Texto 10 - Francis Bacon - Por Nicola Abbagnano

§ 392. BACON: VIDA E ESCRITOS

Se Galileu elucidou o método de investigação científica, Bacon entreviu pela primeira vez o poder que a ciência oferece ao homem em relação ao mundo. Bacon concebeu a ciência como essencialmente destinada a realizar o domínio do homem sobre a natureza. O regnum hominis viu a fecundidade das suas aplicações práticas, de modo que podemos considerá-lo o filósofo e o profeta da técnica.

Francis Bacon nasceu em Londres a 22 de Janeiro de 1561, sendo filho de Sir Nicholas Bacon, ministro da justiça da rainha Elisabeth. Estudou em Cambridge e em seguida passou alguns anos em Paris, no séquito do embaixador de Inglaterra, onde teve ensejo de completar e enriquecer a sua cultura. De regresso à pátria, quis iniciar a carreira política. Enquanto viveu a rainha Elisabeth, não pôde obter nenhum cargo importante, não obstante o apoio do conde de Essex. Mas com a subida ao trono de Jaime I, Stuart (1603), pôde gozar do apoio do favorito do rei,   Lord Buckingham, para obter cargos e honras. Foi  nomeado advogado geral (1607), depois procurador geral (1613), e, finalmente, ministro das justiças (1617) e Lord Chanceler (1618). Como tal, presidia às principais cortes de justiça e tornava executórios os decretos do rei. Foi, além disso, nomeado barão de Verulam e visconde de Slo Albano. Mas quando Jaime 1 teve de convocar em 1621 o Parlamento, inculpou Bacon de

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corrupção, acusando-o de ter recebido ofertas de dinheiro no exercício das suas funções. Bacon reconheceu-se culpado. Foi condenado então a pagar quarenta mil esterlinos de multa, a permanecer prisioneiro na Torre de Londres até que o rei o quisesse, e foi exonerado de todos os cargos do estado (3 de Maio de 1621). O rei perdoou a Bacon a multa e a prisão, mas a vida política do filósofo estava acabada. Bacon retirou-se para Gorhwnbury e aí passou os últimos anos da sua vida, entregando-,se ao estudo. Faleceu a 9 de Abril de 1626.

A carreira política de Bacon foi a de um cortesão hábil e sem escrúpulos. Não hesitou em sustentar a acusação como advogado do rei contra o conde Essex que o havia ajudado nos primeiro passos difíceis da sua carreira, e que caíra em seguida em desgraça. O processo a que foi submetido lança uma luz pouco simpática sobre a sua actividade de ministro, uma vez que ele não pôde negar as acusações de corrupção que lhe dirigiram. Mas este homem ambicioso e amante do dinheiro e do fausto teve uma ideia altíssima      do valor da ciência ao serviço do homem. Todas as suas obras tendem a ilustrar o projeto de uma     pesquisa científica que, aplicando o método experimental em todos os campos da realidade, faça da realidade mesma o domínio do homem. Bacon quis tornar a ciência ativa e operante colocando-a ao serviço do homem e considerando como seu escopo a constituição de uma técnica que devia dar ao homem o domínio de todo o mundo natural. Quando, na

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Nova Atlântida, pretende dar a imagem de uma cidade ideal, recorrendo ao pretexto, já empregado por Tomás More na Utopia, da descrição de uma ilha desconhecida, não se deteve a sonhar com formas de vida sociais ou políticas perfeitas, mas imaginou um paraíso da técnica onde fossem postos em prática as invenções e os achados do mundo inteiro. E, de fato, neste escrito (que não chegou a ser concluído) a ilha da Nova Atlântida é descrita como um enorme laboratório experimental, na qual os habitantes procuram conhecer todas as forças ocultas da natureza "Para estender os confins do império humano a todas as coisas possíveis". Os nomes tutelares da ilha são os grandes inventores de todos os países; e as relíquias sagradas são os exemplares de todas as grandes e mais raras invenções.

