KANT E A REVIRAVOLTA “CRÍTICA" DO PENSAMENTO
OCIDENTAL
1. A vida, a obra e o desenvolvimento do
pensamento de Kant
1.1. A vida
Emanuel Kant nasceu em Königsberg, cidade da Prússia Oriental (hoje, a
cidade se chama Kaliningrado e pertence a um território que se encontra sob a
soberania russa), em 1724, de modesta família de artesãos, provavelmente de
origem escocesa. Seu pai, João Jorgen, era seleiro; sua mãe, Regina Reuter, era
dona-de-casa. Muito numerosa, sua família foi duramente provada: nada menos que
seis filhos morreram em tenra idade. Em uma carta, com sentimentos de notável
gratidão, Kant recorda os pais como modelos de honestidade e probidade e
reconhece ter recebido deles excelente educação.
Mas é sobretudo a mãe que predomina na lembrança de Kant (quase como, no
caso de santo Agostinho, sua mãe Mônica). Regina Reuter lançou no espírito do
filho “as sementes do bem" e as fez crescer; demais, em seus passeios pelo
campo, fez nascer nele profundo sentimento pela beleza da natureza (destinado a
ter grande importância na formação de parte do seu futuro sistema filosófico);
por fim, estimulou de vários modos o seu amor pelo conhecimento.
A marca de sua mãe, porém, fez-se sentir principalmente na educação
religiosa. Regina Reuter não apenas criou o filho no rigorismo próprio do pietismo (uma
corrente radical do protestantismo), mas quis também que sua formação escolar
fosse marcada nesse sentido: por isso, matriculou Emanuel no Collegium
Fridericianum, dirigido pelo pastor pietista F. A. Schultz, onde vigorava
grande severidade, tanto nos conteúdos como nos métodos. Embora algims aspectos
da educação píetista fossem mais tarde contestados por Kant, permaneceram
indeléveis nele algumas instâncias de fundo dessa seita, bem visíveis sobretudo
em seus escritos morais.
Kant aprendeu muito bem o latim e mal o grego. Não leu os grande
clássicos da literatura e da filosofia gregas, o que, como veremos,
repercutiria em sua própria filosofia. Em 1740, matriculou-se na universidade
de sua cidade natal, onde freqüentou os cursos de ciência e filosofia,
terminando seus estudos em 1747.
O período que vai de 1747 e 1754 foi muito duro. Kant teve que trabalhar
como preceptor para sobreviver, uma profissão para a qual não se inclinava
muito. Seus biógrafos destacam que esse deve ter sido verdadeiro período de
miséria, dado que os funerais de seus genitores foram realizados às custas do
erário público. Mas, apesar dessas condições desfavoráveis, Kant estudou muito
nesse período, atualizando-se e lendo tudo o que se escrevia então, sobretudo
nos campos que mais o interessavam, como as ciências e a filosofia.
Em 1755, conseguiu o doutorado e a docência universitária, ingressando
na Universidade de Kõnigsberg na qualidade de livre-docente. Naquela época, o
livre-docente era pago proporcionalmente ao número de horas de ensino e ao
número de alunos que seguiam os seus cursos: é compreensível, então, que a
tarefa de Kant não fosse nada fácil. Ele ensinou na universidade como
livre-docente até 1770, ano em que venceu o concurso para professor ordinário,
com a dissertação De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et
principiis. Em 1758, já se havia apresentado em um concurso. Mas perdeu,
sendo preferido outro, destinado a permanecer como total nulidade. Recordamos o
fato só para mostrar um dos traços salientes do caráter moral de Kant: ele
tinha verdadeira aversão por qualquer forma de carreirismo, era estranho a
todas as manobras acadêmicas e alheio a qualquer forma de adulação em relação a
protetores poderosos. E pagou inteiramente o preço de confiar sua carreira
exclusivamente às suas próprias forças, com extrema dignidade, distanciamento e
determinação.
O que interessava a Kant eram o saber e a pesquisa, não a carreira, nem
a fama ou as riquezas, como o demonstram ainda outros interessantes
acontecimentos. Em 1778, na qualidade de ministro, o barão von Zedlitz lhe
ofereceu uma cátedra em Halles, onde o estipêndio era o triplo e os estudantes
muito mais numerosos do que em Königsberg. Mas ele recusou, não desistindo de sua
recusa nem mesmo quando o ministro, para convencê-lo, ofereceu-lhe também outro
cargo.
O período entre 1770 e 1781 constituiu o momento decisivo da formação do
sistema kantiano. De sua longa meditação, nasceu a primeira Crítica (Crítica
da razão pura, 1781), à qual se seguiram as outras grandes obras que contêm
o pensamento maduro do nosso filósofo, particularmente as duas outras Críticas:
a Crítica da razão prática, em 1788, e a Crítica do juízo,
em 1790.
Os últimos anos da vida do filósofo foram perturbados sobretudo por dois
acontecimentos. Em 1794, Kant foi intimado a não insistir nas idéias por ele
expressas sobre a religião na obra A religião nos limites da pura razão.
Morto o rei Frederico II, filo-iluminista, havia assumido Frederico Guilherme
II que, liberando von Zedlitz (grande apreciador de Kant), entrincheirou-se em
posições reacionárias. Kant obedeceu: não se retratou de suas idéias, mas
calou-se, sustentando ser esse o seu dever de súdito e argumentando que, se é
verdade que a mentira nunca deve ser dita, não é menos verdadeiro que a verdade
nem sempre deve ser abertamente proclamada. Trata-se de um episódio que não
agrada a muitos de seus biógrafos, mas que é coerente com a personagem.
O outro acontecimento tem dimensão histórica mais acentuada. O
criticismo transcendental vinha sendo interpretado e desenvolvido no sentido de
um idealismo espiritualista, especialmente por obra de Fichte, que Kant havia
ajudado muito no início da carreira. Esse desdobramento, que iria envolver o
criticismo e transformá-lo radicalmente, era fatal: o iluminismo já se havia
esgotado, nascia uma nova forja cultural e, nessa forja, como veremos, o
criticismo transcendental devia necessariamente se desenvolver em sentido
idealista. Kant lutou durante certo tempo, mas depois, compreendendo
provavelmente que aquela interpretação do seu pensamento era incontível,
fechou-se em silêncio hermético.
Os anos da velhice foram os piores para Kant. Atingido pelo maior mal
que pode ocorrer a homem de estudos, tornou-se quase cego, perdeu a memória e a
lucidez intelectual. E extinguiu-se em 1804, reduzido quase que a uma vida
larvar.
A riquíssima anedótica que floresceu sobre ele o mostra em seus traços
mais característicos: nunca se afastou das proximidades de Königsberg, era prussianamente
metódico, muito escrupuloso e extremamente apegado aos hábitos; mantinha o
despertar matinal sempre à mesma hora (às cinco!) e sempre à mesma hora, com
regularidade cronométrica, o passeio da tarde; era sempre pontualíssimo às
aulas e sempre cumpria os seus deveres.
Em uma famosa carta, Herder o descreve muito bem: testa larga, como que
construída de propósito para pensar; sempre sereno, arguto e erudito; aberto a
todas as instâncias da cultura contemporânea. Kant sabia valorizar tudo e tudo canalizava
"para um conhecimento sem preconceitos da natureza e para
o valor moral dos homens".
Esta última afirmação é a que melhor resume Kant, que, falando de si
mesmo, nos diz a mesma coisa com palavras um pouco diferentes, na conclusão de
sua Crítica da razão pura: “Duas coisas enchem-me o espírito de admiração e
reverência sempre nova e crescente, quanto mais freqüente e longamente o
pensamento nelas se detém: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de
mim.”
E essa afirmação, “o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de
mim”, foi inscrita inclusive em seu túmulo. Com efeito, ela constitui a marca
mais autêntica tanto do homem como do filósofo Emanuel Kant, como veremos.
1.2. Os escritos de Kant
A riquíssima produção de Kant divide-se em dois grandes grupos de
escritos: os "pré-críticos" e (como já observávamos) os chamados
“críticos”, ou seja, aqueles em que Kant expõe a sua filosofia “crítica”, já
perfeitamente delineada e madura.
A série dos escritos pré-críticos termina com a Dissertação de 1770, que
marca a aquisição parcial daquele ponto de vista que, aprofundado nos anos
seguintes, levará em 1781 à perfeita formulação do criticismo transcendental,
que se desdobra depois em todos os seus aspectos nas obras posteriores.
Eis a relação dos principais escritos, precedidos do ano de publicação:
a) Escritos pré-críticos
1746: Pensamentos sobre a verdadeira avaliação das forças vivas.
1755: História natural universal e teoria do
céu.
1755: De igne (dissertação de doutorado).
1755: Principiorum primorum cognitionis metaphysicae nova
delucidatio (tese de docência universitária).
1756: Os terremotos.
1756: Teoria dos ventos.
1756: Monadologia física.
1757: Projetos de um colégio de geografia física.
1759: Sobre o otimismo.
1762: A falsa sutileza das quatro figuras silogísticas.
1763: O único argumento possível para demonstrar a existência de
Deus.
1763: Ensaio para introduzir em metafísica o conceito de
grandezas negativas.
17 64: Observações sobre o sentimento do belo e do sublime.
