Renascimento e Humanismo - Nicola A. Abbagnano


§ 332. RENASCIMENTO E HUMANISMO: O PROBLEMA HISTORIOGRÁFICO

Escritores, historiadores, moralistas e políticos, todos estão de acordo em que se teria verificado na Itália, a partir da segunda metade do século XIV, uma mudança radical na atitude dos homens perante o mundo e a vida. Convencidos como estão do início de uma época nova, constituindo uma ruptura radical com o mundo medieval, procuram explicar a si mesmos o significado dessa mudança. Esse significado, atribuem-no então à renascença de um espírito que já fora próprio do homem na época clássica e se perdera durante a Idade Média: um espírito de liberdade, pelo qual o homem reivindica a sua autonomia de ser racional e se reconhece como intimamente ligado à natureza e à história, apresentando-se resolvido a fazer de ambas o seu reino. 

Uma tal renascença é, no ponto de vista desses escritores, um regresso à antiguidade, uma reaquisição de capacidades e poderes que os antigos (isto é, os Gregos e os Latinos) tinham possuído e exercitado. Este
regresso porém, não consiste numa mera repetição do antigo mas numa retomada e consequente continuação daquilo que pelo mundo antigo fora realizado. Tais princípios são expressos, de uma forma ou de outra, por inúmeras figuras do Renascimento italiano; pode mesmo dizer-se que a cada nova descoberta de matéria
documental nos apercebemos melhor até que ponto eles foram partilhados pelos escritores e vultos notáveis da época. Estes testemunhos aparecem-nos confirmados por imponentes fenômenos culturais: o nascimento de uma nova arte, magnífica pela variedade e pelo valor das suas manifestações, de uma nova concepção do mundo, de uma ciência que nos séculos seguintes e mesmo até ao momento presente deveria dar notáveis frutos e de uma nova maneira de compreender a história, a política e, em geral, as relações dos homens uns com os outros. Assim, tais testemunhos foram durante muito tempo tomados à letra, servindo de base ao estabelecimento dos períodos históricos da civilização ocidental. 

A historiografia filosófica não se limitou porém, nem poderia fazê-lo a aceitar o contraste que os próprios humanistas quiseram estabelecer entre a sua época e a Idade Média. Se é verdade que uma parte dos historiógrafos aceitou esse contraste como fio condutor para a interpretação (pag. 10) das doutrinas e figuras que se apresentam em primeiro plano no século XV, não é menos certo que uma outra parte se deu pelo contrário ao trabalho de salientar a continuidade que, apesar de tudo, subsiste entre aquele século e
os que o precederam. Tem-se já hoje como certo que não é possível, do ponto de vista da exatidão histórica, basear a interpretação do humanismo e do Renascimento na existência de uma antítese entre o "homem medieval" e o "Homem do Renascimento". Não é possível considerar o Renascimento meramente
como a afirmação da imanência em contraste com a transcendência. medieval ou da irreligiosidade, do paganismo, do individualismo, do sensualismo e do cepticismo em contraposição à religiosidade, ao universalismo, ao espiritualismo e ao dogmatismo da Idade Média. Não faltam e até abundam no Renascimento motivos francamente religiosos, afirmações enérgicas de transcendência e certas retomadas de elementos cristãos e dogmáticos; muitas vezes esses motivos e elementos aparecem entrelaçados com elementos e motivos opostos, formando sistemas complexos cujo centro de gravidade e sentido completo são difíceis de determinar. Difícil é pois a compreensão das polêmicas que agitam a vida cultural do Renascimento: a que, em nome da eloquência e da antiga sabedoria clássica, os humanistas travaram contra a ciência e a cultura, oposta, que os partidários da ciência travaram contra a eloquência; a que lançou platônicos contra aristotélicos e a que se desenrolou no próprio seio do aristotelismo entre alexandristas e (pag.11) averroístas. 

É evidente que nenhuma destas posições polêmicas representa por si só o Renascimento, e por conseguinte não se pode ver neste apenas a revolta da sabedoria e da eloquência, nem a da ciência contra a eloquência, nem as reivindicações do platonismo contra o aristotelismo medieval, nem a desforra do aristotelismo científico sobre a transcendência platonizante. A primeira exigência a fazer é a de que o Renascimento seja
entendido na sua totalidade pois só assim se poderá conhecer o terreno comum no qual nascem e se radicam as várias e opostas teses polêmicas.