Bacon, todavia, não dirigiu a sua atenção apenas para o mundo da natureza. A sua primeira obra, os Ensaios, publicados pela primeira vez em 1597 e depois traduzidos em latim com o título Sermones fídeles sive interiora rerum, são sutis e eruditas análises da vida moral e política nas quais a sapiência dos Antigos é amplamente utilizada. Mas a sua ,principal atividade foi a que dedicou ao projeto de uma enciclopédia das ciências que devia renovar completamente a investigação científica colocando-a numa base experimental. O plano grandioso desta enciclopédia deu-no-lo ele no escrito De augmentis scientiarbim, publicado, em 1623, o qual compreende: as ciências que se fundam na memória, isto é, a história, que se dlivide em natural e civil; aquelas que se fundam na fantasia, isto é, a poesia, que se

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divide em narrativa, dramática e parabólica (a que serve para ilustrar uma verdade); e as ciências que se fundam na razão, entro as quais, por um lado, a filosofia prima ou ciência universal, por outro as ciências particulares que concernem a Deus ou à natureza ou ao homem. "A filosofia prima" é considerada por Bacon como "a ciência universal e mãe das outras ciências", consistindo a sua tarefa em recolher "os axiomas que não são próprios das ciências particulares mas comuns a outras ciências" (De augm. séient., 111, 1). Este conceito devia permanecer típico da interpretação da tarefa da filosofia segundo os métodos positivistas, isto é, segundo todo o método que faça coincidir com a ciência a totalidade do saber.

A Instauratio magna deveria dar as directivas de todas estas ciências e devia, consequentemente. compreender seis partes:   
1.a). Divisão das ciências;
2.a). Novo órgão ou indícios para a interpretação da natureza; 
3.a). Fenómenos do universo ou história natural experimental para construir a filosofia; 
4.a) Escala do intelecto; 
5.a) Pródromos ou antecipações da filosofia segunda; 
6.a) - Filosofia segunda ou ciência activa. 
Deste vasto projeto Bacon apenas realizou adequadamente a segunda parte que é precisamente o Novum organum, publicado em 1620. As outras obras podem-se considerar como esquissos ou esboços das outras partes: O progresso do saber (em inglês, 1605), De sapientia veterum (1609); História naturalis (1622)-, De dignitate et augmentis scientiarum (1623); este último escrito representa a primeira parte da Instauratio nwgna.

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Escritos menores, incompletos ou esboçados foram publicados após a sua morte: De interpretatione natura e proemium (1603), Valerius Terminus (1603); Cogitationes de rerum natura (1605); Cogitata e visa (1607), Descriptio globi intelectualis (1612); Thema coeli (1612). Nos últimos anos compôs e publicou também uma História de Henrique VII.

§ 393. BACON: O CONCEITO DA CIÊNCIA E DA TEORIA DOS ÍDOLOS

Do projeto grandioso de uma Instauratio magna que devia culminar na Sciencia activa, isto é, numa técnica que aplicasse as descobertas teóricas, muito pouco realizou Bacon. O que ele fez reduz-se substancialmente ao Novum Organum, isto é, a uma lógica do procedimento técnico-científico que é polemicamente contraposta à lógica aristotélica, que ele achava servir apenas para alcançar vitórias nas disputas verbais. Com a velha lógica vence-se o adversário, com a nova conquista-se a natureza. Esta conquista da natureza é a tarefa fundamental da ciência. "O fim desta nossa ciência, diz Bacon (Nov. org., Distributio operis), é o de encontrar não argumentos mas artes, não princípios aproximativos, mas princípios verdadeiros, não razões prováveis mas projetos e indicações de obras". A ciência é posta assim inteiramente ao serviço do homem; e o homem, ministro e intérprete da natureza, opera e compreende de acordo com o que observou na ordem