1764: Pesquisa sobre a evidência dos princípios da teologia
natural e da moral.
1665: Informe sobre a orientação das lições para o semestre de
inverno 1765-1766.
1766: Sonhos de um visionário esclarecidos com os sonhos da
metafísica.
1770: De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et
principiis (com esta obra, Kant tornou-se professor ordinário).
b) Escritos críticos
1781: Crítica da razão pura.
1783: Prolegômenos a toda metafísica futura que queira se
apresentar como ciência.
1784: Idéias de uma história universal do ponto de vista
cosmopolita.
17 84: Resposta à pergunta: O que é o iluminismo?
1785: Fundamentação da metafísica dos costumes.
1786: Princípios metafísicos da ciência da natureza.
1788: Crítica da razão prática.
1790: Crítica do juízo.
1793: A religião nos limites da pura razão.
1795: Pela paz perpétua.
1797: A metafísica dos costumes.
1798: O conflito das faculdades.
1802: Geografia física.
1803: A pedagogia.
1.3. O itinerário espiritual de Kant nos escritos pré-críticos
Existe uma afirmação de Kant que lança uma luz particular sobre o
movimento geral do seu pensamento e sobre o sentido do seu itinerário
espiritual: “a metafísica, pela qual estou destinado a ser apaixonado..."
Trata-se de um “destino” no qual o apaixonado não alcançou o objeto do seu amor
ou, pelo menos, não o alcançou senão de modo inteiramente insólito. Contudo,
resta o fato de que Kant lutou durante toda a sua vida para dar à metafísica um
fundamento científico e que a própria Crítica foi concebida
com esse fim, ainda que os seus resultados tenham levado a metas diferentes.
Mas tentemos reconstruir, ainda que de modo sucinto, o iter espiritual
do nosso filósofo.
Na universidade, quando estudante, Kant interessava-se muito pelas aulas
de Martinho Knutzen, professor de lógica e metafísica, com o qual aprendeu a
doutrina de Newton e a metafísica leibniziano-wolffiana. E são exatamente esses
os principais axiais de interesse em tomo dos quais giram as temáticas da maior
parte dos escritos pré-críticos, que, através de oscilações, repensamentos e
aprofundamentos de vários gêneros, levaram lentamente à criação da filosofia
crítica. Cada vez mais, Kant amadurecida a convicção de que a nova ciência
(particularmente a física de Newton) já havia alcançado tal maturidade e
riqueza de resultados e tal rapidez e especificidade de método que era
necessário desligá-la da metafísica, à qual se queria relacioná-la e à qual o
próprio Kant havia acreditado poder relacioná-la. Ademais, o apaixonado pela
metafísica estava amadurecendo a idéia de que a metafísica devia ser repensada
a fundo e reestruturada metodologicamente, a fim de alcançar aquele rigor e
aquela concretude de resultados que a física havia alcançado.
Kant chega lentamente a essas conclusões, inicialmente ocupando-se de
pesquisas científicas, quando não explorando as eventuais possibilidades de
conciliação entre física e metafísica, depois elevando-se de modo sempre mais
claro, através do exame dos fundamentos da metafísica, à consciência do
problema metodológico geral relativo aos fundamentos do conhecimento, do qual
nascerá a Crítica.
Dentre as obras nas quais Kant se ocupa dos problemas científicos
predominantemente na condição de cientista, recordamos a História
natural universal e teoria do céu, de 1755, que se tornou famosa porque
contém os fundamentos da hipótese segundo a qual o universo teria sua origem em
uma nebulosa, hipótese que teria grande sucesso, sobretudo na reformulação que
foi feita por Laplace em sua Exposição do sistema do mundo, em
1796. Laplace, que escreveu a sua Exposição mais de quarenta
anos depois da publicação da História de Kant, não sabia que havia sido
precedido por ele. E isso aconteceu por um fato curioso. A História
natural universal e teoria do céu havia saído anonimamente, mas no ano
seguinte todos já sabiam que era de Kant. Entretanto, ela teve apenas escassa
circulação, porque o editor faliu e as obras por ele publicadas foram
apreendidas. Por tal motivo (a independência da descoberta pelos dois autores),
essa hipótese foi denominada “teoria de Kant-Laplace". Mas é conveniente
recordar que, em 1761, G. E. Lambert também havia sustentado uma concepção
análoga. Ademais, a tentativa kantiana de explicar mecanicamente o mundo nessa
obra se limita aos corpos físicos. Com efeito, por um lado, ele destaca
expressamente que ela não vale para explicar os organismos (os
princípios mecânicos “não estão em condições de explicar nem mesmo o nascimento
de uma lagarta ou de um tufo de erva"), e, por outro lado, que ele não
apenas não nega Deus, mas, ao contrário, supõe a sua obra criadora (a nebulosa
originária não nasce do nada, mas tem origem em um ato criador de Deus, assim
como as leis racionais que governam o mundo).
Do mesmo ano de 1755 é a dissertação metafísica Principiorum
cognitionis metaphisicae nova delucidatio, na qual Kant tenta uma revisão
dos princípios primeiros da metafísica leibniziano-Wolffiana. Vejamos as
novidades que Kant apresenta nessa obra. Antes de mais nada, ele aceita a tese
de que os princípios metafísicos basilares são dois: a) o de identidade (ao qual está subordinado o da
não-contradição) e b) o de razão suficiente. Entretanto, ele
procura fundamentar melhor do que havia sido no passado esse segundo princípio,
com base na seguinte prova: todo ente contingente supõe uma “razão antecedente"
ou “causa", por que, se não houvesse, seria necessário concluir que tal
ente é causado por sua própria existência, o que é impossível, porque então não
seria mais um ser contingente, mas um ser necessário. Ademais, Kant
acrescenta outros dois princípios a esses dois primeiros: c) o princípio de sucessão (segundo o qual só
pode ocorrer mudança nas coisas admitindo-se a sua recíproca conexão) e d) o princípio de co-existência (segundo a qual toda
coisa só pode ter relações e conexões com as outras se admite uma dependência
comum de um princípio primeiro). Nessas tentativas de aprofundar e fundamentar
os princípios primeiros da metafísica, além de sua adesão à metafísica, está
claramente visível aquele desejo de uma fundamentação mais adequada, de que já
falamos.
A linha de desenvolvimento do pensamento de Kant fica mais evidente em
suas publicações de 1756. Duas dizem respeito a temas científicos (Os
terremotos e a Teoria dos Ventos) e a outra leva um
título que, por si só, já é verdadeiro programa: Utilidade da união da metafísica e da geometria na filosofia da natureza. Primeiro ensaio: monadologia física. Kant ainda aceita a validade da
metafísica para a determinação dos fundamentos últimos da realidade.
Entretanto, a) corrige a teoria das mônadas de Léibniz com o objetivo de mediar
a física newtoniana e a metafísica, propondo a substituição da mônada espiritual por uma mônada física, que, com sua ação ou força repulsiva, “estende-se” em um “pequeno
espaço”, constituindo assim (na interação com as outras mônadas) o próprio
espaço. Ademais, b) reafirma energicamente, ao mesmo tempo, a necessidade de
que a metafísica se valha da contribuição da experiência e da geometria. Como
se vê, Kant ainda permanece leibniziano, visto que está convencido de poder
reduzir o espaço como “fenômeno” de realidade metafenomênica.
A têmpera leibniziana também pode ser encontrada no escrito Sobre o otimismo. O terremoto de Lisboa inspirara a Voltaire reflexões amargamente sarcásticas sobre o otimismo que vê neste nosso mundo o
“melhor dos mundos possíveis”. Kant, ao contrário, sustenta que o otimismo pode
ser justificado, desde que não se limite a visão das coisas em uma ótica
parcial, mas se eleve a uma visão do conjunto, ou seja, a uma visão do mundo
como totalidade: aquilo que, visto pela ótica do indivíduo, pode parecer injustificável e
incompreensível, não o é, se considerado pela ótica do conjunto.
Em 1762, ocorre uma reviravolta bastante brusca na parábola evolutiva,
do pensamento kantiano. Provavelmente, essa reviravolta esta ligada à leitura e
à meditação de Hume, que, como Kant diz expressamente, teve o mérito de
despertá-lo do “sono dogmática" com suas críticas radicais aos princípios
da metafísica. Essa reviravolta se manifesta de foram eloqüente no escrito A
falsa sutileza das quatro figuras silogísticas e nas duas obras de
1763: Único argumento possível para uma demonstração da existência de
Deus e Ensaio para introduzir na metafísica o conceito das
grandezas negativas.
Nesses escritos (sobretudo no primeiro e no último), Kant destaca que a
lógica formal tradicional não é uma lógica do real, porque fica fechada em
sutil jogo formal e, portanto, não capta o ser; assim, o principio de
identidade não está em condições de explicar fundamento real das coisas. Às abstrações
da lógica formal e aos "castelos de areia" da metafísica, Kant parece
preferir decididamente os resultados alcançados pelas novas ciências. A
filosofia deveria assumir algumas verdades da geometria.