§ 333. O HUMANISMO

A primeira destas polémicas, travada entre a sabedoria clássica e a ciência, é às vezes apresentada como a antítese entre humanismo e renascimento. Uma vez que a irrupção do Renascimento é marcada pelo aparecimento das novas ciências naturais, a polêmica contra a ciência, iniciada por Petrarca, tem sido interpretada como constituindo a defesa da transcendência religiosa e da sabedoria revelada contra a liberdade de investigação científica. Acontece porém que a defesa da sabedoria clássica, inspirada na convicção (que é uma herança deixada pela Patrística) da existência de um perfeito acordo da mesma com a verdade revelada do cristianismo é muito mais antiga do que o Renascimento e nunca chegou a ser totalmente abandonada pela Escolástica; o humanismo seria assim a (pag.12)  força que combate e retarda o advento do verdadeiro espírito renascentista, o qual, como reivindicação da liberdade de investigação, seria par sua
vez a continuação do aristotelismo e do averroísmo medievais. Humanismo e Renascimento constituiriam assim, na sua antítese, claras atitudes do espírito medieval, o que, se nos permite a compreensão da continuidade histórica que deve existir entre a Idade Média e a Moderna, afasta toda e qualquer possibilidade de entendermos a originalidade e o valor do Renascimento, ao estabelecer os pressupostos do pensamento moderno. 

A interpretação histórica do Renascimento, se, por um lado, vem esbater a contraposição polêmica do mesmo à Idade Média, vem por outro, fazer luz sobre aqueles aspectos que caracterizam suficientemente a sua configuração doutrinal. E entre os aspectos mais importantes, sob este ponto de vista, podemos enunciar
os seguintes: 

1) - a descoberta da historicidade do mundo humano; 
2) - a descoberta do valor do homem e da sua natureza mundana (natural e histórica); 
3) - a tolerância religiosa.

1) - O humanismo renascentista não consiste apenas no amor e no estudo da sabedoria clássica e na demonstração da sua concordância fundamental com a verdade cristã mas sim e antes de mais na vontade de reconstruir uma tal sabedoria na sua forma autêntica, procurando compreendê-la na sua realidade histórica efectiva. É com o humanismo que surge pela primeira vez a exigência do reconhecimento da dimensão histórica dos acontecimentos (pag.13). A Idade Média tinha ignorado por completo tal dimensão. É certo que já então se conhecia o se utilizava a cultura clássica; esta era porém assimilada à época e tornada contemporânea. Factos, figuras e doutrinas não possuíam para os escritores da Idade Média uma fisionomia bem definida, individualizada e irrepetível: o seu mérito residia apenas na validade que lhes pudesse ser
reconhecida relativamente ao universo de raciocínios no qual se moviam os ditos escritores. Sob este ponto de vista eram inúteis a geografia e a cronologia como instrumentos de averiguação histórica. Todas essas figuras e doutrinas se moviam numa esfera intemporal que não era outra senão a delineada pelos interesses fundamentais da época, apresentando-se por isso como contemporâneas dessa mesma esfera.

Com o seu interesse pelo antigo, pelo antigo autêntico e não por aquele que vinha sendo transmitido através de uma tradição deformante - o humanismo renascentista concebe pela primeira vez a realidade da perspectiva histórica, isto é, da separação e da contraposição do objecto histórico, relativamente ao presente historiográfico. Andam em polêmica no Renascimento, platônicos e aristotélicos; porém, o seu interesse comum reside na descoberta do verdadeiro Platão ou do verdadeiro Aristóteles, quer dizer, da doutrina autêntica dos troncos do seu pensamento, não deformada nem disfarçada pelos "bárbaros" medievais. A exigência filosófica não é um mero aspecto formal ou acidental do humanismo, mas sim um seu elemento (pag.14) essencial. A necessidade de descobrir os depoimentos e de os reconstituir na sua forma autêntica, estudando e cotejando os manuscritos, é acompanhada pela necessidade de neles buscar o seu conteúdo autêntico em matéria de poesia e de verdade filosófica ou religiosa. Sem investigação filológica não há
propriamente humanismo pois apenas existe uma posição genérica de defesa da cultura clássica, a qual pode ser encontrada em toda e qualquer época e por conseguinte não é característica de nenhuma em particular.