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da natureza, quer mediante a experiência, quer mediante a reflexão: para além disto, não sabe nem pode coisa alguma. A ciência e o poder humano coincidem: a ignorância da causa toma impossível conseguir o efeito. Não se vence a natureza senão obedecendo-lhe, e o que na observação está como causa, na obra vale como regra (Ib., 1, 3). A inteligência humana tem necessidade de instrumentos eficazes para penetrar na natureza e dominá-la: à semelhança das mãos, não pode efetuar nenhum trabalho sem um instrumento adequado. Os instrumentos da mente são os seus experimentos: experimentos pensados e adaptados tecnicamente ao fim que se pretende alcançar. Os sentidos por si só não bastam para nos fornecer uni guia seguro: só os experimentos são os guardiões e os intérpretes das respostas daqueles. O experimento representa, segundo a imagem de Bacon, o conúbio da mente e do universo", conúbio do qual se espera "uma prole numerosa de invenções e de instrumentos aptos a dominarem e a mitigarem, pelo menos em parte, as necessidades e as misérias dos homens" (lb., Distr. op.).

Mas a união entre a mente e o universo não se pode celebrar enquanto a mente permaneça presa a hábitos e preconceitos que a impedem de interpretar a natureza. Bacon opõe a interpretação da natureza à antecipação da natureza. A antecipação da natureza prescinde do experimento e passa imediatamente das coisas particulares sensíveis aos axiomas generalíssimos, e, à base destes princípios e da sua imóvel verdade, tudo julga e encontra os chamados

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axionas médios, isto é, as verdades intermédias entro os princípios últimos e as coisas. Esta é a via da antecipação, de que se serve a lógica tradicional, via que toca apenas de raspão a experiência porque se satisfaz com as verdades gerais. A interpretação da natureza, ao invés, adentra-se com método e ordem na experiência e ascende, sem saltos e por graus de sentido, das coisas particulares aos aXiomas, chegando só por último aos mais gerais. A vila de antecipação é estéril, uma vez que os axiomas por ela estabelecidos não servem para inventar seja o que for. A via da interpretação é fecunda, porque dos axiomas deduzidos com método e ordem das coisas particulares facilmente brotam novas cognições particulares que tornam activa e produtiva a ciência (lb., 1, 24). A tarefa preliminar de Bacon, na sua tentativa de estabelecer o novo órgão da ciência, é, por conseguinte, o de eliminar as antecipações, e a tal é dedicado substancialmente o primeiro livro do Novum organum. Este livro destina-se a purificar o intelecto de todos os ídolos, para o que estabelece uma tríplice crítica: (redargutio): crítica das filosofias, crítica das demonstrações e crítica da razão humana natural, respectivamente destinadas a eliminar os preconceitos que se radicaram na mente humana através das doutrinas filosóficas ou através das demonstrações extraídas de princípios errados, ou pela própria natureza do intelecto humano. Ele quer "conduzir os homens Perante as coisas Particulares e as suas séries e ordena, afastando-os por algum tempo das noções

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antecipadoras para que comecem a familiarizar-se com as coisas mesmas" (Ib., 1, 36).

As antecipações que se radicam na própria natureza humana são as que Bacon denomina idola tribus e idola specus: os idola tribus são comuns a todos os homens, os idola specus são próprios de cada indivíduo. O intelecto humano é conduzido a supor que existe na natureza uma harmonia muito maior do que a que existe de facto, a dar mais importância a certos conceitos do que a outros, a atribuir maior relevância ao que, impressiona a fantasia do que ao que é oculto e longínquo. Além de ser impaciente, quer progredir sempre para além do que lhe é dado, e pretende que a natureza se adapte às suas exigências. rejeitando assim tudo o
que nela não lhe convém. Todas estas disposições naturais são fontes de idola tribus,- e a principal fonte de tais idola é a insuficiência dos sentidos aos quais escapam todas as forças ocultas da natureza. Os idola specus, ao invés, dependem da educação, dos hábitos e das circunstâncias fortuitas em que cada qual se encontra. Aristóteles, dei de ter inventado a lógica, sujeitou a ela completamente a sua física, tornando-a estéril: isto foi devido por certo a uma particular disposição do seu intelecto. Gilbert, o descobridor do magnetismo, arquitectou sobre a sua descoberta toda uma filosofia. E assim, em geral, todo o homem tem as suas propensões para os antigos ou para os modernos, para o velho ou para o novo, paira aquilo que é simples ou para aquilo que é complexo, para as semelhanças ou para as diferenças; e todas estas propensões são fontes