No Único argumento, aliás, a metafísica chega a ser
declarada uma espécie de "abismo sem fundo” e como que “um oceano sem
praias e nem faróis . Kant chega a refutar as tradicionais provas a existência
de Deus (refutação que ele retomará na Crítica a razão pura e
sobre :a qual falaremos adiante). E propõe uma nova prova, chamada "dos
possíveis”, embora sem imputar-lhe particular importância, pois, precisa ele, a
Providência não quis ligar conhecimento tão importante a sutis raciocínios, mas
sim à natural inteligência dos homens".
Esse argumento - que, aliás, Kant depois deixaria de lado - pode ser
resumido como segue: o possível não é apenas aquilo que não é contraditório, o
que nada mais é do que a condição formal da possibilidade; com efeito, o
possível supõe ademais que existam realmente os elementos não contraditórios,
que, em certo sentido, são como que a matéria da possibilidade. Analogamente, o necessário não é somente aquilo cujo
contraditório é formalmente impossível, mas também aquilo cujo contraditório é realmente impossível. Ora, diz Kant, é impossível
que nada seja possível. Mas o possível supõe o ser como a sua condição, como
vimos. E, como o ser é condição sem a qual não se dá o possível, então existe
algo que é “absolutamente necessário”. Em suma: o possível supõe
necessariamente o necessário como sua condição - e esse necessário é Deus.
Em 1764, são publicadas a Pesquisa sobre a
evidência dos princípios da teologia natural e da moral e as Observações sobre o belo e o sublime. Na primeira dessas
obras, Kant reafirma a idéia que já conhecemos bem, isto é, de que a metafísica
deve trabalhar com o mesmo método que Newton introduziu na física e que se
revelou tão fecundo, ou seja, deve buscar as regras segundo as quais se
desenvolvem os fenômenos “com experiência segura” e com “o auxílio da geometria”.
Mas o escrito é importante porque Kant separa a ética da metafísica e proclama
que a faculdade do conhecimento teórico não é a mesma faculdade com que
captamos o bem: o bem é captado por sentimento moral. Kant diz que essa
distinção, na história das idéias, só ficou clara recentemente: trata-se da
doutrina dos moralistas ingleses Shaftesbury e Hutcheson, que o nosso filósofo
acolhe também no segundo escrito. E assim vai se delineando a linha de
pensamento que levaria à Crítica da razão prática e à Crítica do juízo.
E muito interessante o Informe sobre a orientação das lições
do semestre do inverno 1765-1766, no qual Kant enuncia os critérios nos
quais se inspira o seu ensino de filosofia: não se trata de ensinar de modo
dogmático uma filosofia como algo acabado, mas sim de ensinar a filosofar, ou
seja, a pensar filosoficamente. E isso, observa Kant, assim como não é
dogmatismo, também não é ceticismo, mas representa um modo crítico e
construtivo de proceder.
Em 1766, saiu o mais curioso dos escritos pré-críticos, sob o título Os sonhos da metafísica explicados com os sonhos de um visionário. O sueco E.
Swedenborg havia publicado uma obra intitulada Arcana coelestia, na qual sustentava
estar em contato com os espíritos dos falecidos e ter obtido informações sobre
o além através deles. Kant recebeu prementes solicitações para que se
pronunciasse sobre essas teorias de Swedenborg, que despertavam grande
curiosidade. Com argúcia e ironia, Kant diz que as teorias de Swedenborg nada
mais são do que sonhos. E a característica dos sonhos é pertencer unicamente a
quem os sonha, permanecendo fechados em um mundo privado e não transmissível.
Sendo assim, então, os metafísicos se assemelham a Swedenborg, com suas
doutrinas sobre o reino dos espíritos (como é o caso, por exemplo, das mônadas
de Leibniz). As doutrinas metafísicas são “sonhos racionais” e, como tais, são
privadas e não transmissíveis. A ciência newtoniana, ao contrário, é objetiva e
pública, ou seja, comum a todos. Kant reafirma o conceito segundo o qual a
ética não necessita da metafísica, porque pode se basear na fé moral (o
sentimento moral). Desse modo, a metafísica não parece ser mais para Kant uma
ciência do númeno, mas sim uma ciência dos "limites da razão". E, no
entanto, apesar de tudo, como observaram os estudiosos, é nessa obra
“antimetafísica" que Kant confessa: "a metafísica, pela qual estou
destinado a ser apaixonado..."
1.4. A “grande luz” de 1769 e a Dissertação de 1770
Kant escreveu que o ano de 1769 lhe havia trazido “uma grande luz”. E
essa grande luz consistiu no descerrar-se da perspectiva revolucionária, ou
seja, daquela que ele chamaria de sua “revolução copernicana”, que lhe
permitiria a superação tanto do racionalismo como do empirismo, tanto do
dogmatismo como do ceticismo, abrindo nova era para o filosofar. Mas essa
revolução implicava num repensamento radical de todos os problemas investigados
por ele até o momento.
Em 1770, vagou a cátedra de lógica e metafísica. Assim, Kant teve que
escrever a sua dissertação De mundi sensibilis atque
intelligibilis forma et principiis como título para se
apresentar ao concurso, muito embora a "grande luz” só houvesse iluminado
uma parte dos problemas. Desse modo, nasceu uma obra a meio caminho entre o
velho e o novo, mas interessantíssima, porque constitui uma espécie de “balanço
intermediário”.
A Dissertação se apresenta como uma “propedêutica” da metafísica, entendida como
conhecimento dos princípios do intelecto puro. Portanto, inicialmente Kant quer
estabelecer a diferença existente entre 1) conhecimento sensível e 2) conhecimento inteligível.
1) O primeiro é constituído pela “receptividade" do sujeito, que
sofre certa impressão pela presença do objeto. Como tal, o conhecimento
sensível nos representa as coisas uti apparent e não sicut sunt, ou seja, as coisas
como elas aparecem para o sujeito e não como são “em si”. Por isso nos
apresenta fenômenos, que quer dizer
precisamente (do grego phainesthai) as coisas como elas
se manifestam ou aparecem (tese que Kant não sente a necessidade de demonstrar,
porque constituía lugar comum em sua época).
2) Já o conhecimento intelectivo é a faculdade de representar aqueles
aspectos das coisas que, por sua própria natureza, não podem ser captados com
os sentidos. Como são captadas pelo intelecto, as coisas são númenos (do grego noein, que significa
"pensar”), dando-nos as coisas sicut sunt. São conceitos do
intelecto, por exemplo, os de “possibilidade”, “existência”, “necessidade"
e semelhantes, que, obviamente, não derivam dos sentidos. E é sobre esses
conceitos que se alicerça a metafísica.
Deixando de lado a questão do conhecimento intelectivo, a respeito do
qual Kant se apresenta ainda um tanto incerto e oscilante, evidentemente porque
ainda não teve tempo de estender também a ela a “grande luz, vejamos então a
novidade apresentada a propósito do conhecimento sensível. Este conhecimento é intuição, enquanto é conhecimento imediato. Mas todo
conhecimento sensível ocorre no “espaço” e no “tempo”, posto que não é possível
se dar alguma representação sensível senão espacial e temporalmente
determinada.
O que são, então “espaço” e “tempo”? Não são, como se considerava,
propriedades das coisas, ou seja, realidades ontológicas (o newtoniano Clarke
as transformara, inclusive em atributos divinos), mas também não são simples
reações entre os corpos (como queria Leibniz): elas são as formas da sensibilidade. Assim, ao invés de modos de ser das
coisas, o espaço e tempo se configuram como modos como o
sujeito capta sensivelmente as coisas. Não é o sujeito que se adequa ao
objeto no conhecimento, mas ao contrário, é o objeto que se adequa ao sujeito.
Essa é a “grande luz”, ou seja, a grande intuição de Kant, que agora devemos
ver em seu pleno desdobramento na Crítica da razão pura.
2. A Crítica da razão pura
2.1. O problema crítico: a síntese a priori e o seu fundamento
Kant achava que podia concluir rapidamente (logo depois da Dissertação) uma obra na qual a “grande luz” advinda em 1769 pudesse iluminar todos os problemas. No entanto, essa obra
exigiu nada menos que doze anos de meditação: a Crítica da razão pura só viu a luz em 1781.
Em 1783, Kant publicava os Prolegômenos a toda metafísica futura
que queira se apresentar como ciência, para esclarecer a Crítica, que não fora compreendida, e, em 1787, publicaria a segunda edição da
Crítica, com algumas importantes explicações.
Com efeito, nesse período de intenso trabalho, Kant conseguiu desfazer
os nós da meada de problemas que o vinham reocupando, encontrando
finalmente o fio da meada. Todos esses problemas dependem de problema
único e fundamental, só podendo ser resolvidos precisamente com a solução desse
problema.
Kant descobriu que a natureza do conhecimento científico (ou seja a natureza do verdadeiro conhecimento) consiste em ser uma “síntese a priori” e que, por isso, tudo, está no descobrir qual é o fundamento que torna possível a “síntese a priori". Essa é a novidade da Crítica, à qual a Dissertação de 1770 não acenava; Conseqüentemente, conseguindo-se estabelecer qual a natureza da "síntese a priori”, pode-se resolver com facilidade o problema de como e por que são possíveis as ciências matemático-geométricas e a ciência física e se poderá, por fim, resolver o problema de se é ou não possível uma “metafísica como ciência” ou então, se isso não for possível, por que então a razão humana se sente tão irresistívelmente atraída pelas questões metafísicas.
