
que o mundo dos possíveis é bastante mais vasto do que o mundo do real. Deus podia realizar uma infinidade de mundos possíveis; realizou o melhor através de uma escolha livre, isto é, segundo uma regra que ele próprio se impôs pela sua sabedoria. O que existe não é, portanto, como na doutrina de Espinosa, uma necessária manifestação da essência de Deus, que deriva ,geometricamente de tal essência, mas apenas o produto de uma escolha livre de Deus. Esta escolha, todavia, não é arbitrária mas racional: tem a sua razão no facto de que é a escolha melhor entre todas as possíveis. 

Toda a filosofia de Leibniz tende a justificar estes princípios fundamentais. Ela é portanto a primeira (15) grande tentativa para definir a razão como razão problemática e estabelecer como norma da razão, não a necessidade geométrica, mas a obrigação moral. Só no âmbito da razão problemática e da categoria da possibilidade se pode resolver o contraste que a crítica moderna pôs em relevo na obra de Leibniz. Leibniz, por um lado, contrapôs o princípio de razão suficiente como princípio da ordem real livre ao princípio, de identidade que regula a ordem necessária das verdades eternas; por outro lado, efetuou repetidas vezes a tentativa de reconduzir o próprio princípio de razão suficiente ao princípio de identidade. Esta última tentativa parece à primeira vista negar a aspiração fundamental de Leibniz, porquanto visa aparentemente a concluir que a ordem contingente e livre é uma manifestação provisória e incompleta da ordem necessária. Leibniz seria assim, mau grado seu, reconduzido a Espinosa. Mas, na realidade, quando Leibniz diz que nas proposições idênticas o predicado é imediatamente inerente ao sujeito ao passo que nas verdades contingentes esta inferência só pode ser alcançada e demonstrada com uma análise continuada até ao infinito (Couturat, p. 16), ele não pretende dizer outra coisa senão que a análise das proposições contingentes (que concernem à ordem real) pode ser prosseguida até ao infinito sem alcançar jamais a identidade. Como em geometria duas retas se dizem paralelas quando se encontram no infinito, porque podem ser indefinidamente prolongadas sem nunca se encontrarem, assim as verdades contingentes dizem-se idênticas no infinito, porque podem ser indefinidamente analisadas sem que se possa alguma vez demonstrá-las idênticas. O endereçamento teológico da sua doutrina conduzirá Leibniz a sustentar que em Deus tal possibilidade se atualizou e que por isso lhe é dado compreender a identidade analítica das verdades contingentes E, na verdade, a razão problemática não pode ser senão humana, e não é atribuível a Deus. Uma das suas menos despiciendas vantagens é, pelo contrário, a de estabelecer uma diferença radical entre o conhecimento humano e o conhecimento divino; esta diferença é firmemente fundamentada pela filosofia de Leibniz.

§ 438. LEIBNIZ: VERDADE DE RAZÃO E VERDADE DE FATO

A obra de Leibniz visa portanto a justificar a  possibilidade de uma ordem espontânea e de regras não necessitantes. O primeiro aspecto desta justificação é a demonstração de que ordem não significa necessidade. A necessidade, segundo Leibniz encontra-se no mundo da lógica, não no mundo da realidade. Uma ordem real nunca é necessária. Tal é o significado da distinção leibniziana entre verdade de razão e verdade de facto. As verdades de razão são necessárias, mas não respeitam à realidade. São idênticas, no sentido de que não fazem senão repetir a mesma coisa sem dizer nada de novo. Quando são afirmativas fundam-se no princípio de identidade (cada coisa é aquilo que é); quando são negativas fundam-se no princípio de contradição (uma proposição é verdadeira ou falsa). Este último, por seu turno, implica duas enunciações: a primeira é que uma proposição não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa; a segunda, que é impossível que uma proposição não seja nem verdadeira nem falsa (princípio do terceiro excluído). O próprio princípio de contradição rege, segundo Leibniz, as proposições disjuntas, as quais dizem que o objecto de uma ideia não é o objecto de outra ideia (,por exemplo, homem e animal não são a mesma coisa). Todas as verdades fundadas nestes princípios são necessárias e infalíveis mas nada dizem acerca da realidade existente de fato (Novos ensaios, IV, 2).

Estas verdades não podem derivar da experiência e são portanto inatas. Leibniz opõe-se à negação total de todas as ideias ou princípios inatos, como o faz Locke (§454). De certo que as ideias inatas não são ideias claras e distintas, isto é, plenamente conscientes: são antes ideias confusas e obscuras, pequenas percepções, possibilidades ou tendências. São semelhantes aos veios que num bloco de mármore delineiam, por exemplo, a figura de Hércules, de modo que bastam algumas marteladas para arrancar o mármore supérfluo e fazer surgir a estátua. A experiência realiza precisamente a função de martelo: torna atuais, isto é, plenamente claras e distintas, as ideias que na alma eram simples possibilidades ou tendências. Mas as ideias inatas não puderam derivar da experiência porque têm uma necessidade absoluta que os conhecimentos

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empíricos não possuem. As verdades de razão delineiam o mundo da pura possibilidade que é bastante mais vasto e extenso do que o da realidade. Por exemplo, muitos mundos seriam em geral possíveis desde que a sua noção não implique nenhuma contradição: mas só um mundo é real. E, evidentemente, nem todas as coisas possíveis se realizam: se assim fosse, não haveria senão a necessidade e não haveria escolha nem providência (Gerhardt. IV, p. 341).

As verdades de fato são, ao invés, contingentes e concernem à realidade efetiva. Elas delimitam, no vastíssimo domínio do possível, o campo bastante mais restrito da realidade em ato. Tais verdades não se fundam no princípio de contradição: o que quer dizer que o contrário delas é possível. Fundam-se, ao invés, no princípio de razão suficiente. Este princípio significa que "nada se verifica sem uma razão suficiente, isto é, sem que seja possível, àquele que conhece suficientemente as coisas, dar uma razão que baste para determinar que é assim e não de outro modo" (Gerhardt, VI, p. 602). Mas tal razão não é uma causa necessária: é um princípio de ordem ou de concatenação pelo qual as coisas que ocorrem se ligam umas às outras sem todavia formarem uma cadeia necessária. É um princípio de inteligibilidade que garante a liberdade ou contingência das coisas reais. É o princípio próprio daquela ordem que Leibniz se esforçou constantemente por encontrar em todos os aspectos do universo: uma ordem que torne possível a liberdade de escolha.

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Este princípio postula imediatamente uma causa livre do universo. De fato, convida-nos a formular esta pergunta: porque é que há algo em vez de nada? Desde o momento em que as coisas contingentes não encontram em si próprias a sua razão de ser, é necessário que tal razão esteja fora delas e se encontre numa substância que não seja, por sua vez, contingente mas necessária, isto é, que tenha em si mesma a razão da sua existência. E tal substância é Deus. Mas se além disso se pergunta por que é que Deus criou, entre todos os mundos possíveis, este que é assim e assim determinado, é necessário encontrar a razão suficiente da realidade do mundo na escolha que Deus fez dele e a razão de tal escolha será que elo é o melhor de todos os mundos possíveis e que Deus devia escolhê-lo. Mas este devia não significa aqui uma necessidade absoluta, mas o próprio ato da vontade de Deus que livremente escolheu em conformidade com a sua natureza perfeita. A razão suficiente, diz Leibniz, inclina, sem obrigar: ela explica o que acontece de modo infalível e certo e todavia sem necessidade, porque o contrário daquilo que acontece é sempre possível.

O princípio de razão suficiente implica a causa final; e sobre este ponto Leibniz afasta-se decisivamente de Descartes e de Espinosa para se voltar para a metafísica aristotélico-escolástica. Se Deus criou este mundo por ser o melhor, agiu em vista de  um fim e este fim é a verdadeira causa da sua escolha. E se a ordem do universo é uma ordem contingente e livre, deve fundar-se no fim que as (20) atividades contingentes e livres tendem a realizar. Mesmo o mecanismo da natureza deve por fim resolver-se no finalismo.

§ 439. LEIBNIZ: A SUBSTâNCIA INDIVIDUAL

O princípio e razão suficiente conduz Leibniz a formular o conceito central da sua metafísica, o de substância individual. Uma verdade de razão é aquela em que o sujeito e o predicado são em realidade idênticos, onde não se pode negar o predicado sem contradição. Não se pode dizer, por exemplo, que um triângulo não tenha três lados e não tenha os ângulos internos iguais a dois rectos: tais proposições são contraditórias, portanto impossíveis. Mas nas verdades de facto o predicado não é idêntico ao sujeito e pode mesmo ser negado sem contradição. O contrário de uma verdade de facto não é por isso contraditório, nem impossível. O sujeito dela deve portanto conter a razão suficiente do seu predicado. 

