Texto 24 - Kant (parte 1) - Por Giovanne Reale




KANT E A REVIRAVOLTA “CRÍTICA" DO PENSAMENTO OCIDENTAL

1. A vida, a obra e o desenvolvimento do pensamento de Kant

1.1. A vida

Emanuel Kant nasceu em Königsberg, cidade da Prússia Oriental (hoje, a cidade se chama Kaliningrado e pertence a um território que se encontra sob a soberania russa), em 1724, de modesta família de artesãos, provavelmente de origem escocesa. Seu pai, João Jorgen, era seleiro; sua mãe, Regina Reuter, era dona-de-casa. Muito numerosa, sua família foi duramente provada: nada menos que seis filhos morreram em tenra idade. Em uma carta, com sentimentos de notável gratidão, Kant recorda os pais como modelos de honestidade e probidade e reconhece ter recebido deles excelente educação.

Mas é sobretudo a mãe que predomina na lembrança de Kant (quase como, no caso de santo Agostinho, sua mãe Mônica). Regina Reuter lançou no espírito do filho “as sementes do bem" e as fez crescer; demais, em seus passeios pelo campo, fez nascer nele profundo sentimento pela beleza da natureza (destinado a ter grande importância na formação de parte do seu futuro sistema filosófico); por fim, estimulou de vários modos o seu amor pelo conhecimento.

A marca de sua mãe, porém, fez-se sentir principalmente na educação religiosa. Regina Reuter não apenas criou o filho no rigorismo próprio do pietismo (uma corrente radical do protestantismo), mas quis também que sua formação escolar fosse marcada nesse sentido: por isso, matriculou Emanuel no Collegium Fridericianum, dirigido pelo pastor pietista F. A. Schultz, onde vigorava grande severidade, tanto nos conteúdos como nos métodos. Embora algims aspectos da educação píetista fossem mais tarde contestados por Kant, permaneceram indeléveis nele algumas instâncias de fundo dessa seita, bem visíveis sobretudo em seus escritos morais.

Kant aprendeu muito bem o latim e mal o grego. Não leu os grande clássicos da literatura e da filosofia gregas, o que, como veremos, repercutiria em sua própria filosofia. Em 1740, matriculou-se na universidade de sua cidade natal, onde freqüentou os cursos de ciência e filosofia, terminando seus estudos em 1747.

O período que vai de 1747 e 1754 foi muito duro. Kant teve que trabalhar como preceptor para sobreviver, uma profissão para a qual não se inclinava muito. Seus biógrafos destacam que esse deve ter sido verdadeiro período de miséria, dado que os funerais de seus genitores foram realizados às custas do erário público. Mas, apesar dessas condições desfavoráveis, Kant estudou muito nesse período, atualizando-se e lendo tudo o que se escrevia então, sobretudo nos campos que mais o interessavam, como as ciências e a filosofia.

Em 1755, conseguiu o doutorado e a docência universitária, ingressando na Universidade de Kõnigsberg na qualidade de livre-docente. Naquela época, o livre-docente era pago proporcionalmente ao número de horas de ensino e ao número de alunos que seguiam os seus cursos: é compreensível, então, que a tarefa de Kant não fosse nada fácil. Ele ensinou na universidade como livre-docente até 1770, ano em que venceu o concurso para professor ordinário, com a dissertação De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis. Em 1758, já se havia apresentado em um concurso. Mas perdeu, sendo preferido outro, destinado a permanecer como total nulidade. Recordamos o fato só para mostrar um dos traços salientes do caráter moral de Kant: ele tinha verdadeira aversão por qualquer forma de carreirismo, era estranho a todas as manobras acadêmicas e alheio a qualquer forma de adulação em relação a protetores poderosos. E pagou inteiramente o preço de confiar sua carreira exclusivamente às suas próprias forças, com extrema dignidade, distanciamento e determinação.

O que interessava a Kant eram o saber e a pesquisa, não a carreira, nem a fama ou as riquezas, como o demonstram ainda outros interessantes acontecimentos. Em 1778, na qualidade de ministro, o barão von Zedlitz lhe ofereceu uma cátedra em Halles, onde o estipêndio era o triplo e os estudantes muito mais numerosos do que em Königsberg. Mas ele recusou, não desistindo de sua recusa nem mesmo quando o ministro, para convencê-lo, ofereceu-lhe também outro cargo.

O período entre 1770 e 1781 constituiu o momento decisivo da formação do sistema kantiano. De sua longa meditação, nasceu a primeira Crítica (Crítica da razão pura, 1781), à qual se seguiram as outras grandes obras que contêm o pensamento maduro do nosso filósofo, particularmente as duas outras Críticas: a Crítica da razão prática, em 1788, e a Crítica do juízo, em 1790.