Kant descobriu que a natureza do conhecimento científico (ou seja a natureza do verdadeiro conhecimento) consiste em ser uma “síntese a priori” e que, por isso, tudo, está no descobrir qual é o fundamento que torna possível a “síntese a priori". Essa é a novidade da Crítica, à qual a Dissertação de 1770 não acenava; Conseqüentemente, conseguindo-se estabelecer qual a natureza da "síntese a priori”, pode-se resolver com facilidade o problema de como e por que são possíveis as ciências matemático-geométricas e a ciência física e se poderá, por fim, resolver o problema de se é ou não possível uma “metafísica como ciência” ou então, se isso não for possível, por que então a razão humana se sente tão irresistívelmente atraída pelas questões metafísicas.
Mas, como se trata de ponto básico e como de sua compreensão depende a
compreensão de toda a filosofia de Kant, é preciso aprofundar
convenientemente essa questão.
O conhecimento científico (ou seja, o verdadeiro conhecimento) consta fundamentalmente de proposições ou de juízos universais e necessários e, ainda por cima, incrementa continuamente o conhecer. Então, que tipos de juízos são aqueles de que se vale a ciência?
O conhecimento científico (ou seja, o verdadeiro conhecimento) consta fundamentalmente de proposições ou de juízos universais e necessários e, ainda por cima, incrementa continuamente o conhecer. Então, que tipos de juízos são aqueles de que se vale a ciência?
Para responder a esse problema, é preciso examinar a teoria dos
juízos, ver quais e quantos são e, depois, estabelecer quais deles são
próprios da ciência. Um juízo consiste na conexão de dois conceitos, dos
quais um (A) cumpre a função de sujeito e o outro (B) cumpre a função
de predicado.
1) O conceito que funciona como predicado (B) pode estar contido no
conceito que funciona como sujeito (A) e, portanto, pode ser extraído por
pura análise do sujeito. Então, o juízo é “analítico”, como quando, por
exemplo, digo que “todo corpo é extenso". O conceito de
"extensão", com efeito, é sinônimo de “corporeidade” e, assim,
quando digo “todo corpo é extenso” nada mais faço do que explicar e
explicitar aquilo que se entende por “corpo”.
2) Mas o conceito que funciona como predicado (B) também pode não
se encontrar implícito no conceito que funciona como sujeito (A) e, no
entanto, ser-lhe conveniente. Então, o juízo é “sintético”, porque o
predicado (B) acrescenta ao sujeito (A) algo que não é extraível dele por
mera análise. Por exemplo, quando digo “todo corpo é pesado"
pronuncia um juízo sintético, porque o conceito de "pesado" não
pode ser extraído por pura análise do conceito de "corpo", tanto que,
desde Aristóteles, por muito tempo considerou-se que alguns corpos (terra e
água) fossem pesados por sua própria natureza outros corpos (ar e
fogo), por sua natureza, ao contrário, fossem leves.
1) O juízo analítico é um juízo que formulamos a priori,
sem necessidade de recorrer à experiência, dado que, com ele, expressamos
de modo diferente o mesmo conceito que expressamos no sujeito.
Conseqüentemente, ele é universal e necessário, mas não amplificador do
conhecer. Portanto, a ciência se vale amplamente desses juízos para
esclarecer e explicar muitas coisas, mas não se baseia neles quando
amplia o seu próprio conhecimento. O juízo típico da ciência, portanto,
não pode ser o juízo analítico a priori.
2) O juízo sintético, ao contrário, amplia sempre o conhecimento, visto
que nos diz sempre algo de novo do sujeito, que não estava contido
implicitamente nele. Ora, os juízos sintéticos mais comuns são aqueles que
formulamos baseando-nos na experiência, ou seja, os juízos experimentais.
Os juízos experimentais, portanto, são todos sintéticos e, como tais,
“ampliadores do conhecer". Entretanto, a ciência não pode se basear
neles porque, precisamente por dependerem da experiência, são todos a
posteriori e, como tais, não podem ser universais e necessários. Dos
juízos de experiência podemos, quando muito, extrair algumas generalizações,
mas nunca a universalidade e a necessidade.
3) Portanto, está claro que a ciência se baseia em um terceiro tipo
de juízos, ou seja, naquele tipo de juízo que, a um só tempo, une a
aprioridade, ou seja, a universalidade e a necessidade, com a fecundidade,
ou seja, a "sinteticidade”. Os juízos constitutivos da ciência são
juízos "sintéticos a priori”. Kant está certíssiino de que assim é.
Todas as operações aritméticas, por exemplo, são “síntese a priori”. O
juízo 5 + 7 = 12 não é analítico, mas sintético: com efeito, nós
recorremos aos dedos das mãos quando contamos (deve-se pensar também nas
operações que realizamos com o ábaco), ou seja, à intuição, graças à qual
nós vemos nascer (sinteticamente) o novo número correspondente à
soma.
O mesmo vale para os juízos da geometria. Escreve Kant:
“A proposição de que a linha reta é a mais breve entre dois pontos
e uma proposição sintética, porque o conceito de reta não
contém determinações de quantidade, mas só de qualidade." O conceito
de linha “mais breve" (qualidade), portanto, é totalmente
acrescentado, não podendo ser extraído por nenhuma análise do conceito
de “linha reta”. Entretanto, aqui, deve-se recorrer à ajuda da intuição, somente
através da qual é possível a síntese.
Analogamente, o juízo da física segundo o qual “em todas
as mudanças do mundo corpóreo a quantidade da matéria
permanece invariada" é um juízo sintético a priori, porque, como diz
Kant, “no conceito de matéria eu não penso a permanência, mas somente
a sua presença no espaço, no sentido que o preenche. Por isso,
eu ultrapasso realmente o conceito de matéria para acrescentar-lhe a
priori algo que eu não pensava naquele conceito. Portanto, a proposição
não é analítica, mas sintética e, no entanto, pensada a priori". E o mesmo
vale para todas as proposições fundamentais da física. E também a
metafísica, pelo menos em suas pretensões, opera com juízos sintéticos a
priori - trata-se, porém, de ver se com fundamento ou então sem
fundamento.
E assim chegamos ao ponto mais importante: uma vez estabelecido que o saber científico é constituído por juízos sintéticos a priori, se descobrirmos qual é o fundamento da síntese a priori poderemos resolver todos os problemas relativos ao conhecimento humano, à sua estatura, aos seus âmbitos legítimos, aos seus limites e ao seu horizonte. Em suma, poderemos estabelecer em geral o valor e os limites do conhecimento humano. E é precisamente isso que Kant se propõe a fazer com a sua Crítica.
E assim chegamos ao ponto mais importante: uma vez estabelecido que o saber científico é constituído por juízos sintéticos a priori, se descobrirmos qual é o fundamento da síntese a priori poderemos resolver todos os problemas relativos ao conhecimento humano, à sua estatura, aos seus âmbitos legítimos, aos seus limites e ao seu horizonte. Em suma, poderemos estabelecer em geral o valor e os limites do conhecimento humano. E é precisamente isso que Kant se propõe a fazer com a sua Crítica.
Mas procuremos formular melhor a questão, relacionando-a também com
o problema do fundamento das outras formas de juízo.
1) O fundamento dos juízos analíticos a priori é logo estabelecido:
tratando-se de juízos nos quais o sujeito e o predicado se equivalem,
então, quando os formulamos, nós nos baseamos no princípio de identidade e
de não-contradição. Se, por exemplo, eu dissesse que o corpo não é
extenso, estaria me contradizendo, como se dissesse que o corpo não é
corpo (dado que corporeidade = extensão).
2) O fundamento dos juízos sintéticos a posteriori, visto que são
juízos experimentais, é a experiência, por definição.
3) Os juízos sintéticos a priori não se baseiam no princípio
de identidade (nem no correlato princípio de não-contradição)
porque aquilo que eles conectam não é um predicado igual (correspondente)
ao sujeito, mas diferente; também não se baseiam na experiência, porque são a
priori, ao passo que tudo aquilo que deriva da experiência é a posteriori
e, ademais, são universais e necessários, ao passo que tudo aquilo que
deriva da experiência, como dissemos, nunca é universal nem necessário.
Eis, então, o problema de Kant: “O que é aqui a incógnita X, na
qual se apóia o intelecto quando crê encontrar fora do conceito A um
predicado B, estranho a ele e que, apesar disso, acredita estar conjugado
a ele?".
A descoberta dessa incógnita X constitui o sumo do criticismo, vale
dizer, aquilo a que Kant foi levado pela “grande luz"
de 1769. Examinemos, portanto, como é que Kant chegou à
solução dessa incógnita.
2.2. A “revolução copernicana" realizada por Kant
Como ciência que determina a priori (e não empiricamente) o seu
sujeito, a matemática já se constituiu há muito tempo, "com o
maravilhoso povo dos gregos”, por obra de um único homem. Inicialmente, realça Kant, a matemática teve que proceder por meio
de tentativas incertas (especialmente entre os egípcios), mas depois, em
certo momento, realizou-se uma transformação definitiva, que deve “ser
atribuída a uma revolução, desencadeada pela feliz idéia de um só homem,
com uma pesquisa tal que, depois dela, o caminho a seguir não poderia mais
ser perdido e a estrada segura da ciência ficava aberta e traçada para
todos os tempos e por trajeto infinito".