Ora um sujeito deste gênero é sempre um sujeito real, uma substância (desde o momento que se trate de verdades de fato). Ele é aquilo que Leibniz denomina uma substância individual. "A natureza de uma substância individual ou de um ser completo é tal que a sua noção é tão completa que basta para compreender e fazer deduzir dela todos os predicados do sujeito a que ela é atribuída" (Disc. de met., §8). A noção individual de Alexandre Magno, inclui, por exemplo, a razão suficiente de todos (21) os predicados que se lhe possam atribuir com verdade, por exemplo, que venceu  Dario e Poro, e até o conhecer a priori se ele morreu de morte natural ou envenenado. Naturalmente,o homem não pode ter uma noção tão completa da substância individual e por isso deduz da história ou da experiência os atributos que se lhe referem. Mas Deus, cujo conhecimento é perfeito, tem a capacidade de descobrir na noção de uma qualquer substância individual a razão suficiente de todos os seus predicados, e por isso pode descobrir na alma de Alexandre os resíduos de tudo o que lhe aconteceu, os sinais de tudo o que lhe acontecerá e também os vestígios de tudo o que acontece no universo. Isto não quer dizer que uma substância individual seja obrigada a agir de um certo modo, que por exemplo, Alexandre não possa deixar de vencer Dario e Poro; César, de passar o Rubicão, etc. Estas ações podiam não acontecer, porque o contrário delas não implica contradição. Mas era na realidade certíssimo que teriam acontecido, dada a natureza das substâncias individuais que as realizaram, porquanto tal natureza é a razão suficiente delas. E, por seu turno, a natureza dessas substâncias individuais tem a sua razão suficiente na ordem geral do universo querido por Deus. Tanto a escolha por parte de Deus daquela particular ordem do universo que requer substâncias como Alexandre ou César, como as ações ou as escolhas de Alexandre, são livres: mas é a escolha por parte de Deus de que as substâncias individuais tenham em si mesmas a sua razão suficiente que as explica (22) e as torna inteligíveis. Deus poderia ter escolhido um mundo diferente e César poderia não ter cometido aquela ação, mas a perfeição do universo teria sido afetada; e assim as coisas deviam passar-se tal como se passaram.

Toda a doutrina de Leibniz sobre este ponto se apoia sobre a diversidade e contraste entre a conexão necessária que tem lugar nas verdades de razão (como as geométricas), e a conexão contingente que é estabelecida pelo princípio de razão suficiente e implica uma necessidade que é só ex hypotesis (segundo a expressão de Leibniz), isto é, puramente problemática."Se bem que seguramente Deus faça sempre a melhor escolha, isso não impede que algo menos perfeito seja e se mantenha possível em si mesmo, embora não se verifique; porque não é a sua impossibilidade mas a sua imperfeição que o faz ser rejeitado. Ora nada de que seja possível o oposto, é necessário" (Ib., § 13).

É no entanto evidente que esta doutrina, se justifica plenamente a liberdade da escolha de Deus, não justifica de igual modo a liberdade do homem. No Ensaio de teodiceia e em numerosas cartas, Leibniz defendeu longamente o seu conceito da liberdade negando que ele ponha termo à necessidade. Decerto que ele exclui
aquela liberdade de indiferença que poria o homem em equilíbrio frente a possibilidades diversas e opostas. A ordem do universo exige que toda a substância tenha uma natureza determinada e que esta natureza determinada seja a razão suficiente de todas as ações. E, na realidade, para Leibniz, a substância individual (23) não é mais que a razão suficiente na sua realidade. Mas o que torna incerta ou duvidosa a liberdade humana é a certeza e a infalibilidade da previsão divina. Por que razão, pergunta-se Leibniz, tal homem cometerá necessariamente tal pecado? A resposta é fácil: é que, de contrário, não seria o homem que é. Assim Deus prevê infalivelmente a traição de Judas porque vê, desde toda a eternidade, que haverá um certo Judas cuja noção ou ideia contém aquela acção futura livre. Subsiste, portanto, o problema seguinte: porque é que Deus criou o universo de cuja ordem faz parte integrante aquela determinada substância, problema este que, segundo Leibniz, se deve resolver sustentando que o universo criado é, apesar disso, o melhor possível (Ib.,§30). Ele remete assim o problema para o terreno puramente teológico; e a um dos seus correspondentes, Jaquelot, que apertava com ele sobre este ponto, acabou por responder que as suas objeções eram dirigidas a todos os teólogos, "já que o decreto de Deus não é só para mim a causa eficaz e antecedente das ações, mas para todos eles". E acrescentava: "Tal como eu, todos responderam que a criação das substâncias e o concurso de Deus para a realidade da ação humana, que são os efeitos do seu decreto, não constituem uma determinação necessária" (Gerhadt, VI, p. 568).

Na realidade, sobre este ponto Leibniz fazia uma clara distinção entre o ponto de vista de Deus e o ponto de vista dos homens. Do ponto de vista de Deus, é certo e infalível que todas as escolhas e ações humanas procedem da substância individual, mas do ponto de vista do homem não existe tal certeza. As determinações de Deus nesta matéria são imprevisíveis e nenhuma alma sabe que é determinada a pecar senão quando peca efectivamente. As queixas post factum, diz Leibniz, são injustas, ao passo que teriam sido justas ante factum. "Talvez esteja fixado desde toda a eternidade que eu peque? Respondeis vós: talvez não. E sem pensar no que não podeis conhecer e que não pode dar-vos nenhuma luz, agis segundo o vosso dever, que conheceis" (Disc. de met., § 30). Por outros termos, o homem não possui a noção suficiente e completa da sua própria substância individual e portanto não pode descobrir nela a razão
suficiente das suas acções senão depois de as ter praticado; de sorte que ele não pode ter qualquer certeza antecipada sobre elas. Para Deus que vê plenamente a substância individual, as ações futuras desta são certas, mas certas apenas em virtude de um decreto seu, portanto não necessárias. A garantia da liberdade humana está, segundo Leibniz, na diversidade e incomunicabilidade do ponto de vista humano com o ponto de vista divino; e, conquanto Leibniz queira ser ao mesmo tempo filósofo e teólogo e parta da filosofia para chegar à teologia, a solução que ele apresenta não oferece teologicamente nada de novo relativamente por exemplo ao tomismo, mas é nova a sua interpretação do princípio de razão suficiente. Em virtude deste princípio, a escolha que o homem faz de uma ação qualquer não é arbitrária porque tem a sua razão na natureza mesma do homem, mas não é determinada, porque essa razão não é necessária. (25) A força da solução de Leibniz reside na energia com que contrapôs à ordem geométrica a ordem moral e ao determinismo da razão cartesiana e espinosana a problematicidade e a obrigatoriedade moral da razão suficiente.

§ 440. LEIBNIZ: FORÇA E NONISMO

A natureza não constitui para Leibniz uma excepção ao carácter contingente e livre da ordem universal. Esta convicção que dominou sempre o espírito de Leibniz levou-o a modificar pouco a pouco as doutrinas físicas que expusera no seu escrito juvenil intitulado Hypothesis physica nova. Neste escrito ainda admitia a diferença que Descartes estabelecera entre a extensão e o movimento e bem assim, tal como Gassendi, a constituição atómica da matéria quando chegou a formular uma das suas grandes máximas, como ele lhe chama, ou seja, a lei de continuidade, o princípio de que "a natureza nunca dá saltos". Segundo este
princípio, deve admitir-se que, para passar do pequeno ao grande ou vice-versa, é necessário passar através de infinitos graus intermédios e que, por consequência, o processo de divisão da matéria não pode deter-se em elementos indivisíveis, como seriam os átomos, mas tem de progredir até ao infinito. Em seguida, deixou de ver na extensão e no movimento, que eram os elementos da física cartesiana, os elementos originários do mundo físico e viu, ao invés, o elemento originário na força. Aconteceu isto quando se convenceu (26) de que o princípio cartesiano da imutabilidade da quantidade de movimento era falso e que era necessário substituí-lo pelo princípio da conservação da força ou ação motora. Aquilo que permanece constante nos corpos que se encontram num sistema fechado não é a quantidade de movimento mas a quantidade de ação motora que é igual ao produto da massa pelo quadrado da velocidade. A ação motora ou força viva representa a possibilidade de produzir um determinado efeito, por exemplo levantar um peso, e isso implica uma atividade ou produtividade, a qual se exclui do movimento que é a simples translação no espaço. Leibniz considera por isso a força como bastante mais real do que o movimento. O movimento não é real por si mesmo, como não são por si mesmos reais o espaço e o tempo, que devem antes ser considerados entes de razão. O movimento relativo aos fenômenos é uma simples relação, a força é a realidade deles (Specimen dynamicum, Escritos matemáticos, VII, p. 247). "Nos seres corpóreos, diz Leibniz, há algo para além da extensão, e mesmo anterior à extensão: a força da natureza, colocada em toda a parte pelo autor supremo, e que não consiste apenas numa simples faculdade, como diziam os escolásticos, mas também num conatus ou esforço, o qual terá o seu pleno efeito se não for impedido por um conatus contrário... O agir é o carácter essencial das substâncias, e a extensão não determina a substância mesma, senão que indica a continuação ou difusão de uma substância já dada, a qual tende e se opõe, ou seja, resiste" (Ib., VI, p. 325).