Os últimos anos da vida do filósofo foram perturbados sobretudo por dois acontecimentos. Em 1794, Kant foi intimado a não insistir nas idéias por ele expressas sobre a religião na obra A religião nos limites da pura razão. Morto o rei Frederico II, filo-iluminista, havia assumido Frederico Guilherme II que, liberando von Zedlitz (grande apreciador de Kant), entrincheirou-se em posições reacionárias. Kant obedeceu: não se retratou de suas idéias, mas calou-se, sustentando ser esse o seu dever de súdito e argumentando que, se é verdade que a mentira nunca deve ser dita, não é menos verdadeiro que a verdade nem sempre deve ser abertamente proclamada. Trata-se de um episódio que não agrada a muitos de seus biógrafos, mas que é coerente com a personagem.

O outro acontecimento tem dimensão histórica mais acentuada. O criticismo transcendental vinha sendo interpretado e desenvolvido no sentido de um idealismo espiritualista, especialmente por obra de Fichte, que Kant havia ajudado muito no início da carreira. Esse desdobramento, que iria envolver o criticismo e transformá-lo radicalmente, era fatal: o iluminismo já se havia esgotado, nascia uma nova forja cultural e, nessa forja, como veremos, o criticismo transcendental devia necessariamente se desenvolver em sentido idealista. Kant lutou durante certo tempo, mas depois, compreendendo provavelmente que aquela interpretação do seu pensamento era incontível, fechou-se em silêncio hermético.

Os anos da velhice foram os piores para Kant. Atingido pelo maior mal que pode ocorrer a homem de estudos, tornou-se quase cego, perdeu a memória e a lucidez intelectual. E extinguiu-se em 1804, reduzido quase que a uma vida larvar.

A riquíssima anedótica que floresceu sobre ele o mostra em seus traços mais característicos: nunca se afastou das proximidades de Königsberg, era prussianamente metódico, muito escrupuloso e extremamente apegado aos hábitos; mantinha o despertar matinal sempre à mesma hora (às cinco!) e sempre à mesma hora, com regularidade cronométrica, o passeio da tarde; era sempre pontualíssimo às aulas e sempre cumpria os seus deveres.

Em uma famosa carta, Herder o descreve muito bem: testa larga, como que construída de propósito para pensar; sempre sereno, arguto e erudito; aberto a todas as instâncias da cultura contemporânea. Kant sabia valorizar tudo e tudo canalizava "para um conhecimento sem preconceitos da natureza e para o valor moral dos homens".

Esta última afirmação é a que melhor resume Kant, que, falando de si mesmo, nos diz a mesma coisa com palavras um pouco diferentes, na conclusão de sua Crítica da razão pura: “Duas coisas enchem-me o espírito de admiração e reverência sempre nova e crescente, quanto mais freqüente e longamente o pensamento nelas se detém: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim.”

E essa afirmação, “o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim”, foi inscrita inclusive em seu túmulo. Com efeito, ela constitui a marca mais autêntica tanto do homem como do filósofo Emanuel Kant, como veremos.

1.2. Os escritos de Kant

A riquíssima produção de Kant divide-se em dois grandes grupos de escritos: os "pré-críticos" e (como já observávamos) os chamados “críticos”, ou seja, aqueles em que Kant expõe a sua filosofia “crítica”, já perfeitamente delineada e madura.

A série dos escritos pré-críticos termina com a Dissertação de 1770, que marca a aquisição parcial daquele ponto de vista que, aprofundado nos anos seguintes, levará em 1781 à perfeita formulação do criticismo transcendental, que se desdobra depois em todos os seus aspectos nas obras posteriores.

Eis a relação dos principais escritos, precedidos do ano de publicação:

a) Escritos pré-críticos

1746: Pensamentos sobre a verdadeira avaliação das forças vivas.
1755: História natural universal e teoria do céu.
1755: De igne (dissertação de doutorado).
1755: Principiorum primorum cognitionis metaphysicae nova delucidatio (tese de docência universitária).
1756: Os terremotos.
1756: Teoria dos ventos.
1756: Monadologia física.
1757: Projetos de um colégio de geografia física.
1759: Sobre o otimismo.
1762: A falsa sutileza das quatro figuras silogísticas.
1763: O único argumento possível para demonstrar a existência de Deus.
1763: Ensaio para introduzir em metafísica o conceito de grandezas negativas.
17 64: Observações sobre o sentimento do belo e do sublime.
1764: Pesquisa sobre a evidência dos princípios da teologia natural e da moral.
1665: Informe sobre a orientação das lições para o semestre de inverno 1765-1766.
1766: Sonhos de um visionário esclarecidos com os sonhos da metafísica.
1770: De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis (com esta obra, Kant tornou-se professor ordinário).

b) Escritos críticos

1781: Crítica da razão pura.
1783: Prolegômenos a toda metafísica futura que queira se apresentar como ciência.
1784: Idéias de uma história universal do ponto de vista cosmopolita.
17 84: Resposta à pergunta: O que é o iluminismo?
1785: Fundamentação da metafísica dos costumes.
1786: Princípios metafísicos da ciência da natureza.
1788: Crítica da razão prática.
1790: Crítica do juízo.
1793: A religião nos limites da pura razão.
1795: Pela paz perpétua.
1797: A metafísica dos costumes.
1798: O conflito das faculdades.
1802: Geografia física.
1803: A pedagogia.