Com efeito, prossegue Kant, “o primeiro que demonstrou o triângulo
isósceles (tenha se chamado Tales ou como se quiser que tenha se chamado)
foi atingido por uma grande luz, porque compreendeu que não devia seguir passo
a passo aquilo que via na figura nem se apegar ao simples conceito dessa figura
como que para apreender as suas propriedades, mas que, por meio daquilo
que, pelos seus próprios conceitos, pensava e representava (por construção)
devia produzi-la e que, para saber com segurança alguma coisa a priori,
não devia atribuir a essa coisa senão aquilo que brotava necessariamente
daquilo que, segundo o seu conceito, ele próprio lhe havia posto". Em
suma, a geometria nasceu quando Tales (ou outro alguém em seu lugar)
compreendeu que ela era uma criação da mente humana e que não dependia de
nada mais além da mente humana.
Kant observa ainda que, muito tempo depois, o mesmo aconteceu com a
física, que surgiu como ciência graças a uma “revolução” realizada no modo
de pensar anterior. Essa revolução deu-se através de um deslocamento do
epicentro da pesquisa física dos objetos para a razão humana e com a
descoberta de que a razão encontra na natureza aquilo mesmo que nela
coloca.
Eis as palavras de Kant, muito importantes: “Quando Galileu fez
suas esferas rolarem sobre um plano inclinado, com um peso escolhido por
ele mesmo, e Torricelli fez suportar no ar um peso que ele próprio já
sabia ser igual ao de uma coluna d'água conhecida e quando, mais tarde,
Stahl transformou os metais em cal e esta de novo em metal, retirando-lhe
ou acrescentando-lhe alguma coisa, isso foi uma revelação luminosa para
todos os investigadores da natureza. Eles compreenderam que a razão vê
só aquilo que ela própria produz segundo o seu desígnio e que, com
os princípios dos seus juízos segundo leis imutáveis, ela deve estar
na frente e obrigar a natureza a responder às suas perguntas e,
por assim dizer, não se deixar guiar por ela com rédeas, porque,
caso contrário, feitas ao acaso e sem um desígnio
preestabelecido, nossas observações não corresponderiam a uma lei
necessária, que, no entanto, a razão procura da qual necessita.
Portanto, é necessário que a razão se apresente à natureza tendo na mão
os princípios segundo os quais somente é possível que os
fenômenos concordantes tenham valor de lei e na outra o experimento que
ela imaginou segundo esses princípios, para ser instruída por
ela, naturalmente, mas não na qualidade de aluno que escuta tudo
o que apraz ao professor e sim na qualidade de juiz, que obriga
as testemunhas a responderem às perguntas que ele lhes dirige.
A física, portanto, é devedora de tão feliz revolução realizada em
seu método por essa única idéia de que a razão deve (sem fantasiar
em torno dela) procurar na natureza, em conformidade com aquilo
que ela própria coloca, aquilo que deve apreender dela e da qual
nada poderia saber por si mesma. E assim, pela primeira vez, a
física pôde ser colocada no caminho seguro da ciência, do qual, há muitos séculos,
ela nada mais era do que uma simples apalpadela.”
Na metafísica, porém, registra-se um contínuo caminhar tateando e
uma grande confusão. Em outras palavras, a metafsrca permaneceu na fase
prescientífica. Como é possível? Será que é impossível que ela se constitua
como ciência? E, se assim fosse, por que então a natureza deu à razão
humana tão forte tendência aos problemas metafísicos? Até agora temos
errado o caminho ou será que não há caminho que leve a metafísica a se
constituir como ciência?
A resposta a esse quesito, que coincide com a descoberta
da incógnita X, de que já falamos, foi adquirida por Kant através
de uma “revolução” que ele próprio definiu como “revolução
copernicana".
Até então, se havia tentado explicar o conhecimento supondo que o
sujeito devia girar em torno do objeto. Mas, como desse modo muitas coisas
permaneciam inexplicadas, Kant inverteu os papéis, supondo que o objeto é
que deveria girar em torno do sujeito.
Copérnico havia feito uma revolução análoga: como, mantendo a Terra
firme no centro do universo e fazendo os planetas girarem em tomo dela,
muitos fenômenos permaneciam inexplicados, ele pensou em mover a Terra e
fazê-la girar em torno do Sol. Deixando de lado a metáfora, Kant considera
que não é o sujeito que, conhecendo,
descobre as leis do objeto, mas sim, ao contrário, que é o
objeto, quando é conhecido, que se adapta às leis do sujeito que o
recebe cognoscitivamente.
Vejamos a página de Kant que abriu uma nova época no filosofar e que
teve conseqüências de alcance histórico e teórico incalculáveis: "Até
agora, admitia-se que todo o nosso conhecimento se devia regular pelos
objetos, mas todas as tentativas de estabelecer em torno deles alguma
coisa a priori, por meio de conceitos, com os quais se teria podido
ampliar o nosso conhecimento, assumindo tal pressuposto, não conseguiram nada.
Portanto, finalmente, faça-se a prova de ver se não seríamos
mais afortunados nos problemas da metafísica formulando a hipótese
de que os objetos devem se regular pelo nosso conhecimento, o que
se coaduna melhor com a desejada possibilidade de um conhecimento a
priori, que estabeleça alguma coisa em relação aos objetos antes que eles
nos sejam dados. Aqui, é exatamente como na primeira idéia de Copérnico,
que, vendo que não podia explicar os movimentos celestes admitindo que todo o
exército dos astros girasse em torno do espectador, tentou ver se não teria
melhor êxito fazendo girar o observador e deixando os astros em repouso.
Ora, na metafísica, pode-se pensar em fazer uma tentativa semelhante
(...).”
Com sua “revolução”, portanto, Kant supôs que não é a
nossa intuição sensível que se regula pela natureza dos objetos, mas
que são os objetos que se regulam pela natureza de nossa
faculdade intuitiva. Analogamente, ele supõe que não é o intelecto que
deve se regular pelos objetos para extrair os conceitos, mas, ao
contrário, que são os objetos, enquanto são pensados, que se regulam
pelos conceitos do intelecto e se coadunam com eles. Em suma,
para concluir, "das coisas, nós só conhecemos a priori aquilo que
nós mesmos nelas pomos”.
Agora, então, está claro qual é, para Kant, o
"fundamento" dos juízos sintéticos a priori: é o próprio sujeito
que sente e pensa, ou melhor, é o sujeito com as leis da sua sensibilidade
e do seu intelecto, como passaremos a ver melhor e mais em
pormenores.
Mas, antes de passar ao exame da sensibilidade e das suas leis, é
preciso ainda esclarecer o significado do termo “transcendental", que
atravessa de um lado a outro a Crítica da razão pura e que tem importância
basilar.
Kant usa esse termo com muita freqüência, a ponto de abusar e em
várias acepções (alguns estudiosos, apenas na Crítica da razão pura,
contaram nada menos que treze acepções diferentes), mas somente uma é a
acepção verdadeiramente peculiar e inteiramente nova. Em sua nova acepção,
Kant define o termo do seguinte modo: "Chamo 'transcendental' todo
conhecimento que não se relaciona com objetos, mas sim com o nosso modo de
conhecer os objetos, enquanto for possível a priori."
Muitos acharam essa concepção muito obscura e alguns contemporâneos
a subentenderam grosseiramente. Mas, levando-se em conta o que já
dissemos, é possível esclarecê-la com facilidade: os “modos de conhecer a
priori do sujeito" são a sensibilidade e o intelecto; portanto, Kant
chama de transcendentais os modos ou as estruturas da sensibilidade e do
intelecto. Essas estruturas, portanto, enquanto tais, são a priori,
precisamente porque são próprias ao Sujeito e não do objeto, mas são
estruturas de tal natureza que representam as condições sem as quais não é
possível nenhuma experiência de nenhum objeto. O transcendental, portanto,
é a condição da cognoscibilidade dos objetos (a condição da intuibilidade
e da pensabilidade dos objetos).
Uma referência à "revolução copernicana” tornará mais evidente
o que estamos dizendo. Para a metafísica clássica, “transcendentais” eram as
condições do ser enquanto tal, ou seja, aquelas condições sem as quais
deixa de existir o próprio objeto; mas, depois da revolução kantiana, não
é mais possível falar de condições do objeto em si, mas somente de
condições do objeto-em-relação-ao-Sujeito. Em conclusão, “transcendental” é
aquilo que o Sujeito põe nas coisas no ato mesmo de conhecê-las, no
sentido que já explicamos e que pouco a pouco iremos esclarecendo.
2.3. A estética transcendental (doutrina do conhecimento sensível e
de suas formas a priori)
O nosso conhecimento se divide em “dois ramos”, desde sempre admitidos
pela filosofia, ou seja, conhecimento dos “sentidos” e conhecimento do
“intelecto”. Essas duas formas de conhecimento não são, como queria Leibniz,
diferentes só por grau (conhecimento obscuro o primeiro e conhecimento claro o
segundo), mas também por natureza. Entretanto, Kant também admite “que provavelmente
brotam de uma raiz comum, mas desconhecida para nós”. Os objetos nos são
“dados" pelos sentidos, ao passo que são “pensados” pelo intelecto.