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de idola specus, como se cada homem tivesse no seu interior um antro ou uma caverna que refractasse ou desviasse a luz da natureza.

Além destas duas espécies naturais de ídolos, existem os adventícios ou provenientes do exterior: idola fori e idola theatri. Os ídolos da praça derivam da linguagem. Os homens crêem impor a sua razão às palavras: também sucede que as palavras retorçam e repercutam a sua força sobre o intelecto. Nascem assim as disputas verbais', as mais longas e insolúveis, que se podem resolver apenas com um recurso à realidade. Os ídolos que derivam das palavras são de duas espécies: ou são nomes de coisas que não existem ou são nomes de coisas que existem, mas que são confusos e mal determinados. À primeira espécie pertencem os nomes de fortuna, primeiro móbil, órbitas dos planetas, elemento do fogo e quejandos, os quais têm a sua origem em falsas teorias. À segunda espécie pertencem, por exemplo, a palavra húmido, que indica coisas diversissímas, as palavras que indicam acções como gerar, corromper, etc., e as que indicam qualidades, como grave, ligeiro, poroso, denso, etc. Tais são os idóla fori, 'assim chamados porque gerados por aquelas convenções. humanas que as relações entre os homens tornaram necessárias. o último género de preconceitos é o idola theatri que derivam das doutrinas filosóficas ou de demonstrações erradas. Bacon denomina-os- assim porque compara os sistemas filosóficos a fábulas, que são como mundos fictícios ou cenas de teatro. As doutrinas filosóficas, e por conseguinte, os idola theatri, existem em pro-

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fusão e Bacon não se propõe confutá-los um por um. Ele divíde as falsas filosofias em três espécies: a sofística, a empírica e a supersticiosa. Da filosofia sofística o maior exemplo é Aristóteles, que procurou adaptar o mundo natural a categorias lógicas predispostas e se preocupou mais em dar a definição verbal das coisas do que em procurar a verdade delas. Ao género empírico, pertence a filosofia dos alquimistas e também a de Gilbert, que tem a pretensão de explicar todas as coisas por meio de poucos e restritos experimentos. Finalmente, a filosofia supersticiosa é a que se mistura com a teologia, como acontece em Pitágoras e Platão, e especialmente neste último, que Bacon considera mais subtil e perigoso e ao qual não hesita em atribuir num seu escrito (Temporis partus musculus, Opere, M,530-31) as qualificações de "urbano trapaceiro, poeta enfatuado, teólogo mentecapto". Finalmente, idola theatri derivam também de demonstrações erróneas. E as demonstrações são erróneas porque se fiam demasiado nos sentidos ou abstraem indevidamente das suas impressões ou têm a pretensão de passar de golpe dos pormenores sensíveis aos princípios gerais.

Entre as causas que impedem os homens de se libertarem dos ídolos e progredirem no conhecimento efectivo da natureza, Bacon coloca em primeiro lugar a reverência pela sabedoria antiga. A este propósito, observa ele que, se por antiguidade se entende a velhice do mundo, o termo deveria aplicar-se ao nosso tempo, e não àquela juventude do mundo de que os Antigos foram quase um exemplo.