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Deste modo, o único elemento real do mundo natural é a força. A extensão e o movimento, que eram os princípios fundamentais da física cartesiana são por Leibniz, se não  negados, reduzidos a um princípio último que é ao mesmo tempo físico e metafísico: a força. Leibniz aceita o mecanismo cartesiano apenas como explicação provisória, que necessita ser integrada por uma explicação físico-metafísica mais alta. "Devo declarar inicialmente, diz ele(Gerhardt,IV,p.472),que,em meu parecer, tudo acontece mecanicamente na natureza e que para dar uma explicação exata e completa de qualquer fenômeno particular (como por exemplo do peso ou da elasticidade), bastam as noções de figura ou de movimento. Mas os princípios fundamentais da mecânica e as leis do movimento nascem, a meu ver, de algo de superior, que depende mais da metafísica do que da geometria e que não se pode atingir com a imaginação, se bem que o espírito o possa conceber perfeitamente". A força é precisamente aquele superior princípio metafísico que funda as próprias leis do mecanismo. Leibniz distingue a força passiva que constitui a massa de um corpo e é a resistência que o corpo opõe à penetração e ao movimento, e a força ativa, a verdadeira e genuína força, que é conatus ou tendência para a ação. Esta força activa compara-a Leibniz à enteléquia
aristotélica. Mas é evidente que a própria massa material, reduzida a força passiva, já não é nada de corpóreo. De modo que o último resultado das indagações físicas de Leibniz é a resolução do mundo físico num princípio que nada tem de (28) corpóreo. A interpretação leibniziana do mecanismo anula o próprio mecanismo. O elemento constitutivo do mecanismo, reconhecido na força, revela-se-lhe de natureza espiritual. O dualismo cartesiano de substância extensa e de substância pensante é negado e o universo é totalmente interpretado em termos de substância espiritual. Não há verdadeiramente extensão, corporeidade,
matéria no universo: tudo é espírito e vida, porque tudo é força. Assim, para Leibniz, o mundo da
física, embora reconhecido nas suas leis mecânicas, transforma-se num mundo espiritual, e, portanto, numa ordem contingente e livre.

§ 441. LEIBNIZ: A MôNADA

Leibniz devia portanto chegar a reconhecer que o único é o elemento último que entra na composição tanto do mundo do espírito como do mundo da extensão. No Discurso de metafísica de 1686 elaborara o conceito de substância individual referindo-se sobretudo à individualidade humana. Como se disse, a substância
individual é o próprio princípio lógico da razão suficiente elevado a entidade metafísica, ou seja, a elemento constitutivo de uma ordem contingente e livre. Nesse escrito (§ 12) Leibniz tinha, na verdade, atentado na exigência de que também os corpos físicos possuíam em si mesmos uma "forma substancial" que correspondia à substância individual humana, mas não tinha levado mais longe a sua analogia. Cerca de 1696, começa a introduzir a palavra e conceito de mônada. A aquisição (29) deste termo assinala o momento em que Leibniz teve a possibilidade de estender ao mundo físico o seu conceito de ordem contingente e unificar portanto o mundo físico com o mundo espiritual numa ordem universal livre. A  mônada  é um átomo universal, uma substância simples, sem partes, e por isso privada de extensão e de figura, e indivisível. Como tal, não se pode desagregar e é eterna; só Deus pode criá-la ou anulá-la. Todas as  mônada  são diferentes
entre si: não há na natureza dois seres perfeitamente iguais que não sejam caracterizados por uma diferença interior. Leibniz insiste neste princípio que ele denominada identidade dos indiscerníveis. Duas coisas não podem diferir só local ou temporalmente, mas é necessário que exista entre elas uma diferença interna. Dois cubos iguais só existem em matemática, não na realidade. Os seres reais diversificam-se pelas qualidades interiores; e mesmo que a diversidade deles consistisse apenas nas diferentes posições que ocupam no espaço, esta diversidade de posição transformar-se-ia imediatamente numa diferença de qualidades internas e portanto deixaria de haver uma simples diferença extrínseca (Couturat, p. 8-10).

Na sua individualidade irredutível, a mónada implica também a máxima universalidade. Toda a  mônada  constitui de facto um ponto de vista sobre o mundo e é por isso todo o mundo de um determinado ponto de vista. Este carácter de universalidade que no Discurso de metafísica (§ 14) foi já esclarecido pelo que respeita à substância individual humana, é agora extensivo a todas as  mônada . Nenhuma  mônada  todavia comunica diretamente com as outras: ela não tem janelas através das quais qualquer coisa possa sair ou entrar. As mutações naturais das  mônada  derivam apenas de um princípio interno. E uma vez que todas as mutações se dão gradualmente, na mónada qualquer coisa muda e qualquer coisa permanece. Há portanto nela uma pluralidade de estados ou de relações, embora não haja partes. Cada um destes estados, que representa uma multiplicidade como unidade, éuma percepção, termo que Leibniz distingue da apercepção ou consciência que é própria da alma racional. O princípio interno que opera a passagem de uma percepção a outra é a apetição (Mon., § 11-15).

Os graus de perfeição das  mônadas são determinados pelos graus das suas percepções. Há uma diferença fundamental entre Deus (que é também uma  mônada) e os mundos criados, pois estes representam o mundo apenas de um determinado ponto de vista, enquanto que Deus o representa de todos os possíveis pontos de vista e é neste sentido a  mônada  das mônadas. Mas entre Deus e as mónadas criadas, que o são pela sua
natureza finita, há uma diferença ulterior e é que as  mônadas criadas não concebem a totalidade do universo com o mesmo grau de clareza. As percepções das  mônadas são sempre de algum modo confusas, semelhantes às que se têm quando se cai  num estado de delíquio ou de sono. As  mônada puras e simples são as (31) que possuem apenas percepções confusas deste gênero, ao passo que as mônadas dotadas de memória são as que constituem as almas dos animais e as providas de razão constituem os espíritos humanos. Leibniz admite por isso, ao contrário de Descartes e dos cartesianistas, que os animais têm uma alma, se bem que não idêntica à dos homens e capaz apenas de estabelecer entre as percepções uma concatenação que imita a razão, mas que permanece distinta dela. (Ib.,§ 26). Mas também a matéria é constituída de  mônadas. Ela não é verdadeiramente nem substância corpórea nem substância espiritual mas antes um agregado de
substâncias espirituais, como um rebanho de ovelhas ou um monte de vermes. Precisamente por isso é infinitamente divisível. Mas os seus elementos últimos nada têm de corpóreo, são átomos de substância ou pontos metafísicos, como se poderiam chamar as  mônadas (Gerhardt, IV, p. 483). "Cada porção de matéria pode ser concebida como um jardim de plantas ou como um lago cheio de peixes. Mas cada ramo de planta, cada membro de animal e todas as gotas dos seus humores são ainda um jardim ou um lago do mesmo gênero" (Mon., § 67). Leibniz chama Matéria segunda à matéria entendida deste modo, como agregado de mônadas, enquanto que chama matéria prima à potência passiva (força de inércia ou de
resistência) que existe nas mónadas e que constitui a mónada juntamente com a potência ativa ou enteléquia (Gerhardt, 111, p. 260-61). Nas  mônadas superiores, (32) que são os espíritos ou almas humanas, a potência passiva ou matéria prima é o conjunto das percepções confusas, que constituem aquilo que há de propriamente finito, isto é de imperfeito, nas  mônadas espirituais criadas. Leibniz observa a propósito que, de um ponto de vista rigorosamente metafísico, considerando como ação o que sucede à substância espontaneamente e a partir do seu próprio fundo, cada substância não faz senão agir, dado que nela tudo provém de si mesma depois de se ter originado em Deus e ela na realidade não sofre a ação de nenhuma outra substância. Mas acrescenta que, considerando como ação um exercício de perfeição e como paixão o contrário, não há ação nas substâncias senão quando a percepção delas se desenvolve e se torna. mais
distinta; e não há paixão se não quando se torna mais confusa (Novos Ensaios, 11, 21). De sorte que nas mônadas espirituais as percepções confusas correspondem ao que é inércia ou impenetrabilidade das
mônadas corpóreas, isto é, aquilo que Leibniz chama matéria prima. As percepções confusas indicam, diz Leibniz, a nossa imperfeição, as nossas afecções, a nossa dependência para com o conjunto das coisas externas ou da matéria, enquanto a perfeição, a força, o domínio, a liberdade e a ação da alma consistem nos
nossos pensamentos distintos. Todavia, no fundo, os pensamentos confusos não são mais que uma multiplicidade de pensamentos em si mesmos iguais e distintos, mas tão pequenos que cada um separadamente não excita a nossa atenção nem é (33) distinguível (Gehrardt.,IV,p.574). Assim as percepções confusas são reconduzidas àquelas pequenas percepções de que Leibniz e servira para justificar a presença inata no espírito de verdade daquilo de que ele não é plenamente consciente.