Então, será preciso estudar separadamente as duas formas do
conhecimento. A investigação sobre a sensibilidade deve ser objeto da primeira
parte da abordagem e a investigação sobre o intelecto da segunda, porque primeiro os objetos devem ser dados para
depois serem pensados.
A doutrina do sentido e da sensibilidade é chamada por Kant de
“estética”, não no sentido hoje usual do termo, mas no seu significado
etimológico: em grego, aísthesis significa “sensação” e “percepção sensorial". A “estética transcendental”, portanto, é a doutrina
que estuda as estruturas da sensibilidade, o modo como o homem recebe as
sensações e como se forma o conhecimento sensível. Como escreve Kant, “chamo de
estética transcendental uma ciência de todos os princípios a priori da
sensibilidade”, onde, por “princípios a priori", ele entende precisamente
as estruturas ou o modo de funcionamento da sensibilidade.
Mas, para compreender bem a estética transcendental e tudo o que daí
decorre, é preciso antes proceder a uma série de clarificações terminológicas,
para as quais o próprio Kant chama a atenção do leitor com muito cuidado.
a) A “sensação” é uma pura modificação ou impressão que o sujeito recebe
(passivamente) pela ação do objeto (como, por exemplo, quando sentimos calor ou
frio, vemos vermelho ou verde, provamos doce ou amargo) ou, se assim se preferir, é uma ação que o
objeto produz sobre o sujeito, modificando-o.
b) A “sensibilidade” é a faculdade que temos de receber as sensações, ou
seja, a faculdade através da qual nos somos suscetíveis de sermos modificados
pelos objetos.
c) A “intuição” é o conhecimento imediato dos objetos. Segundo Kant o
homem é dotado de um só tipo de intuição: a intuição própria da sensibilidade.
O intelecto humano não intui, mas, quando pensa, refere-se sempre aos dados
que e são fornecidos pela sensibilidade.
d) O objeto da intuição sensível chama-se “fenômeno”, que significa (do
grego phainómenon) "aparição", ou “manifestação". No conhecimento
sensorial, não captamos o objeto como é em si mesmo mas, precisamente, tal
como ele aparece para nós, porque como dissemos, a sensação (o conhecimento
sensorial) é uma “modificação” que o objeto produz sobre o sujeito e,
portanto, é um “aparecimento” do objeto tal como ele se “manifesta" através da própria modificação.
e) No “fenômeno” (= nas coisas como aparecem no conhecimento sensível), Kant distingue uma "matéria" e uma "forma". A "matéria”
é dada pelas simples sensações ou modificações produzidas em
nós pelo objeto (cf. o ponto a) e, como tal, só pode ser a posteriori (não
podemos sentir frio ou calor ou então sentir doce ou amargo senão em conseqüência da
experiência, não antes). A “forma”, ao contrário, não vem das sensações e da experiência, mas sim do Sujeito, sendo aquilo pelo qual os múltiplos dados sensoriais são "ordenados em determinadas relações". Em palavras mais simples,
poder-se-ia dizer que a "forma" de que fala Kant é o "modo de funcionamento” da nossa
sensibilidade, que, no momento em que recebe os dados sensoriais, naturalmente "os organiza". E como a "forma" é o modo de funcionamento da sensibilidade, esta existe a priori
em nós.
f) Kant chama de “intuição empírica” o conhecimento (sensível) em que
estão concretamente presentes as sensações e de “intuição pura" a
“forma" da sensibilidade considerada prescindindo da matéria (ou seja,
prescindindo das sensações concretas).
g) As “intuições puras” ou “formas" da sensibildiade são somente
duas: o espaço e o tempo.
Está claro, então, que, para Kant, espaço e tempo deixam e ser
determinações ontológicas ou estruturas dos objetos e (em consequência
da revolução copernicana de que falamos) tornam-se modos e funções próprios do
Sujeito, "formas puras da intuição sensível como princípios do conhecimento". Por conseguinte, é evidente
que nós não devemos sair de nós mesmos para conhecer as “formas” sensíveis dos fenômenos
(espaço e tempo), porque já as temos em nós mesmos "a priori”.
Para Kant, o espaço é a forma (o modo de funcionamento) do sentido
externo, ou seja, a condição à qual deve satisfazer a representação sensível de
objetos externos; já o tempo é a forma (o modo de funcionamento) do sentido
interno (e, portanto, a forma de todo dado sensível interno enquanto por nós
conhecido). Assim, o espaço abarca todas as coisas que podem aparecer
exteriormente e o tempo abarca todas as coisas que podem aparecer
interiormente.
Conseqüentemente, Kant contesta com muito vigor qualquer pretensão no
sentido de que o espaço e o tempo valem como realidades absolutas, nega que
eles possam valer “também independentemente da forma da nossa intuição
sensível” e, por fim, nega que eles possam “ser inerentes absolutos das coisas
como suas condições ou qualidades". Outros seres racionais, diferentes dos
homens, poderiam captar as coisas não espacialmente e não temporalmente. Nós só
captamos as coisas como espacial e temporalmente determinadas porque temos uma
sensibilidade assim configurada (= uma sensibilidade que funciona desse modo).
Então, fica claro o que o nosso filósofo quer dizer quando fala de
“realidade empírica" e de “idealidade transcendental” do espaço e do
tempo. Eles têm “realidade empírica" porque nenhum objeto pode ser dado
aos nossos sentidos sem se submeter a eles e têm “idealidade transcendental”
porque não são inerentes às coisas como suas condições, mas são apenas “formas
da nossa intuição sensível” (não são formas do objeto, mas sim formas do
Sujeito).
Agora, estamos em condições de entender uma célebre passagem em que Kant
resume o seu pensamento sobre o conhecimento sensível e define a primeira etapa
da “revolução copernicana", enunciando com notável rigor e eficácia os
pontos básicos do seu criticismo:
“Assim, nós quisemos dizer que toda intuição nossa (recorde-se que, para
Kant, a intuição é só sensível) nada mais é do que a representação de um
fenômeno, que as coisas que nós intuímos, em si mesmas, não são aquilo pelo
qual nós as intuímos nem as suas relações são tais quais como nos aparecem e
que, se suprimíssemos o nosso sujeito ou até somente a natureza subjetiva dos
sentidos em geral, toda a natureza, todas as relações dos objetos no espaço e
no tempo e inclusive o próprio espaço e o próprio tempo desapareceriam, pois,
como fenômenos, não podem existir em si, mas somente em nós. Aquilo que possa
existir nos objetos em si, separados da receptividade dos nossos sentidos,
permanece inteiramente ignorado por nós. Nós não conhecemos senão o nosso modo
de capta-los, que nos é peculiar e que não é nem necessário que pertença a todo
ser (= também a outros seres racionais, mas não humanos), embora pertença a
todos os homens. Somente com ele é que nós temos a ver. O espaço e o tempo são
as formas puras dele (= do modo de perceber os objetos); a sensação, em geral,
é a matéria. Aquela (= a forma) nós só a podemos conhecer a priori, ou seja,
antes de toda real percepção e, por isso, a chamamos de intuição pura; esta (=
a matéria), ao contrário, é aquilo que, em nosso conhecimento, faz com que
digamos conhecimento a posteriori, isto é, intuição empírica. Aqueles (= espaço
e tempo) pertencem em absoluto à nossa sensibilidade, qualquer que seja a
espécie das nossas sensações; estas (= as sensações) podem ser muito diversas.
Assim, ainda que levássemos essa nossa intuição ao mais alto grau de clareza,
não estaríamos nos aproximando mais da natureza dos objetos em si; já que, em
todo caso, nós só poderíamos conhecer completamente o nosso modo de intuição,
ou seja, a nossa sensibilidade e sempre nas condições originariamente inerentes
ao sujeito, de espaço e de tempo; mas, por mais iluminado que seja o
conhecimento dos seus fenômenos, nunca se tornaria conhecido para nós o que
poderiam ser os objetos em si mesmos."
Tal como são em si, os objetos só podem ser captados pela intuição
própria de um intelecto originário (Deus) no ato mesmo em que os coloca.
Portanto, a nossa intuição, precisamente porque não é originária, é sensível,
ou seja, não é produtora dos seus conteúdos, mas é dependente da existência de
objetos que agem sobre o sujeito, modificando-o através das sensações. Assim, a
“forma” do conhecimento sensível depende de nós, mas o conteúdo não depende
de nós, sendo-nos “dado”.
Assim, já estamos em condições de compreender agora quais são os
fundamentos da geometria e da matemática, bem como as razões da possibilidade
de construir a priori essas ciências. Tanto uma como a outra não se fundam no
"conteúdo” do conhecimento, mas sim na “forma", ou seja, na intuição
pura do espaço e do tempo, e exatamente por isso têm universalidade e
necessidade absolutas, ou seja, porque o espaço e o tempo são estruturas do
Sujeito (e não do objeto) e, como tais, são a priori. Todos os juízos sintéticos
a priori da geometria (todos os postulados e todos os teoremas) dependem da
intuição a priori do espaço. Quando digo “dadas três linhas, construir um
triângulo”, eu posso construir o triângulo precisamente determinando o espaço
sinteticamente a priori através da minha intuição. E o mesmo vale para as
várias proposições geométricas.