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Essa época é antiga e fundamental para nós, mas relativamente ao mundo é nova e menor; e como é lícito esperar de um homem antigo um maior conhecimento do mundo do que de um jovem, assim deveremos esperar da nossa época muito mais do que dos tempos antigos, porque ela se foi pouco a pouco enriquecendo no curso do tempo através de infinitos experimentos e observações. A verdade, diz Bacon, é filha do tempo, não da autoridade. Como Bruno, ele pensa que ela se revela gradualmente ao homem através dos esforços que se somam e se integram na históriaPara sair das velhas vias da contemplação improdutiva e empreender a via nova da investigação técnico-científica, é necessário colocarmo-nos no terreno do experimento. A simples experiência não basta, porque procede ao acaso e sem directivas. É semelhante, diz Bacon, (Nov. Org., 1, 82) a uma vassoura velha, ao avançar às cegas como quem andasse de noite à procura do caminho, quando seria mais fácil e prudente esperar pelo dia ou acender uma luz, e assim enfiar pelo caminho. A ordem verdadeira da experiência consiste em acender a luz, ,iluminando desse modo a via, quer dizer, começar pela experiência ordenada e madura, e não por experiências irregulares e desordenadas. Só assim o experimento pode levar a vida humana a enriquecer-se de novas invenções, a assentar as bases do poder e da grandeza humana e a alargar cada vez mais os seus horizontes. Aliás, o objectivo prático e técnico que Bacon atribui à ciência não a encerra num estreito utilitarismo. Aos experimentos que dão

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fruto (experimenta fructífera) acha que são preferíveis os que dão luz (experimenta lucifera), que nunca falham e nunca são estéreis, porquanto revelam a causa natural dos factos (Ib., 1, 99).

§ 394. BACON: A INDUÇÃO E A TEORIA DAS FORMAS

A pesquisa científica não se funda só nos sentidos nem apenas no intelecto. Se o intelecto por si não produz senão noções arbitrárias e infecundas e se os sentidos, por outro lado, só dão indicações ordinárias e inconcludentes, a ciência não poderá constituir-se como conhecimento verdadeiro e fecundo de resultados senão enquanto impuser à experiência sensível a disciplina do intelecto e ao intelecto a disciplina da experiência sensível. O procedimento que realiza aquela exigência é, segundo Bacon, o da indução. Bacon preocupa-se em distinguir a sua indução da aristotélica. A indução aristotélica, isto é, a indução puramente lógica que não incide sobre a realidade, é uma indução por simples enumeração dos casos particulares: Bacon considera-a uma experiência pueril que produz conclusões precárias e é continuamente exposta ao perigo dos exemplos contrários que possam desmenti-la. Ao invés, a indução que é a invenção e a demonstração das ciências e das artes funda-se na escolha e na eliminação dos casos particulares: escolha e eliminação repetidas sucessivamente sob o controle do experimento, até se atingir a deter-

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minação da verdadeira natureza do fenómeno. Esta indução procede por isso sem saltos e por graus; quer dizer, remonta gradualmente dos factos particulares aos princípios mais gerais e só por último chega aos axiomas generalíssimos. A escolha e a eliminação em que se funda tal indução supõem em primeiro lugar a recolha e a descrição dos factos particulares: recolha e descrição que Bacon denomina storia naturale sperimentale, porque não deve ser imaginada ou cogitada, mas recolhida da experiência, ou seja, ditada pela própria natureza. Mas a história natural e experimental é tão variada e vasta que confundiria o intelecto em vez de ajudá-lo se não fosse composta e sistematizada numa ordem idónea. Para tal fim servem as tábuas que são recolhas de casos ou exemplos (instantiae) segundo um método ou uma ordem que torna tais recolhas apropriadas às exigências do intelecto (Nov. org., 11, 10). As tábuas de presença serão então a recolha das instâncias conhecidas, isto é, das circunstâncias em que uma certa "natureza", por exemplo, o calor, habitualmente se apresenta. As tábuas de ausência recolhem, ao invés, aqueles casos que são privados da natureza em questão, embora estando próximos ou ligados àqueles que a apresentam. As tábuas dos graus ou comparativas recolherão, pelo contrário, aquelas instâncias ou casos em que a natureza procurada se encontra em diferentes graus, maiores ou menores: o que deve fazer-se ou comparando o seu aumento e a sua diminuição no mesmo sujeito ou comparando a sua grandeza em sujeitos diferentes,