O corpo dos homens e dos animais é, segundo Leibniz, matéria segunda, isto é, agregado de mônadas. Este agregado é mantido e dominado por uma mônada superior e que é a verdadeira alma (mônada dominante.) Mas, não obstante não haver entre o corpo, que é agregado de mônadas, e a alma, que é a mônada dominante, diversidade substancial ou metafísica porque entre umas e as outras existe apenas uma diferença nos graus de distinção das respectivas percepções, Leibniz admite todavia que ocorpo eaalma seguem leis independentes. Os corpos, diz Leibniz, actuam entre si segundo leis mecânicas, ao passo que as almas atuam segundo as leis da finalidade. E não há modo de conceber a ação da alma sobre o corpo ou do corpo sobre a alma, uma vez que não se pode explicar de nenhum modo como as variações corpóreas, isto é, as leis mecânicas, fazem nascer uma percepção ou como da percepção pode derivar uma mudança de velocidade ou de direcção dos corpos. Cumpre concluir, portanto, que a alma e o corpo seguem cada um as suas leis separadamente, sem que as leis corporais sejam perturbadas pelas acções da alma ou que os corpos encontrem janelas para introduzir na alma o influxo deles (Gerhardt, HI, p. 340-41. Surge então o problema de entender o acordo da alma com o corpo.

§ 442. LEIBNIZ: A HARMONIA PREESTABELECIDA

Neste problema se resolve o problema mais geral da comunicação recíproca entre as mônadas que constituem o universo. Todas as mônadas, de facto, são perfeitamente fechadas em si mesmas, sem janelas, isto é, sem possibilidade de comunicarem diretamente umas com as outras. Ao mesmo tempo cada uma está
ligada à outra, pois cada uma é um aspecto do mundo, isto é, uma representação mais ou menos clara de todas as outras mônadas. As mónadas são como diversas vistas de uma mesma cidade e como tais se conjugam para constituir a vista total e complexa do universo, que é plenamente expressa e reassumida na mônada suprema que é Deus. Mas, embora cada mônada represente o universo inteiro, ainda representa mais distintamente o corpo que se lhe refere particularmente e de que constitui a enteléquia, e visto que tal corpo, constituído por mônadas, exprime todo o universo, assim à alma, ao representar-se-lhe o corpo que lhe pertence, se lhe representa ao mesmo tempo o universo inteiro (Mon., § 62). Deste modo, * problema da comunicação entre os mundos vem * configurar-se na forma particular que ela tinha assumido na filosofia cartesiana, como problema da relação entre a alma eocorpo. Leibniz distingue três possíveis soluções para tal problema. Se se compara a alma e o corpo a dois relógios, o primeiro modo de explicar o acordo entre eles é o de admitir a influência recíproca de um sobre o outro. É esta a doutrina da filosofia vulgar que se choca contra a incomunicabilidade das mônadas e a impossibilidade de admitir um influxo entre duas substâncias cujas ações obedeçam a leis heterogéneas. A segunda maneira de explicar o acordo é a que Leibniz chama assistência, e que é própria do sistema das causas ocasionais: dois relógios mesmo maus, podem manter-se em harmonia um com o outro desde que um hábil operário cuide deles a cada instante. Segundo Leibniz, este sistema incorre no erro de introduzir um Deux ex machina num facto natural e ordinário, no qual Deus não deve intervir senão do mesmo modo em que concorre para todos os outros factos da natureza. Resta então só a terceira maneira, que é supor que os dois relógios tenham sido construídos com tanta arte e perfeição que trabalhem de acordo para todo o sempre. Esta é a doutrina da harmonia preestabelecida sustentada por Leibniz. Segundo ela, a alma e o corpo seguem cada um as suas próprias leis mas o acordo é estabelecido
previamente por Deus no acto de estabelecer tais leis. O corpo seguindo as leis mecânicas e a alma seguindo a sua própria espontaneidade interna estão a cada instante em harmonia,e esta harmonia foi preestabelecida por Deus no ato da criação (Gerhardt, IV, p. 500-501). A doutrina da harmonia preestabelecida é o desfecho e a conclusão derradeira da filosofia de Leibniz, se bem que não seja (como muitas vezes se sustentou) o seu pensamento central e aninia dor (36). Para tal doutrina o corpo orgânico (dos animais ou do homem) é uma espécie de máquina divina ou de autômato espiritual cujas manifestações não sofrem
qualquer influência dos actos espirituais. É só pela harmonia preestabelecida, diz Leibniz, que na alma do cão entra e dor quando o seu corpo é atingido (lb.,IV, p. 531). Por outro lado, a vida da alma desenvolve-se com perfeita espontaneidade desde o seu interior. Ela é uma espécie de sonho bem arquitectado no qual as percepções se sucedem em virtude de uma lei que está inscrita na própria natureza da mônada e que Deus estabeleceu no acto da sua criação. Leibniz chega mesmo a dizer que até a alma é uma espécie de autômato imaterial (Ib., IV, p. 548). Ele tem, portanto, de defender um inatismo total: a mônada é ,inteiramente inata em si mesma, já que nada pode receber do exterior. Não só as verdades de razão e os princípios lógicos em que ela assenta são inatos, mas também as verdades de facto e mesmo as sensações nascem somente do fundo das mônadas: do seu fundo obscuro, constituído pelas pequenas percepções que se tornam gradualmente, pelo menos em parte, distintas (1b., V. p. 16). A mônada sai assim das mãos de Deus completa na sua natureza e determinada, posto que não necessariamente, em todos os seus pensamentos e em todas as suas ações. Leibniz chama às mónadas fulgurações contínuas da divindade, limitadas, a cada momento, pela receptividade da criatura, à qual é essencial o ser limitada.

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§ 443. LEIBNIZ: DEUS E OS PROBLEMAS DA TEODICEIA

A filosofia de Leibniz, rematando no sistema da harmonia preestabelecida, torna-se neste ponto especulação teológica. E em tal especulação, Leibniz acolhe os temas tradicionais da teologia, a começar pelas provas da existência de Deus, que ele elabora a seu modo, e concluindo com um estudo dos problemas inerentes a toda a teologia: o problema da liberdade e da pro-determinação, e o problema do mal. Em primeiro lugar, Leibniz elabora uma das provas tradicionais da experiência de Deus, prova que ele define a posteriori. Ela é a terceira entre as enumeradas por Tomás de Aquino na Summa theologica e precisamente deduzida da razão entre o possível e o necessário. Leibniz formula esta prova recorrendo ao princípio de razão suficiente. Deus, diz ele, é a primeira razão das coisas, visto que as coisas limitadas, como são todas as que vemos e experimentamos, são contingentes e não têm em si nada que torne necessária a sua existência. Cumpre
portanto procurar a razão da existência do mundo; e há que procurá-la na substância que traz em si a razão da sua existência e que por isso é necessária e eterna. Se existe só um mundo entre inúmeros mundos todos igualmente possíveis e todos com uma pretensão à existência, a razão suficiente de tal não pode ser senão
um intelecto que tem as ideias de todos os mundos possíveis e uma vontade que escolhe um deles; o intelecto (38) e a vontade de Deus. A potência da substância divina torna portanto eficaz a vontade (Teod., 1, 7*, Mon. § 37-39). Deus é ao mesmo tempo a razão suficiente do mundo que existe de facto e a razão suficiente de todos os mundos possíveis. Mesmo as puras possibilidades devem de algum modo assentar em algo de real ou de actual: assentam na existência do ser necessário, cuja essência implica a existência ou a que basta ser possível para ser atual. Deus é deste modo não só a fonte de toda a realidade, mas também a das essências e das verdades eternas (Mon., § 43-44). Estas últimas todavia não dependem da vontade divina, como Descartes sustentara, mas apenas do intelecto divino de que são o objeto interno. As verdades de fato, que concernem às existências reais, dependem pelo contrário da vontade divina (lb., § 46). Em segundo lugar, Leibniz elaborou o argumento ontológico de Sto. Anselmo, utilizando o seu conceito de possível. À forma cartesiana do argumento ontológico, Leibniz opõe que é possível deduzir a existência (como perfeição) do conceito de um ser que possua todas as perfeições, só depois que se demonstrou que o conceito deste ser é possível (isto é, privado de contradições internas) (Gerhardt, IV, p. 274 segs.). De sorte que, na realidade, aquele argumento não pode inferir da perfeição de Deus a sua existência mas deve inferir da possibilidade de Deus asua existência.Eesta éaforma verdadeira do argumento, segundo Leibniz. "Só Deus, ou o ser necessário, tem este privilégio: que, se é possível, é necessário que exista". 