A defesa da eloquência clássica é a defesa da linguagem autêntica do classicismo contra a deformação sofrida durante a Idade Média e simultaneamente uma tentativa de reconstituição da sua forma original. A descoberta de falsificações documentais e de falsas autores, e a tentativa de integração de escritores e filósofos no seu próprio mundo, na sua própria distância cronológica, são os aspectos fundamentais do
carácter historicista do humanismo. Não restam dúvidas de que o humanismo, no tocante a resultados, só parcial e imperfeitamente levou a cabo esta sua tarefa de restauração histórica; trata-se aliás de tarefa que nunca se esgota e se apresenta sempre em primeiro lugar aos historiógrafos. Todavia foi o humanismo quem se apercebeu do valor desta tarefa, iniciando-a e deixando-a em herança à cultura moderna. O iluminismo de setecentos constitui seguidamente um passo decisivo nesse caminho, do qual nasceu por sua vez a investigação historiográfica moderna. (pag.15)

Nunca será demasiada a importância que se der a este aspecto do Renascimento. A perspectiva historiográfica torna possível distinguir o passado do presente e por conseguinte torna também possíveis o reconhecimento da natureza diferente e própria do passado e a pesquisa das características e condições
determinantes de uma tal individualidade e irrepetibilidade. Por último, dá-nos ainda a consciência da originalidade do passado em confronto connosco e a da nossa originalidade ao passado. A descoberta da perspectiva histórica está para o tempo, como a descoberta da perspectiva visual, conseguida pela pintura do Renascimento, está para o espaço: consiste na possibilidade de nos apercebermos da distância que vai de
um objecto a outro e de qualquer deles ao observador. É por conseguinte a possibilidade de os entendermos na sua real localização, na sua diferença relativamente aos demais e na sua individualidade autêntica. O significado da personalidade humana, com centro original e autônomo de organização dos vários aspectos da vida, é condicionado pela perspectiva, nesta acepção. A importância que o mundo moderno atribui à personalidade humana é o resultado de um propósito atingido pela primeira vez pelo humanismo renascentista.

2 -Quando se diz que o humanismo renascentista descobriu ou redescobriu "o valor do homem", quer com isso dizer-se que reconheceu o valor do homem como ser terrestre ou mundano, inserido no mundo da natureza e da história, capaz de nele forjar o próprio destino. O homem a quem se (pag.16) reconhece um tal valor é um ser racional e finito, cuja integração na natureza e na sociedade não constitui condenação nem exílio mas antes um instrumento de liberdade o que por essa razão pode obter no meio da natureza, e entre os homens a sua formação e a sua felicidade. Este reconhecimento não é, indubitavelmente, mais do que a
expressão filosófica ou conceitual (alcançada com atraso, como frequentemente acontece) de capacidades e poderes que o homem se arrogava havia já alguns séculos e que já exercera e continuava exercendo nas
cidades que constituíram o berço do humanismo. A experiência humana em que este se apoia dera já frutos no campo da economia, da política o da arte, o que explica a conexão geográfica do humanismo com as grandes cidades e particularmente com aquelas em que (como Florença) o exercício das novas atividades político-econômicas fora e continuava a ser mais livre e amadurecido.

Vimos que já no domínio da própria Escolástica, a partir do século XI, o homem reivindica uma autonomia cada vez maior da razão, isto é, da sua iniciativa inteligente, face às instituições típicas do mundo medieval (a Igreja, o império o feudalismo) que tinham tendência para apresentar como dimanados do Céu todos os bens de que ele podia dispor. No humanismo renascentista, porém, esta autonomia aparece-nos afirmada e reconhecida de modo mais radical, como capacidade do homem para planear a sua própria existência
individual ligada à história e à natureza. (pag.17)

É claro que, se entender como naturalismo a tese segundo a qual para além da história e da natureza nada existe, não se poderá na verdade dizer que o humanismo e o Renascimento tenham conhecido o naturalismo; porém, se se entender como naturalismo a tese segundo a qual o homem está radicado na natureza e na sociedade e só desses dois elementos poderá obter os meios necessários à sua própria, realização, um tal naturalismo foi característico de todos os escritores da época, os quais, se bem que exaltem a "alma" do
homem como sujeito relativamente aos próprios poderes da liberdade, não esquecem por isso o corpo nem aquilo que ao corpo pertence. A aversão ao ascetismo medieval, o reconhecimento do valor do prazer e a apreciação do epicurismo sob um novo prisma são as manifestações mais evidentes deste naturalismo humanista. Ligado a ele aparece-nos também o reconhecimento da existência de um vínculo que liga o homem à comunidade humana; este é um tema especialmente escolhido pelos humanistas florentinos os quais participaram ativamente na, vida política da sua cidade. Segundo este ponto de vista, exalta-se a vida ativa em contraposição à especulativa e a filosofia moral em contraposição à física e à metafísica. A Política de Aristóteles é estudada com renovado interesse e o seu autor elogiado por ter reconhecido o valor do dinheiro como coisa indispensável à vida e à conservação do indivíduo e da sociedade. Reconhecia-se assim à poesia, à história, à eloquência e à filosofia um valor essencial; atendendo ao que o homem é e verdadeiramente (pag.18) deve ser; retomava o seu inteiro valor aquele conceito de paideia ou humanitas que já no tempo de Cícero e de Varrão exprimia o ideal da formação humana como tal, ideal este que só se poderá identificar por intermédio daquelas artes próprias do homem e que o distinguem de todos os outros animais (Aulo Gellio, Noct. att., XIII, 17).