Já a matemática se funda no tempo: “somar”, “subtrair”, “multiplicar”
etc., são operações que, como tais, se estendem no tempo. Se pensarmos no modo
intuitivo pelo qual indicamos as operações como o ábaco (acrescentamos uma
bolinha após a outra; subtraímos uma bolinha após a outra etc.), tudo isso
ficará bem evidente.
Podemos então apresentar a primeira resposta precisa ao problema do
fundamento da síntese a priori Eis como Kant a resume no fim da abordagem da
estética transcendental: “Agora, nós temos um dos pontos necessários à solução
do problema geral da filosofia transcendental; como são possíveis os juízos
sintéticos a priori?” Esse ponto consiste, precisamente, nas “intuições puras a
priori, espaço e tempo". Nós realizamos juízos sintéticos a priori baseando-nos
em nossas intuições. Entretanto, conclui Kant, “por essa razão, tais juízos não
vão além dos objetos dos sentidos (dado que a intuição do homem é somente
sensível), podendo valer apenas para objetos de uma experiência possível",
mas não para os objetos-em-si.
A geometria e a matemática, portanto, têm valor universal e necessário,
mas esse valor de universalidade e necessidade se restringe ao âmbito
fenomênico.
2. 4. A analítica transcendental e a doutrina do conhecimento
intelectivo e de suas formas a priori
2.4.1. A lógica e as
suas divisões segundo Kant
Além da sensibilidade, como já dissemos, o homem tem ainda uma segunda
fonte de conhecimento: o intelecto. Através da primeira, os objetos nos são
"dados”; através do segundo, eles são “pensados”. Escreve Kant: “A
intuição e os conceitos, portanto, constituem os elementos de todo o nosso
conhecimento, de modo que nem os conceitos, sem que de alguma forma lhes
corresponda uma intuição, nem a intuição, sem os conceitos, podem, nos dar o conhecimento."
Diz ainda Kant: “Nenhuma dessas duas faculdades deve ser anteposta à
outra. Sem sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem intelecto, nenhum
objeto seria pensado. Sem conteúdo, os pensamentos são vazios; sem conceitos,
as intuições são cegas. (...). Essas duas faculdades ou capacidades não podem
ter suas funções trocadas. O intelecto não pode intuir nada, nem os sentidos podem
pensar nada. O conhecimento só pode brotar de sua união. Mas nem por isso se
devem confundir os seus papéis; ao contrário, há muita razão para separá-los
acuradamente e mantê-los distintos. Por isso, nós distinguimos a ciência das
leis da sensibilidade em geral, ou seja, a estética, da ciência do intelecto em
geral, isto é, a lógica.”
A "lógica" portanto é a ciência do intelecto em geral,
dividindo-se em: a) lógica geral e b) lógica transcendental.
a) A primeira prescinde dos conteúdos, limitando-se a estudar as leis e
os princípios gerais do pensamento, sem os quais não existiria uso do
intelecto. Trata-se da célebre lógica "formal" descoberta por
Aristóteles e, segundo Kant, nascida quase que perfeita, tanto que “não teve
que dar nenhum passo atrás”, tendo de sofrer apenas correções de pormenor.
b) Mas o que interessa a Kant na Crítica da razão pura não é a lógica
formal, mas sim a lógica transcendental, que não prescinde do conteúdo. Qual é
então o conteúdo que a lógica transcendental pode ter por objeto, além das
próprias formas do pensamento? Kant distingue os conceitos empíricos dos
conceitos puros: empíricos são aqueles conceitos que contêm elementos sensíveis;
puros, ao contrário, são aqueles aos quais não está vinculada sensação. Já
havíamos visto uma distinção análoga na estética, onde Kant falava de intuições
puras e intuições empíricas: intuições puras são as formas do espaço e do
tempo, intuições empíricas são aquelas em que, ao espaço e ao tempo, agregam-se
as sensações.
Ora, mesmo prescindindo de todo conteúdo empírico, o intelecto pode pelo
menos ter como conteúdo as intuições puras de espaço e de tempo. E essa é
exatamente a lógica transcendental, que, portanto, se abstrai dos conteúdos
empíricos, mas não dos laços com as intuições puras, ou seja, dos laços com o
espaço e o tempo. Ademais, enquanto a lógica formal não considera a origem dos
conceitos, limitando-se a estudar as leis que regulam os seus nexos, a lógica
transcendental estuda a origem dos conceitos e se ocupa especificamente com
aqueles conceitos que não provêm dos objetos, mas que provêm a priori do
intelecto e, no entanto, se referem a priori aos próprios objetos.
Depois, Kant distingue a lógica transcendental em “analítica” e
“dialética”. Sobre a dialética, falaremos adiante. No que se refere à
“analítica” (da qual trataremos agora), devemos recordar que o termo é de
gênese aristotélica. “Analítica” deriva do grego analyo (analysis), que
significa “decompor uma coisa em seus elementos constitutivos". Em seu
sentido transcendental, portanto, a analítica decompõe o conhecimento
intelectivo nos seus elementos essenciais: aliás, decompõe “a própria faculdade
intelectiva” para nela procurar os conceitos a priori e estudar o seu uso de
modo sistemático.
Assim, fica clara a seguinte passagem de Kant: “Na lógica transcendental,
nós isolamos o intelecto (como, na estética transcendental, a sensibilidade) e,
de todo o nosso conhecimento, destacamos apenas a parte do pensamento, que tem
a sua origem unicamente no intelecto. Mas o uso desse conhecimento puro, como a
sua condição, baseia-se no seguinte: que, na intuição, nos sejam dados objetos
aos quais possa ser aplicado. Pois, sem a intuição, todo o nosso conhecimento
carece de objeto, permanecendo então inteiramente vazio. Assim, a parte da
lógica transcendental que expõe os elementos do conhecimento puro do intelecto
e os princípios sem os quais nenhum objeto pode ser absolutamente pensado é a
analítica transcendental e, ao mesmo tempo, uma lógica da verdade. Com efeito,
nenhum conhecimento pode contraditá-la sem, ao mesmo tempo, perder todo
conteúdo, isto é, toda a relação com um objeto qualquer e, portanto, toda
verdade."
Por fim, também fica clara 'esta última passagem, não menos significativa:
"Entendo por 'analítica' dos
conceitos não a sua análise ou o procedimento, comum nas pesquisas filosóficas,
de decompor em seu conteúdo os conceitos que se apresentam e esclarecê-los, mas
sim a decomposição, ainda pouco tentada, da própria faculdade intelectiva, para
pesquisar a possibilidade dos conceitos a priori, graças ao fato de procurá-los
somente no intelecto, como em seu lugar de origem, e de analisar o seu uso puro
em geral, já que essa é a única função própria de uma filosofia transcendental
(...)."
2.4.2. As categorias
e a sua "dedução transcendental"
Só a sensibilidade é intuitiva; já o intelecto é discursivo: por isso,
os conceitos do intelecto não são intuições, mas funções. A função própria dos
conceitos consiste em unificar e ordenar um múltiplo sob uma representação
comum. Sendo assim, o intelecto é a faculdade de julgar, precisamente porque
unificar um múltiplo sob uma representação comum é julgar. Na lógica
transcendental, como sabemos, o múltiplo a unificar é apenas o múltiplo puro
dado pela intuição pura (espaço e tempo). O intelecto atua sobre esse múltiplo
com uma ação unificadora, que Kant chama propriamente “síntese". Os vários
modos com que o intelecto unifica e sintetiza são os “conceitos puros” do
intelecto ou “categorias”.
Mais uma vez, Kant usa um termo aristotélico, rico de uma gloriosa
história, mas muda o seu significado em função da “revolução copernicana",
assim como havia feito em relação ao espaço e ao tempo. Para Aristóteles, as
categorias eram leges entis; para Kant, tornam-se leges mentis. De modos do
ser, eles se transformam em modos de funcionamento do pensamento. Os conceitos puros
kantianos ou categorias, portanto, não são conteúdos, mas sim formas:
"formas sintetizadoras”.
Se os conceitos puros ou categorias fossem determinações ou nexos dos
entes, nós só poderíamos ter deles um conhecimento empírico e a posteriori e,
conseqüentemente, nenhum conhecimento universal e necessário poderia se basear
neles.
Agora, então, que os conceitos puros ou categorias são leges mentis,
será possível fazer a sua relação ou “enumeração” completa a priori. Segundo
Kant, Aristóteles, ao redigir a “tábua” de suas categorias, procedeu de modo
apressado e episódico, sem um "fio condutor” que lhe permitisse alcançar a
perfeita ordem e caráter completo.
Mas Kant acredita ter encontrado tal fio condutor. Ele consiste no
seguinte: como “pensar" é "julgar ", então deve haver tantas
"formas" do pensamento puro, ou seja, tantos “conceitos puros” ou
“categorias” quantas são as formas do juízo.
Escreve ele: “A mesma função que dá unidade às diversas representações
em um juízo, portanto, dá unidade também à simples síntese das diversas
representações (...); unidade que (...) se chama conceito puro do intelecto (ou
categoria). “Ora, a lógica formal (que, para Kant, como sabemos, se constituiu
de modo perfeito) distinguiu doze formas de juízo. Conseqüentemente, doze deverão
ser também as correspondentes categorias. Eis a tábua dos doze juízos e a
correspondente tábua das doze categorias, com as respectivas correspondências
em paralelo.