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E, visto que nada pode impedir a possibilidade daquilo que não implique algum limite, alguma negação, portanto alguma contradição, isso só basta para reconhecer a priori a existência de Deus" (Mon., § 45). Em Deus portanto possibilidade e realidade coincidem: tal é, segundo Leibniz, o significado da necessidade da sua natureza. Desde que seja reconhecido possível, deve ser reconhecido existente; e não há dúvida de que pode e deve ser reconhecido possível, dada a total ausência de limitações intrínsecas que o caracterizam.

Os problemas da teodiceia são considerados por Leibniz à luz daquela regra do melhor que ele considera como a norma fundamental da acção divina e por isso da ordem do mundo. Leibniz distingue em Deus uma vontade antecedente que quer o bem em si e uma vontade consequente que quer o melhor. Como efeito desta vontade consequente, Deus quer aquilo que em si não é bem nem mal, e até o mal físico como meio para alcançar o melhor, e permite o pecado com o mesmo fim. A vontade permissiva de Deus com respeito ao pecado é por conseguinte uma consequência da sua vontade consequente, quer dizer da sua escolha do melhor. Por outros termos, Deus escolheu o melhor entre todos os mundos possíveis, o que contém a mínima parte de mal. A sua vontade é a causa positiva das perfeições que este mundo contém, mas não quer positivamente o pecado. Desde o momento em que o pecado faz parte da ordem do mundo, ele permite-o; mas esta vontade (40) permissiva não o torna responsável por ele (Teod.,1, 25).

Viu-se já como Leibniz não sustenta que a predeterminação divina, e a presciência que é condição dela, anulem a liberdade humana. Os motivos tradicionais que por tal razão retoma, assumem ressonâncias novas só em virtude do princípio fundamental que inspira toda a sua especulação: o de que a ordem do universo é contingente e livre. Criada por um ato livre da divindade, a ordem do universo é conservada e desenvolvida
pela liberdade das mônadas espirituais nas quais melhor se, reflete e reconhece a substância divina. O princípio de razão suficiente, sobre o qual assenta a ordem do mundo, conduz Leibniz a ver esta ordem orientada segundo o melhor, que é o fim da vontade divina e da humana. A pro-determinação divina, agindo
por meio da vontade que tende para o melhor, não é por isso necessitante mas propendente; e a escolha do melhor por parte das criaturas permanece livre e responsável.


São sem dúvida reais as dificuldades que Bayle, Jaquelot e outros contemporâneos, e depois deles inúmeros críticos, encontraram na teologia de Leibniz. Mas a teologia, se é ponto de chegada da especulação de Leibniz, não é toda a sua filosofia. E, indubitavelmente, o princípio inspirador da sua filosofia, como de toda a sua obra política, histórica, jurídica e de toda a sua vida, é a liberdade da ordem universal. Leibniz procurou realizar na sua filosofia a justificação da atitude que assumiu constantemente frente aos problemas de todo o

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género que teve de defrontar no curso da sua vida: aatitude de quem quer promover e fundar no mundo humano, à semelhança do que reconhece em todo o universo, um conjunto de atividades que livremente se encontrem, se limitem e acabem por encontrar uma pacífica coordenação.

Texto 12 - Spinoza (parte do texto de Giovanne Reale)

REALE, Giovanni; ANTISERI. História da filosofia, vol. 2 – 8ª Edição: Do Humanismo a Kant, São Paulo, Paulus, 2007 - Páginas 404 à 439




















Vídeos

* René Descartes - As quatro regras: Trecho de filme clássico italiano, em que Descartes explica as quatro regras para o que chama de "guia da inteligência humana".
* Espinosa - Filme documentário completo: Link de documentário em estilo de filme do filósofo racionalista holandês.
* Blaise Pascal - Filme completo com legendas: Filme clássico contando a história de Blaise Pascal.

Texto 11 - Descartes - Por Giovanni Reale

REALE, Giovanni; ANTISERI. História da filosofia, vol. 2 – 8ª Edição: Do Humanismo a Kant, São Paulo, Paulus, 2007 - Páginas 351 à 390

 





















Texto 10 - Francis Bacon - Por Nicola Abbagnano

§ 392. BACON: VIDA E ESCRITOS

Se Galileu elucidou o método de investigação científica, Bacon entreviu pela primeira vez o poder que a ciência oferece ao homem em relação ao mundo. Bacon concebeu a ciência como essencialmente destinada a realizar o domínio do homem sobre a natureza. O regnum hominis viu a fecundidade das suas aplicações práticas, de modo que podemos considerá-lo o filósofo e o profeta da técnica.

Francis Bacon nasceu em Londres a 22 de Janeiro de 1561, sendo filho de Sir Nicholas Bacon, ministro da justiça da rainha Elisabeth. Estudou em Cambridge e em seguida passou alguns anos em Paris, no séquito do embaixador de Inglaterra, onde teve ensejo de completar e enriquecer a sua cultura. De regresso à pátria, quis iniciar a carreira política. Enquanto viveu a rainha Elisabeth, não pôde obter nenhum cargo importante, não obstante o apoio do conde de Essex. Mas com a subida ao trono de Jaime I, Stuart (1603), pôde gozar do apoio do favorito do rei,   Lord Buckingham, para obter cargos e honras. Foi  nomeado advogado geral (1607), depois procurador geral (1613), e, finalmente, ministro das justiças (1617) e Lord Chanceler (1618). Como tal, presidia às principais cortes de justiça e tornava executórios os decretos do rei. Foi, além disso, nomeado barão de Verulam e visconde de Slo Albano. Mas quando Jaime 1 teve de convocar em 1621 o Parlamento, inculpou Bacon de

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corrupção, acusando-o de ter recebido ofertas de dinheiro no exercício das suas funções. Bacon reconheceu-se culpado. Foi condenado então a pagar quarenta mil esterlinos de multa, a permanecer prisioneiro na Torre de Londres até que o rei o quisesse, e foi exonerado de todos os cargos do estado (3 de Maio de 1621). O rei perdoou a Bacon a multa e a prisão, mas a vida política do filósofo estava acabada. Bacon retirou-se para Gorhwnbury e aí passou os últimos anos da sua vida, entregando-,se ao estudo. Faleceu a 9 de Abril de 1626.

A carreira política de Bacon foi a de um cortesão hábil e sem escrúpulos. Não hesitou em sustentar a acusação como advogado do rei contra o conde Essex que o havia ajudado nos primeiro passos difíceis da sua carreira, e que caíra em seguida em desgraça. O processo a que foi submetido lança uma luz pouco simpática sobre a sua actividade de ministro, uma vez que ele não pôde negar as acusações de corrupção que lhe dirigiram. Mas este homem ambicioso e amante do dinheiro e do fausto teve uma ideia altíssima      do valor da ciência ao serviço do homem. Todas as suas obras tendem a ilustrar o projeto de uma     pesquisa científica que, aplicando o método experimental em todos os campos da realidade, faça da realidade mesma o domínio do homem. Bacon quis tornar a ciência ativa e operante colocando-a ao serviço do homem e considerando como seu escopo a constituição de uma técnica que devia dar ao homem o domínio de todo o mundo natural. Quando, na

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Nova Atlântida, pretende dar a imagem de uma cidade ideal, recorrendo ao pretexto, já empregado por Tomás More na Utopia, da descrição de uma ilha desconhecida, não se deteve a sonhar com formas de vida sociais ou políticas perfeitas, mas imaginou um paraíso da técnica onde fossem postos em prática as invenções e os achados do mundo inteiro. E, de fato, neste escrito (que não chegou a ser concluído) a ilha da Nova Atlântida é descrita como um enorme laboratório experimental, na qual os habitantes procuram conhecer todas as forças ocultas da natureza "Para estender os confins do império humano a todas as coisas possíveis". Os nomes tutelares da ilha são os grandes inventores de todos os países; e as relíquias sagradas são os exemplares de todas as grandes e mais raras invenções.