3)-Finalmente, fazem também parte do humanismo renascentista a concepção civil da religião e o conceito da tolerância religiosa. A função civil da religião encontra-se na fundamentação da correlação entre cidade celeste e cidade terrena: a cidade terrena deverá, na medida do possível, realizar a harmonia e a felicidade que são características da cidade celeste. A harmonia e a felicidade pressupõem, por sua vez, a paz religiosa. O ideal da paz religiosa é a forma tomada pela exigência da tolerância religiosa, no humanismo e no Renascimento. Os humanistas estão convencidos da identidade essencial entre filosofia e religião e da unidade de todas as religiões, não obstante a diversidade dos respectivos cultos. Como é óbvio, este ideal tem de ser entendido como privando a intolerância de toda e qualquer base pois na verdade a crença na possibilidade de uma "paz" no sentido em que, por exemplo, Pico della Mirandola emprega este termo, significa a renúncia aos contrastes insuperáveis e à luta entre religião e filosofia por um lado e entre as várias religiões e as várias filosofias por outro, bem como o fim do ódio teológico. 

Cada época vive de uma tradição e de uma herança cultural das quais fazem parte os valores (pag.19) fundamentais que inspiram as suas atitudes. Esta tradição, porém, especialmente nas épocas de transição e renovação, nunca consiste em herança passiva ou automaticamente transmitida mas sim na escolha de uma herança. Os humanistas rejeitaram a herança medieval e escolheram a do mundo clássico como sendo aquela que achavam constituída pelos valores fundamentais que lhes eram mais caros. O que lhes interessava era fazer reviver a mencionada herança como instrumento de educação, ou seja, de formação humana e social. A
primazia que concederam às chamadas letras humanas, isto é, à poesia, à retórica, à história, à moral e à política, fundava-se na convicção, igualmente herdada dos antigos, de que estas disciplinas são as únicas que
educam o homem como tal, levando-o a tomar consciência das suas reais aptidões. Esta convicção poderá talvez, nos nossos dias, considerar-se demasiado estreita mas o que não pode é ser encarada como preconceito de literatos. As letras humanas não constituíam para os humanistas campo próprio para exercícios brilhantes mas inúteis, nem ornamento fabuloso destinado à ostentação nos círculos da alta sociedade.

Constituíam sim o único instrumento que conheciam, apto a formar homens ,livres, dignos e empenhados em construir um mundo justo e feliz. Não há dúvida que o humanismo (como todos os outros períodos da história do Ocidente) conheceu também o prazer do exercício literário, a elegância da investigação meramente erudita e a tentação de esconder, sob os méritos formais da linguagem, das artes ou da
literatura, a carência (pag.20) de um sério e profícuo interesse humano. É igualmente indubitável que estes
sintomas de deterioração prevaleceram ou se tomaram mais evidentes no século XVII, quando a decadência política e civil da Itália tomou quase impossível o exercício daquelas atividades que os humanistas dos séculos anteriores tinham exaltado no mundo antigo.


Entretanto, porém, o humanismo renascentista italiano dera já os seus frutos da Itália e mesmo nesta, o novo espírito de iniciativa e liberdade que o Renascimento tinha suscitado dava igualmente seus frutos no campo da ciência.



ABBAGNANO, Nicola A. História da Filosofia - Quinto volume - Tradução: Nuno Valadas e Antônio Ramos Rosa. - Editora Presença, Lisboa, 1970. Título original: STORIA DELLA FILOSOFIA


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* Faça uma plano de estudo, para não acumular leitura  e exercícios na época de provas.