TÁBUA DOS JUÍZOS
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TÁBUA DAS CATEGORIAS
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I. Quantidade
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1. Universais
2. Particulares
3. Singulares
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1. Unidade
2. Pluralidade
3. Totalidade
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II. Qualidade
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1. Afirmativos
2. Negativas
3. Infinitos
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1. Realidade
2. Negação
3. Limitação
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III. Relação
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1. Categóricos
2. Hipotéticos
3. Disjuntivos
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1. Da inerência e subsistência
(substância e acidente)
2. Da causalidade e dependência
(causa e efeito)
3. Da reciprocidade (ação recíproca
entre agente e paciente)
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IV. Modalidade
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1. Problemáticos
2. Assertivos
3. Apodíticos
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1. Possibilidade-impossibilidade
2. Existência-inexistência
3. Necessidade-contingência
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Depois de determinar o número das categorias, Kant deve justificar o seu
valor. Esse é um dos pontos mais delicados da Crítica, a ponto de Kant ter
sentido a necessidade de reescrever completamente as páginas relativas a esse
tema.
Esse problema relativo as categorias foi chamado por Kant, usando uma
terminologia jurídica, de “dedução” transcendental, que significa precisamente justificação da pretensão da validade cognoscitiva das
próprias categorias. É compreensível a dificuldade encontrada por nosso filósofo nesse
ponto, porque se trata de demonstrar como é que conceitos puros a priori devem
se referir de maneira necessária aos objetos.
Kant encontrou a solução tomando por modelo a solução que já dera para a
justificação da validade objetiva do espaço e do tempo, que são formas a priori
da sensibilidade. Assim como as coisas, para serem conhecidas sensivelmente,
devem se adequar às formas da sensibilidade, da mesma forma não é de modo algum
estranho que, para serem pensadas, devam necessariamente se adequar às leis do
intelecto e do pensamento. Assim como o Sujeito, captando sensivelmente as
coisas, as espacializa e temporaliza, da mesma forma, pensando-as, as ordena e
determina conceitualmente segundo os modos próprios do pensamento. Os conceitos puros ou categorias, portanto, são as condições pelas quais e somente
pelas quais é possível que algo seja pensado como objeto de experiência, assim
como o espaço e o tempo são as condições pelas quais e somente pelas quais é
possível que algo seja captado sensivelmente como objeto de intuição.
Resumindo lucidamente o seu pensamento sobre a questão, escreve Kant:
"Há somente dois caminhos pelos quais se pode pensar numa concordância
necessária da experiência com os conceitos dos seus objetos: ou a experiência
torna possíveis esses conceitos ou estes tornam possível a experiência. O
primeiro não se verifica em relação às categorias (e nem mesmo em relação à
intuição sensível pura), porque elas são conceitos a priori e, portanto,
independentes da experiência (a afirmação de uma origem empírica seria uma
espécie de generatio aequivoca). Assim, resta somente o segundo caminho (por
assim dizer, um sistema de epigênese da razão pura [= geração da experiência das categorias]), ou seja, de que as categorias,
do lado do intelecto, contêm os fundamentos da possibilidade de toda
experiência em geral.”
Trata-se de mais uma etapa da “revolução copernicana” que se conclui,
culminando com a concepção do “Eu penso”, de que devemos falar agora.
2.4.3. "Eu
penso" ou Apercepção transcendental
O resultado conclusivo a que leva a “revolução copernicana” realizada
por Kant é que o fundamento do objeto esta no Sujeito. Aquele vínculo
necessário que constitui a unidade do objeto de experiência, na realidade, é a
unidade sintética do Sujeito.
O conceito de objeto, tradicionalmente concebido como aquilo que está
contra e se opõe ao Sujeito, para Kant, ao contrário, supõe estruturalmente o
Sujeito. A ordem e a regularidade dos objetos da natureza é a ordem que o
Sujeito, pensando, introduz na natureza.
É compreensível, portanto, que Kant tenha introduzido a figura teórica
da "Apercepção transcendental e a figura correlata do “Eu penso" como
momentos culminantes da analitica dos conceitos. Com efeito, como as categorias
são doze (vale dizer, doze formas de síntese que o pensamento explica ou doze
modos e unificação do múltiplo), é evidente que elas supõem uma unidade originária
e suprema, que deve guiar tudo. Essa unidade suprema é a unidade da
“Consciência" ou da "Autoconsciência , que Kant chama precisamente do “Eu penso”.
O “Eu penso” deve poder acompanhar toda representação permanecendo idêntico,
caso contrário, eu não poderia ter consciência dela ou seria como se eu não a
tivesse e, além disso, com a variação das representações, me tornaria "um
eu multicor" , ou seja, mudaria com a mudança das próprias representações. O ponto
focal em que todo o multiplo se unifica é a representação do Eu penso, que,
obviamente, não é o eu individual de cada sujeito empírico, mas sim a estrutura do pensar comum a todo sujeito empírico
(aquilo pelo qual cada sujeito empírico é sujeito pensante e consciente).
Dada a grande importância historico-teórica dessa figura especulativa,
que servirá de base para o idealismo, através do repensamento que dela faria
Fichte, leremos algumas afirmações basilares de Kant a esse respeito: “O Eu penso deve
poder acompanhar todas as representações, caso contrário seria representado em
mim algo que não poderia de modo algum ser pensado, o que, portanto, significa precisamente que a representação seria impossível ou que, pelo
menos para mim, não existiria. A representação que pode ser dada antes de todo
pensamento é chamada intuição (= espaço e tempo). Assim. todo múltiplo da
intuição (= espaço e tempo) tem uma relação necessária com o Eu penso, no mesmo
sujeito em que esse múltiplo o encontra. Mas essa representação é um ato da espontaneidade,
isto é, não pode ser considerada como pertencente à sensibilidade (que é predominantemente
receptividade e, portanto, passividade). Eu a chamo apercepção pura, para
distingui-la da empírica, ou também apercepção originária, porque é
precisamente aquela autoconsciência que, enquanto produz a representação Eu
penso - que deve poder acompanhar todas as outras e é una e idêntica em
toda consciência -, não pode mais ser acompanhada por nenhuma outra. Eu também
chamo a sua unidade de unidade transcendental da autoconsciência, para indicar
a possibilidade do conhecimento a priori que daí deriva. E isso porque as múltiplas
representações que são dadas em certa intuição não seriam todas juntas minhas
representações se todas juntas não pertencessem a uma autoconsciência, isto é,
enquanto minhas representações (muito embora eu não tenha consciência delas como
tais), elas devem necessariamente se submeter à condição na qual somente podem
coexistir em uma autoconsciência universal, já que, caso contrário, não me
pertenceriam em comum.” E, sendo assim, Kant destaca, “a unidade sintética da
apercepção (...) é o ponto mais alto ao qual deve se ligar todo o uso do
intelecto, toda a própria lógica e, depois desta, a filosofia transcendental;
aliás, essa faculdade é o próprio intelecto".
Outra passagem nos dá a marca perfeita dessa concepção kantiana: "O
pensamento 'estas representações dadas na intuição (espácio-temporal) me
pertencem todas' soa da mesma forma que 'eu as uno em uma autoconsciência' ou,
pelo menos, posso uni-las; e, embora isso ainda não seja a consciência da
síntese das representações, entretanto pressupõe a sua possibilidade; isto é,
eu chamo todas aquelas representações de minhas representações só porque eu
posso abranger a sua multiplicidade em uma consciência, caso contrário eu
deveria ter um Eu multicor, diverso, correspondente às representações das quais
tenho consciência. A unidade sintética do múltiplo das intuições, enquanto é
dada a priori, constitui portanto o fundamento da identidade da própria
apercepção, que precede a priori todo meu pensamento determinado. Mas a unificação,
portanto, não está nos objetos e não pode ser considerada como algo que é
atingido por eles mediante percepção e, desse modo, assumido primeiramente no
intelecto, mas é apenas uma função do intelecto, que outra coisa não é do que a
faculdade de unificar a priori e de submeter à unidade da apercepção o
múltiplo das representações dadas - e é esse o princípio supremo de todo o
conhecimento humano.”
E assim temos a resposta conclusiva ao problema: como são possíveis os
juízos sintéticos a priori? Além da razão de que nós temos as formas puras da
intuição do espaço e do tempo a priori,
eles são possíveis também pelo motivo de que o nosso pensamento é atividade
unificadora e sintetizadora, que se explicita através das categorias,
culminando na apercepção originária, que é o princípio da unidade sintética
originária, a própria forma do intelecto.
Kant concebeu o seu "Eu penso", o Sujeito transcental, como função
e como atividade e, portanto, procurou mantê-lo em um horizonte
crítico. Mas era inevitável que os românticos se baseassem exatamente nessa
“função” e nessa "atividade" para construir uma metafísica do Sujeito
(oposta à clássica metafísica do objeto) contra as intenções de Kant.
Mas é no terceiro volume que falaremos longamente sobre esse complexo
acontecimento.
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