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confrontados um com o outro. Formadas estas tábuas, começa o verdadeiro e próprio trabalho da indução, cuja primeira fase deve ser negativa, isto é, deve consistir "em excluir as naturezas que não se encontrem em alguns casos em que a natureza dada é presente ou se encontrem em algum caso em que ela é ausente ou cresce em algum caso em que a natureza dada decresce ou decresce em algum caso em que a natureza dada aumenta". A parte positiva da indução **co~rá apenas após esta longa e difícil obra de exclusão, com a formulação de uma hipótese promissória, acerca da forma da natureza estudada, que Bacon, denomina "primeira vindima". Esta hipótese guiará o desenvolvimento ulterior na pesquisa que consiste substancialmente em pô-la à prova em sucessivas confirmações ou experimentos que Bacon chama instâncias prerrogativas. Ele enumera vinte e sete espécies de tais instâncias, designando-as com nomes pitorescos (instâncias solitárias, migratórias, impressionistas, clandestinas, manipulares, analógicas, etc.). A instância decisiva é a instância crucial, cujo nome Bacon deriva das cruzes que se erguem nas encruzilhadas para indicar as vias. O valor desta instância consiste em que, quando se não sabe ao corto qual das duas ou mais naturezas é a causa da natureza estudada, a instância crucial mostra que a união de uma das naturezas com ela é segura e
indissolúvel e assim permite reconhecer nesta natureza a causa da natureza estudada. Algumas vezes, acrescenta Bacon, instâncias desta natureza apresentam-se por si; outras vezes, ao contrário, devem ser

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procuradas ou provocadas e constituem verdadeiros e próprios experimentos (M., 11, 36). No vigésimo sétimo e último lugar das instâncias prerrogativas, Bacon coloca as instâncias da magia, caracterizadas pela desproporção entre a causa material ou eficiente, que é pequena ou insignificante, e o efeito produzido. Devido a esta desproporção, as instâncias mágicas parecem milagres: na realidade, os efeitos mágicos são obtidos por via puramente natural, mediante a multiplicação das forças produtoras devida ou a estas forças mesmas ou às forças de outros corpos (Nov. org., H, 51). Deste modo, a magia, com todos os seus mirabolantes efeitos, foi incluída por Bacon no plano do trabalho experimental. Todo o processo da indução tende, segundo Bacon, a estabelecer a causa das coisas naturais. E esta causa é a forma. Ele faz seu o principio: vere scire est per causas scire, e aceita finalmente a distinção aristotélica das quatro causas: material, formal, eficiente e final. Mas elimina logo a causa final por ser mais nociva do que benéfica à ciência Ub., 11, 2). "A pesquisa das causas finais, diz ele (De augm., 111, 5), é estéril: como uma virgem consagrada a Deus, não pode parir coisa alguma". Bacon não nega que se possam legitimamente contemplar os fins dos objectos naturais e a harmonia geral do universo para se dar conta do poder e da sabedoria de Quem o criou. Mas esta pesquisa deve ser consagrada ao serviço de Deus, não pode ser transposta para o plano da ciência natural, porque esta não é contemplativa mas activa, e deve