Bacon, todavia, não dirigiu a sua atenção apenas para o mundo da natureza. A sua primeira obra, os Ensaios, publicados pela primeira vez em 1597 e depois traduzidos em latim com o título Sermones fídeles sive interiora rerum, são sutis e eruditas análises da vida moral e política nas quais a sapiência dos Antigos é amplamente utilizada. Mas a sua ,principal atividade foi a que dedicou ao projeto de uma enciclopédia das ciências que devia renovar completamente a investigação científica colocando-a numa base experimental. O plano grandioso desta enciclopédia deu-no-lo ele no escrito De augmentis scientiarbim, publicado, em 1623, o qual compreende: as ciências que se fundam na memória, isto é, a história, que se dlivide em natural e civil; aquelas que se fundam na fantasia, isto é, a poesia, que se

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divide em narrativa, dramática e parabólica (a que serve para ilustrar uma verdade); e as ciências que se fundam na razão, entro as quais, por um lado, a filosofia prima ou ciência universal, por outro as ciências particulares que concernem a Deus ou à natureza ou ao homem. "A filosofia prima" é considerada por Bacon como "a ciência universal e mãe das outras ciências", consistindo a sua tarefa em recolher "os axiomas que não são próprios das ciências particulares mas comuns a outras ciências" (De augm. séient., 111, 1). Este conceito devia permanecer típico da interpretação da tarefa da filosofia segundo os métodos positivistas, isto é, segundo todo o método que faça coincidir com a ciência a totalidade do saber.

A Instauratio magna deveria dar as directivas de todas estas ciências e devia, consequentemente. compreender seis partes:   
1.a). Divisão das ciências;
2.a). Novo órgão ou indícios para a interpretação da natureza; 
3.a). Fenómenos do universo ou história natural experimental para construir a filosofia; 
4.a) Escala do intelecto; 
5.a) Pródromos ou antecipações da filosofia segunda; 
6.a) - Filosofia segunda ou ciência activa. 
Deste vasto projeto Bacon apenas realizou adequadamente a segunda parte que é precisamente o Novum organum, publicado em 1620. As outras obras podem-se considerar como esquissos ou esboços das outras partes: O progresso do saber (em inglês, 1605), De sapientia veterum (1609); História naturalis (1622)-, De dignitate et augmentis scientiarum (1623); este último escrito representa a primeira parte da Instauratio nwgna.

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Escritos menores, incompletos ou esboçados foram publicados após a sua morte: De interpretatione natura e proemium (1603), Valerius Terminus (1603); Cogitationes de rerum natura (1605); Cogitata e visa (1607), Descriptio globi intelectualis (1612); Thema coeli (1612). Nos últimos anos compôs e publicou também uma História de Henrique VII.

§ 393. BACON: O CONCEITO DA CIÊNCIA E DA TEORIA DOS ÍDOLOS

Do projeto grandioso de uma Instauratio magna que devia culminar na Sciencia activa, isto é, numa técnica que aplicasse as descobertas teóricas, muito pouco realizou Bacon. O que ele fez reduz-se substancialmente ao Novum Organum, isto é, a uma lógica do procedimento técnico-científico que é polemicamente contraposta à lógica aristotélica, que ele achava servir apenas para alcançar vitórias nas disputas verbais. Com a velha lógica vence-se o adversário, com a nova conquista-se a natureza. Esta conquista da natureza é a tarefa fundamental da ciência. "O fim desta nossa ciência, diz Bacon (Nov. org., Distributio operis), é o de encontrar não argumentos mas artes, não princípios aproximativos, mas princípios verdadeiros, não razões prováveis mas projetos e indicações de obras". A ciência é posta assim inteiramente ao serviço do homem; e o homem, ministro e intérprete da natureza, opera e compreende de acordo com o que observou na ordem

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da natureza, quer mediante a experiência, quer mediante a reflexão: para além disto, não sabe nem pode coisa alguma. A ciência e o poder humano coincidem: a ignorância da causa toma impossível conseguir o efeito. Não se vence a natureza senão obedecendo-lhe, e o que na observação está como causa, na obra vale como regra (Ib., 1, 3). A inteligência humana tem necessidade de instrumentos eficazes para penetrar na natureza e dominá-la: à semelhança das mãos, não pode efetuar nenhum trabalho sem um instrumento adequado. Os instrumentos da mente são os seus experimentos: experimentos pensados e adaptados tecnicamente ao fim que se pretende alcançar. Os sentidos por si só não bastam para nos fornecer uni guia seguro: só os experimentos são os guardiões e os intérpretes das respostas daqueles. O experimento representa, segundo a imagem de Bacon, o conúbio da mente e do universo", conúbio do qual se espera "uma prole numerosa de invenções e de instrumentos aptos a dominarem e a mitigarem, pelo menos em parte, as necessidades e as misérias dos homens" (lb., Distr. op.).

Mas a união entre a mente e o universo não se pode celebrar enquanto a mente permaneça presa a hábitos e preconceitos que a impedem de interpretar a natureza. Bacon opõe a interpretação da natureza à antecipação da natureza. A antecipação da natureza prescinde do experimento e passa imediatamente das coisas particulares sensíveis aos axiomas generalíssimos, e, à base destes princípios e da sua imóvel verdade, tudo julga e encontra os chamados

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axionas médios, isto é, as verdades intermédias entro os princípios últimos e as coisas. Esta é a via da antecipação, de que se serve a lógica tradicional, via que toca apenas de raspão a experiência porque se satisfaz com as verdades gerais. A interpretação da natureza, ao invés, adentra-se com método e ordem na experiência e ascende, sem saltos e por graus de sentido, das coisas particulares aos aXiomas, chegando só por último aos mais gerais. A vila de antecipação é estéril, uma vez que os axiomas por ela estabelecidos não servem para inventar seja o que for. A via da interpretação é fecunda, porque dos axiomas deduzidos com método e ordem das coisas particulares facilmente brotam novas cognições particulares que tornam activa e produtiva a ciência (lb., 1, 24). A tarefa preliminar de Bacon, na sua tentativa de estabelecer o novo órgão da ciência, é, por conseguinte, o de eliminar as antecipações, e a tal é dedicado substancialmente o primeiro livro do Novum organum. Este livro destina-se a purificar o intelecto de todos os ídolos, para o que estabelece uma tríplice crítica: (redargutio): crítica das filosofias, crítica das demonstrações e crítica da razão humana natural, respectivamente destinadas a eliminar os preconceitos que se radicaram na mente humana através das doutrinas filosóficas ou através das demonstrações extraídas de princípios errados, ou pela própria natureza do intelecto humano. Ele quer "conduzir os homens Perante as coisas Particulares e as suas séries e ordena, afastando-os por algum tempo das noções

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antecipadoras para que comecem a familiarizar-se com as coisas mesmas" (Ib., 1, 36).

As antecipações que se radicam na própria natureza humana são as que Bacon denomina idola tribus e idola specus: os idola tribus são comuns a todos os homens, os idola specus são próprios de cada indivíduo. O intelecto humano é conduzido a supor que existe na natureza uma harmonia muito maior do que a que existe de facto, a dar mais importância a certos conceitos do que a outros, a atribuir maior relevância ao que, impressiona a fantasia do que ao que é oculto e longínquo. Além de ser impaciente, quer progredir sempre para além do que lhe é dado, e pretende que a natureza se adapte às suas exigências. rejeitando assim tudo o
que nela não lhe convém. Todas estas disposições naturais são fontes de idola tribus,- e a principal fonte de tais idola é a insuficiência dos sentidos aos quais escapam todas as forças ocultas da natureza. Os idola specus, ao invés, dependem da educação, dos hábitos e das circunstâncias fortuitas em que cada qual se encontra. Aristóteles, dei de ter inventado a lógica, sujeitou a ela completamente a sua física, tornando-a estéril: isto foi devido por certo a uma particular disposição do seu intelecto. Gilbert, o descobridor do magnetismo, arquitectou sobre a sua descoberta toda uma filosofia. E assim, em geral, todo o homem tem as suas propensões para os antigos ou para os modernos, para o velho ou para o novo, paira aquilo que é simples ou para aquilo que é complexo, para as semelhanças ou para as diferenças; e todas estas propensões são fontes

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de idola specus, como se cada homem tivesse no seu interior um antro ou uma caverna que refractasse ou desviasse a luz da natureza.