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descobrir as causas que permitem ao homem o domínio sobre o mundo (Ib., 111, 4). Quanto às outras causas aristotélicas, Bacon considera que a eficiente e a material são superficiais e inúteis para a ciência verdadeira e activa por serem concebidas como separadas do processo latente que tendo à forma. Resta a forma, que Bacon tem a pretensão de entender de um modo inteiramente diverso de Aristóteles. E o que ele entende, verdadeiramente por forma é o mais difícil problema da crítica baconiana. Bacon insiste em primeiro lugar na tese de que só a forma revela a unidade da natureza e permite descobrir o que nunca existiu antes e que nunca poderia passar pela cabeça de ninguém, e que nem os acontecimentos naturais nem as explorações experimentais nem o acaso poderiam alguma vez produzir. "Só da descoberta das formas, diz ele, nasce a contemplação verdadeira e a liberdade do operam (lb., 11, 3). Para entender o significado da forma é necessário uma observação preliminar. Bacon distingue em todos os fenómenos naturais dois aspectos diferentes: 
1º o esquematismo latente (Iatens schematismus), isto é, a estrutura ou a ordem intrínseca dos corpos considerados estaticamente;
2º o processo latente (latens processus ou processus ad formam), isto é, o movimento intrínseco dos próprios corpos, que os conduz à realização da forma. De facto, ele distulgue (Ib., 11, 1) "o processo latente que em todas as gerações ou movimentos parte continuamente da causa eficiente e manifesta e da matéria sensível para a forma inata" e o

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"esquematismo latente dos corpos quiescentes e não em movimento". E mais adiante considera o processo e o esquematismo em dois capítulos separados, insistindo na conexão e na diversidade dos dois aspectos da natureza (Ib., 11, 6 e 7). Correspondentemente, distingue duas partes da física: a doutrina do esquematismo da matéria e a doutrina dos apetites e dos movimentos (De augm., 111, 4). A primeira doutrina é por ele comparada ao que é a anatomia dos corpos orgânicos (Nov. org., 11, 7). Ora, a forma é ao mesmo tempo o princípio do esquematismo e o princípio do processo: assim, ela conserva para Bacon uma duplicidade de significado que é inerente à duplicidade da função que lhe atribui. deve ver na forma, por um lado, a estrutura que constitui essencialmente, e portanto individua e define, um determinado fenómeno natural; por outro lado, a lei que regula o movimento de geração ou de produção do próprio fenómeno. "Indagar e descobrir a forma de um dado fenómeno natural (lb., 11, 1), isto é, a diferença verdadeira ou a natureza naturante ou a fonte da emanação (são estes os vocábulos que exprimem melhor a coisa), tal é o escopo e a intenção da ciência humana". Logo, é evidente que a forma como diferença verdadeira constitui o princípio do esquematismo, isto é, da ordem intrínseca das partes da matéria, porque é aquilo que individua a estrutura de uma realidade material; enquanto como natureza naturante ou fonte de emanação é a lei que regula o movimento de produção de um determinado fenómeno. E insiste ora num ora noutro significado do

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termo forma. Por um lado, diz que "a forma é tal que pode deduzir um dado fenómeno de uma qualquer essência que é inerente a vários fenómenos. e é mais geral do que o fenómeno dado" (Ib., 11, 4): chama forma à " Minição verdadeira" do fenômeno (Ib., 11, 20) e descreve-a. como "a coisa mesma" na sua estrutura interna (Ib., 11, 13). Por outro lado, fala das leis fundamentais e comuns que constituem as formas" (Ib., 11, 17). E diz: "Se bem que na natureza não existam senão corpos individuais que produzam actos puros individuais segundo uma determinada lei, nas doutrinas essa mesma lei, a busca e a descoberta dela e o seu esclarecimento servem de fundamento quer ao saber quer ao operar. Esta lei, e os seus parágrafos, é aquilo que nós designamos com o nome de forma, especialmente porque este vocábulo é usado e se tornou familiar" (lb., 11, 2). Por vezes os dois significados são indicados ao mesmo tempo: "Quando falamos de formas não queremos indicar senão aquelas leis e aquelas determinações do acto puro que ordenam e constituem qualquer simples fenómeno natural, como o calor, a luz, o peso, qualquer que seja a matéria ou o substracto adaptado. Por isso a forma do calor ou a forma da luz é a mesma coisa que a lei do calor ou a lei da luz" (lb., 11, 117). Assim se distinguem os dois significados fundamentais da forma, como lei do movimento e determinação do acto puro, isto é, o esquematismo latente.