Além destas duas espécies naturais de ídolos, existem os adventícios ou provenientes do exterior: idola fori e idola theatri. Os ídolos da praça derivam da linguagem. Os homens crêem impor a sua razão às palavras: também sucede que as palavras retorçam e repercutam a sua força sobre o intelecto. Nascem assim as disputas verbais', as mais longas e insolúveis, que se podem resolver apenas com um recurso à realidade. Os ídolos que derivam das palavras são de duas espécies: ou são nomes de coisas que não existem ou são nomes de coisas que existem, mas que são confusos e mal determinados. À primeira espécie pertencem os nomes de fortuna, primeiro móbil, órbitas dos planetas, elemento do fogo e quejandos, os quais têm a sua origem em falsas teorias. À segunda espécie pertencem, por exemplo, a palavra húmido, que indica coisas diversissímas, as palavras que indicam acções como gerar, corromper, etc., e as que indicam qualidades, como grave, ligeiro, poroso, denso, etc. Tais são os idóla fori, 'assim chamados porque gerados por aquelas convenções. humanas que as relações entre os homens tornaram necessárias. o último género de preconceitos é o idola theatri que derivam das doutrinas filosóficas ou de demonstrações erradas. Bacon denomina-os- assim porque compara os sistemas filosóficos a fábulas, que são como mundos fictícios ou cenas de teatro. As doutrinas filosóficas, e por conseguinte, os idola theatri, existem em pro-

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fusão e Bacon não se propõe confutá-los um por um. Ele divíde as falsas filosofias em três espécies: a sofística, a empírica e a supersticiosa. Da filosofia sofística o maior exemplo é Aristóteles, que procurou adaptar o mundo natural a categorias lógicas predispostas e se preocupou mais em dar a definição verbal das coisas do que em procurar a verdade delas. Ao género empírico, pertence a filosofia dos alquimistas e também a de Gilbert, que tem a pretensão de explicar todas as coisas por meio de poucos e restritos experimentos. Finalmente, a filosofia supersticiosa é a que se mistura com a teologia, como acontece em Pitágoras e Platão, e especialmente neste último, que Bacon considera mais subtil e perigoso e ao qual não hesita em atribuir num seu escrito (Temporis partus musculus, Opere, M,530-31) as qualificações de "urbano trapaceiro, poeta enfatuado, teólogo mentecapto". Finalmente, idola theatri derivam também de demonstrações erróneas. E as demonstrações são erróneas porque se fiam demasiado nos sentidos ou abstraem indevidamente das suas impressões ou têm a pretensão de passar de golpe dos pormenores sensíveis aos princípios gerais.

Entre as causas que impedem os homens de se libertarem dos ídolos e progredirem no conhecimento efectivo da natureza, Bacon coloca em primeiro lugar a reverência pela sabedoria antiga. A este propósito, observa ele que, se por antiguidade se entende a velhice do mundo, o termo deveria aplicar-se ao nosso tempo, e não àquela juventude do mundo de que os Antigos foram quase um exemplo.

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Essa época é antiga e fundamental para nós, mas relativamente ao mundo é nova e menor; e como é lícito esperar de um homem antigo um maior conhecimento do mundo do que de um jovem, assim deveremos esperar da nossa época muito mais do que dos tempos antigos, porque ela se foi pouco a pouco enriquecendo no curso do tempo através de infinitos experimentos e observações. A verdade, diz Bacon, é filha do tempo, não da autoridade. Como Bruno, ele pensa que ela se revela gradualmente ao homem através dos esforços que se somam e se integram na históriaPara sair das velhas vias da contemplação improdutiva e empreender a via nova da investigação técnico-científica, é necessário colocarmo-nos no terreno do experimento. A simples experiência não basta, porque procede ao acaso e sem directivas. É semelhante, diz Bacon, (Nov. Org., 1, 82) a uma vassoura velha, ao avançar às cegas como quem andasse de noite à procura do caminho, quando seria mais fácil e prudente esperar pelo dia ou acender uma luz, e assim enfiar pelo caminho. A ordem verdadeira da experiência consiste em acender a luz, ,iluminando desse modo a via, quer dizer, começar pela experiência ordenada e madura, e não por experiências irregulares e desordenadas. Só assim o experimento pode levar a vida humana a enriquecer-se de novas invenções, a assentar as bases do poder e da grandeza humana e a alargar cada vez mais os seus horizontes. Aliás, o objectivo prático e técnico que Bacon atribui à ciência não a encerra num estreito utilitarismo. Aos experimentos que dão

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fruto (experimenta fructífera) acha que são preferíveis os que dão luz (experimenta lucifera), que nunca falham e nunca são estéreis, porquanto revelam a causa natural dos factos (Ib., 1, 99).

§ 394. BACON: A INDUÇÃO E A TEORIA DAS FORMAS

A pesquisa científica não se funda só nos sentidos nem apenas no intelecto. Se o intelecto por si não produz senão noções arbitrárias e infecundas e se os sentidos, por outro lado, só dão indicações ordinárias e inconcludentes, a ciência não poderá constituir-se como conhecimento verdadeiro e fecundo de resultados senão enquanto impuser à experiência sensível a disciplina do intelecto e ao intelecto a disciplina da experiência sensível. O procedimento que realiza aquela exigência é, segundo Bacon, o da indução. Bacon preocupa-se em distinguir a sua indução da aristotélica. A indução aristotélica, isto é, a indução puramente lógica que não incide sobre a realidade, é uma indução por simples enumeração dos casos particulares: Bacon considera-a uma experiência pueril que produz conclusões precárias e é continuamente exposta ao perigo dos exemplos contrários que possam desmenti-la. Ao invés, a indução que é a invenção e a demonstração das ciências e das artes funda-se na escolha e na eliminação dos casos particulares: escolha e eliminação repetidas sucessivamente sob o controle do experimento, até se atingir a deter-

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minação da verdadeira natureza do fenómeno. Esta indução procede por isso sem saltos e por graus; quer dizer, remonta gradualmente dos factos particulares aos princípios mais gerais e só por último chega aos axiomas generalíssimos. A escolha e a eliminação em que se funda tal indução supõem em primeiro lugar a recolha e a descrição dos factos particulares: recolha e descrição que Bacon denomina storia naturale sperimentale, porque não deve ser imaginada ou cogitada, mas recolhida da experiência, ou seja, ditada pela própria natureza. Mas a história natural e experimental é tão variada e vasta que confundiria o intelecto em vez de ajudá-lo se não fosse composta e sistematizada numa ordem idónea. Para tal fim servem as tábuas que são recolhas de casos ou exemplos (instantiae) segundo um método ou uma ordem que torna tais recolhas apropriadas às exigências do intelecto (Nov. org., 11, 10). As tábuas de presença serão então a recolha das instâncias conhecidas, isto é, das circunstâncias em que uma certa "natureza", por exemplo, o calor, habitualmente se apresenta. As tábuas de ausência recolhem, ao invés, aqueles casos que são privados da natureza em questão, embora estando próximos ou ligados àqueles que a apresentam. As tábuas dos graus ou comparativas recolherão, pelo contrário, aquelas instâncias ou casos em que a natureza procurada se encontra em diferentes graus, maiores ou menores: o que deve fazer-se ou comparando o seu aumento e a sua diminuição no mesmo sujeito ou comparando a sua grandeza em sujeitos diferentes,

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confrontados um com o outro. Formadas estas tábuas, começa o verdadeiro e próprio trabalho da indução, cuja primeira fase deve ser negativa, isto é, deve consistir "em excluir as naturezas que não se encontrem em alguns casos em que a natureza dada é presente ou se encontrem em algum caso em que ela é ausente ou cresce em algum caso em que a natureza dada decresce ou decresce em algum caso em que a natureza dada aumenta". A parte positiva da indução **co~rá apenas após esta longa e difícil obra de exclusão, com a formulação de uma hipótese promissória, acerca da forma da natureza estudada, que Bacon, denomina "primeira vindima". Esta hipótese guiará o desenvolvimento ulterior na pesquisa que consiste substancialmente em pô-la à prova em sucessivas confirmações ou experimentos que Bacon chama instâncias prerrogativas. Ele enumera vinte e sete espécies de tais instâncias, designando-as com nomes pitorescos (instâncias solitárias, migratórias, impressionistas, clandestinas, manipulares, analógicas, etc.). A instância decisiva é a instância crucial, cujo nome Bacon deriva das cruzes que se erguem nas encruzilhadas para indicar as vias. O valor desta instância consiste em que, quando se não sabe ao corto qual das duas ou mais naturezas é a causa da natureza estudada, a instância crucial mostra que a união de uma das naturezas com ela é segura e
indissolúvel e assim permite reconhecer nesta natureza a causa da natureza estudada. Algumas vezes, acrescenta Bacon, instâncias desta natureza apresentam-se por si; outras vezes, ao contrário, devem ser