Não é justo, por isso, exprobar a Bacon (como tantas vezes se tem feito) a ambiguidade do significado que ele atribui à palavra forma. Na reali-

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dade, este significado é necessariamente duplo em virtude de uma distinção que Bacon claramente estabeleceu e considerou. fundamental. Resta, porém, uma dúvida: será a doutrina da forma tão original como o próprio Bacon a julgou e, sobretudo, distinguir-se-á ela suficientemente da doutrina aristotélica? Não há dúvida de que Bacon contrapôs o seu conceito de forma ao do aristotelismo escolástico; mas a forma, tal como ele a concebeu, como princípio estático e dinâmico dos corpos físicos, corresponde exactamente à autêntica forma de Aristóteles: a substância, como princípio do ser, do devir e da inteligibilidade de todas as coisas reais (§ 73). Sem o querer e talvez sem o saber, Bacon reportou-se directamente ao genuíno significado aristotélico, da forma substancial. onde, porém, se afasta de Aristóteles é na exigência, tenazmente mantida, de que a forma seja sempre inteiramente resolúvel em elementos naturais; isto é, que a busca e a descoberta da forma não consiste em processos conceituais mas num processo experimental que chega, mediante o exame de cada caso, a determinar os elementos precisos e operantes da estrutura interna e do processo generativo de um dado fenômeno. Enxertou assim no tronco do aristotelismo a sua exigência experimentalista. E isto explica a eficácia limitada e quase nula que a sua doutrina exerceu no desenvolvimento da ciência, a qual permaneceu inteiramente dominada pelas intuições metodológicas de Leonardo, Kepler e Galileu, mas quase por completo ignorou. O experimentalismo baconiano que de facto era para ela aproveitável. O experimentalismo científico não 

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podia ser enxertado no tronco do aristotelismo; e a teoria da índução baconiana devia falir nossa tentativa. O experimentalismo científico havia já encontrado a sua lógica e com ela a sua capacidade de sistematização. Esta lógica era, como se viu (§ 391), a matemática. É significativo que a matemática não encontre lugar na indução baconiana. Bacon preocupou-se, é certo, em situar a matemática na sua enciclopédia das ciências, agregando-a umas vezes à metafísica (Advancement, 11, 82), outras vezes à física (De augm., 111, 6, Nov. org., 1, 96); mas não atribuiu à matemática mesma nenhuma função eficaz na investigação científica, e afirmou explicitamente que ela "está no termo da filosofia natural, mas não a deve gerar nem procriam (Nov. org., H,
96). Assim, ao mesmo tempo considera que a matemática é causa de corrupção da filosofia natural; e, aliás, (De augm., 111, 4), diz que a astronomia foi incluída entre as matemáticas, não sem perda da sua dignidade (non sine dignitatis suae dispendio). Na realidade, o experimentalismo de Bacon mantém-se nos quadros da metafísica aristotélica, e não podia fornecer à ciência um novo órgão de investigação. Aliás, a ciência já encontrara (ou estava em vias de encontrar) o seu órgão, que é precisamente a matemática, e era por causa desse órgão que se desinteressava daquelas formas que Bacon considerava como termo último da investi~ gação, e se dispunha a considerar únicamente a ordem mensurável das coisas naturais, isto é, as suas relações matemáticas. A grandeza de Bacon consiste sobretudo em ter reconhecido a estreita

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conexão entre a ciência e o poder humano e em haver sido o profeta da técnica, isto é, da possibilidade de domínio que a investigação científica abre ao homem no mundo.

2 comentários:

  1. Existe nesse pensadores modernos um excesso de confiança na razão.

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  2. Não que não devemos confiar na razão, mas existe uma prepotência muito grande detrás do pensamento.

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