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procuradas ou provocadas e constituem verdadeiros e próprios experimentos (M., 11, 36). No vigésimo sétimo e último lugar das instâncias prerrogativas, Bacon coloca as instâncias da magia, caracterizadas pela desproporção entre a causa material ou eficiente, que é pequena ou insignificante, e o efeito produzido. Devido a esta desproporção, as instâncias mágicas parecem milagres: na realidade, os efeitos mágicos são obtidos por via puramente natural, mediante a multiplicação das forças produtoras devida ou a estas forças mesmas ou às forças de outros corpos (Nov. org., H, 51). Deste modo, a magia, com todos os seus mirabolantes efeitos, foi incluída por Bacon no plano do trabalho experimental. Todo o processo da indução tende, segundo Bacon, a estabelecer a causa das coisas naturais. E esta causa é a forma. Ele faz seu o principio: vere scire est per causas scire, e aceita finalmente a distinção aristotélica das quatro causas: material, formal, eficiente e final. Mas elimina logo a causa final por ser mais nociva do que benéfica à ciência Ub., 11, 2). "A pesquisa das causas finais, diz ele (De augm., 111, 5), é estéril: como uma virgem consagrada a Deus, não pode parir coisa alguma". Bacon não nega que se possam legitimamente contemplar os fins dos objectos naturais e a harmonia geral do universo para se dar conta do poder e da sabedoria de Quem o criou. Mas esta pesquisa deve ser consagrada ao serviço de Deus, não pode ser transposta para o plano da ciência natural, porque esta não é contemplativa mas activa, e deve

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descobrir as causas que permitem ao homem o domínio sobre o mundo (Ib., 111, 4). Quanto às outras causas aristotélicas, Bacon considera que a eficiente e a material são superficiais e inúteis para a ciência verdadeira e activa por serem concebidas como separadas do processo latente que tendo à forma. Resta a forma, que Bacon tem a pretensão de entender de um modo inteiramente diverso de Aristóteles. E o que ele entende, verdadeiramente por forma é o mais difícil problema da crítica baconiana. Bacon insiste em primeiro lugar na tese de que só a forma revela a unidade da natureza e permite descobrir o que nunca existiu antes e que nunca poderia passar pela cabeça de ninguém, e que nem os acontecimentos naturais nem as explorações experimentais nem o acaso poderiam alguma vez produzir. "Só da descoberta das formas, diz ele, nasce a contemplação verdadeira e a liberdade do operam (lb., 11, 3). Para entender o significado da forma é necessário uma observação preliminar. Bacon distingue em todos os fenómenos naturais dois aspectos diferentes: 
1º o esquematismo latente (Iatens schematismus), isto é, a estrutura ou a ordem intrínseca dos corpos considerados estaticamente;
2º o processo latente (latens processus ou processus ad formam), isto é, o movimento intrínseco dos próprios corpos, que os conduz à realização da forma. De facto, ele distulgue (Ib., 11, 1) "o processo latente que em todas as gerações ou movimentos parte continuamente da causa eficiente e manifesta e da matéria sensível para a forma inata" e o

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"esquematismo latente dos corpos quiescentes e não em movimento". E mais adiante considera o processo e o esquematismo em dois capítulos separados, insistindo na conexão e na diversidade dos dois aspectos da natureza (Ib., 11, 6 e 7). Correspondentemente, distingue duas partes da física: a doutrina do esquematismo da matéria e a doutrina dos apetites e dos movimentos (De augm., 111, 4). A primeira doutrina é por ele comparada ao que é a anatomia dos corpos orgânicos (Nov. org., 11, 7). Ora, a forma é ao mesmo tempo o princípio do esquematismo e o princípio do processo: assim, ela conserva para Bacon uma duplicidade de significado que é inerente à duplicidade da função que lhe atribui. deve ver na forma, por um lado, a estrutura que constitui essencialmente, e portanto individua e define, um determinado fenómeno natural; por outro lado, a lei que regula o movimento de geração ou de produção do próprio fenómeno. "Indagar e descobrir a forma de um dado fenómeno natural (lb., 11, 1), isto é, a diferença verdadeira ou a natureza naturante ou a fonte da emanação (são estes os vocábulos que exprimem melhor a coisa), tal é o escopo e a intenção da ciência humana". Logo, é evidente que a forma como diferença verdadeira constitui o princípio do esquematismo, isto é, da ordem intrínseca das partes da matéria, porque é aquilo que individua a estrutura de uma realidade material; enquanto como natureza naturante ou fonte de emanação é a lei que regula o movimento de produção de um determinado fenómeno. E insiste ora num ora noutro significado do

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termo forma. Por um lado, diz que "a forma é tal que pode deduzir um dado fenómeno de uma qualquer essência que é inerente a vários fenómenos. e é mais geral do que o fenómeno dado" (Ib., 11, 4): chama forma à " Minição verdadeira" do fenômeno (Ib., 11, 20) e descreve-a. como "a coisa mesma" na sua estrutura interna (Ib., 11, 13). Por outro lado, fala das leis fundamentais e comuns que constituem as formas" (Ib., 11, 17). E diz: "Se bem que na natureza não existam senão corpos individuais que produzam actos puros individuais segundo uma determinada lei, nas doutrinas essa mesma lei, a busca e a descoberta dela e o seu esclarecimento servem de fundamento quer ao saber quer ao operar. Esta lei, e os seus parágrafos, é aquilo que nós designamos com o nome de forma, especialmente porque este vocábulo é usado e se tornou familiar" (lb., 11, 2). Por vezes os dois significados são indicados ao mesmo tempo: "Quando falamos de formas não queremos indicar senão aquelas leis e aquelas determinações do acto puro que ordenam e constituem qualquer simples fenómeno natural, como o calor, a luz, o peso, qualquer que seja a matéria ou o substracto adaptado. Por isso a forma do calor ou a forma da luz é a mesma coisa que a lei do calor ou a lei da luz" (lb., 11, 117). Assim se distinguem os dois significados fundamentais da forma, como lei do movimento e determinação do acto puro, isto é, o esquematismo latente.

Não é justo, por isso, exprobar a Bacon (como tantas vezes se tem feito) a ambiguidade do significado que ele atribui à palavra forma. Na reali-

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dade, este significado é necessariamente duplo em virtude de uma distinção que Bacon claramente estabeleceu e considerou. fundamental. Resta, porém, uma dúvida: será a doutrina da forma tão original como o próprio Bacon a julgou e, sobretudo, distinguir-se-á ela suficientemente da doutrina aristotélica? Não há dúvida de que Bacon contrapôs o seu conceito de forma ao do aristotelismo escolástico; mas a forma, tal como ele a concebeu, como princípio estático e dinâmico dos corpos físicos, corresponde exactamente à autêntica forma de Aristóteles: a substância, como princípio do ser, do devir e da inteligibilidade de todas as coisas reais (§ 73). Sem o querer e talvez sem o saber, Bacon reportou-se directamente ao genuíno significado aristotélico, da forma substancial. onde, porém, se afasta de Aristóteles é na exigência, tenazmente mantida, de que a forma seja sempre inteiramente resolúvel em elementos naturais; isto é, que a busca e a descoberta da forma não consiste em processos conceituais mas num processo experimental que chega, mediante o exame de cada caso, a determinar os elementos precisos e operantes da estrutura interna e do processo generativo de um dado fenômeno. Enxertou assim no tronco do aristotelismo a sua exigência experimentalista. E isto explica a eficácia limitada e quase nula que a sua doutrina exerceu no desenvolvimento da ciência, a qual permaneceu inteiramente dominada pelas intuições metodológicas de Leonardo, Kepler e Galileu, mas quase por completo ignorou. O experimentalismo baconiano que de facto era para ela aproveitável. O experimentalismo científico não 

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podia ser enxertado no tronco do aristotelismo; e a teoria da índução baconiana devia falir nossa tentativa. O experimentalismo científico havia já encontrado a sua lógica e com ela a sua capacidade de sistematização. Esta lógica era, como se viu (§ 391), a matemática. É significativo que a matemática não encontre lugar na indução baconiana. Bacon preocupou-se, é certo, em situar a matemática na sua enciclopédia das ciências, agregando-a umas vezes à metafísica (Advancement, 11, 82), outras vezes à física (De augm., 111, 6, Nov. org., 1, 96); mas não atribuiu à matemática mesma nenhuma função eficaz na investigação científica, e afirmou explicitamente que ela "está no termo da filosofia natural, mas não a deve gerar nem procriam (Nov. org., H,
96). Assim, ao mesmo tempo considera que a matemática é causa de corrupção da filosofia natural; e, aliás, (De augm., 111, 4), diz que a astronomia foi incluída entre as matemáticas, não sem perda da sua dignidade (non sine dignitatis suae dispendio). Na realidade, o experimentalismo de Bacon mantém-se nos quadros da metafísica aristotélica, e não podia fornecer à ciência um novo órgão de investigação. Aliás, a ciência já encontrara (ou estava em vias de encontrar) o seu órgão, que é precisamente a matemática, e era por causa desse órgão que se desinteressava daquelas formas que Bacon considerava como termo último da investi~ gação, e se dispunha a considerar únicamente a ordem mensurável das coisas naturais, isto é, as suas relações matemáticas. A grandeza de Bacon consiste sobretudo em ter reconhecido a estreita

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conexão entre a ciência e o poder humano e em haver sido o profeta da técnica, isto é, da possibilidade de domínio que a investigação científica abre ao homem no mundo.