1.3. O itinerário espiritual de Kant nos escritos pré-críticos

Existe uma afirmação de Kant que lança uma luz particular sobre o movimento geral do seu pensamento e sobre o sentido do seu itinerário espiritual: “a metafísica, pela qual estou destinado a ser apaixonado..." Trata-se de um “destino” no qual o apaixonado não alcançou o objeto do seu amor ou, pelo menos, não o alcançou senão de modo inteiramente insólito. Contudo, resta o fato de que Kant lutou durante toda a sua vida para dar à metafísica um fundamento científico e que a própria Crítica foi concebida com esse fim, ainda que os seus resultados tenham levado a metas diferentes.

Mas tentemos reconstruir, ainda que de modo sucinto, o iter espiritual do nosso filósofo.

Na universidade, quando estudante, Kant interessava-se muito pelas aulas de Martinho Knutzen, professor de lógica e metafísica, com o qual aprendeu a doutrina de Newton e a metafísica leibniziano-wolffiana. E são exatamente esses os principais axiais de interesse em tomo dos quais giram as temáticas da maior parte dos escritos pré-críticos, que, através de oscilações, repensamentos e aprofundamentos de vários gêneros, levaram lentamente à criação da filosofia crítica. Cada vez mais, Kant amadurecida a convicção de que a nova ciência (particularmente a física de Newton) já havia alcançado tal maturidade e riqueza de resultados e tal rapidez e especificidade de método que era necessário desligá-la da metafísica, à qual se queria relacioná-la e à qual o próprio Kant havia acreditado poder relacioná-la. Ademais, o apaixonado pela metafísica estava amadurecendo a idéia de que a metafísica devia ser repensada a fundo e reestruturada metodologicamente, a fim de alcançar aquele rigor e aquela concretude de resultados que a física havia alcançado.

Kant chega lentamente a essas conclusões, inicialmente ocupando-se de pesquisas científicas, quando não explorando as eventuais possibilidades de conciliação entre física e metafísica, depois elevando-se de modo sempre mais claro, através do exame dos fundamentos da metafísica, à consciência do problema metodológico geral relativo aos fundamentos do conhecimento, do qual nascerá a Crítica.

Dentre as obras nas quais Kant se ocupa dos problemas científicos predominantemente na condição de cientista, recordamos a História natural universal e teoria do céu, de 1755, que se tornou famosa porque contém os fundamentos da hipótese segundo a qual o universo teria sua origem em uma nebulosa, hipótese que teria grande sucesso, sobretudo na reformulação que foi feita por Laplace em sua Exposição do sistema do mundo, em 1796. Laplace, que escreveu a sua Exposição mais de quarenta anos depois da publicação da História de Kant, não sabia que havia sido precedido por ele. E isso aconteceu por um fato curioso. A História natural universal e teoria do céu havia saído anonimamente, mas no ano seguinte todos já sabiam que era de Kant. Entretanto, ela teve apenas escassa circulação, porque o editor faliu e as obras por ele publicadas foram apreendidas. Por tal motivo (a independência da descoberta pelos dois autores), essa hipótese foi denominada “teoria de Kant-Laplace". Mas é conveniente recordar que, em 1761, G. E. Lambert também havia sustentado uma concepção análoga. Ademais, a tentativa kantiana de explicar mecanicamente o mundo nessa obra se limita aos corpos físicos. Com efeito, por um lado, ele destaca expressamente que ela não vale para explicar os organismos (os princípios mecânicos “não estão em condições de explicar nem mesmo o nascimento de uma lagarta ou de um tufo de erva"), e, por outro lado, que ele não apenas não nega Deus, mas, ao contrário, supõe a sua obra criadora (a nebulosa originária não nasce do nada, mas tem origem em um ato criador de Deus, assim como as leis racionais que governam o mundo).

Do mesmo ano de 1755 é a dissertação metafísica Principiorum cognitionis metaphisicae nova delucidatio, na qual Kant tenta uma revisão dos princípios primeiros da metafísica leibniziano-Wolffiana. Vejamos as novidades que Kant apresenta nessa obra. Antes de mais nada, ele aceita a tese de que os princípios metafísicos basilares são dois: a) o de identidade (ao qual está subordinado o da não-contradição) e b) o de razão suficiente. Entretanto, ele procura fundamentar melhor do que havia sido no passado esse segundo princípio, com base na seguinte prova: todo ente contingente supõe uma “razão antecedente" ou “causa", por que, se não houvesse, seria necessário concluir que tal ente é causado por sua própria existência, o que é impossível, porque então não seria mais um ser contingente, mas um ser necessário. Ademais, Kant acrescenta outros dois princípios a esses dois primeiros: c) o princípio de sucessão (segundo o qual só pode ocorrer mudança nas coisas admitindo-se a sua recíproca conexão) e d) o princípio de co-existência (segundo a qual toda coisa só pode ter relações e conexões com as outras se admite uma dependência comum de um princípio primeiro). Nessas tentativas de aprofundar e fundamentar os princípios primeiros da metafísica, além de sua adesão à metafísica, está claramente visível aquele desejo de uma fundamentação mais adequada, de que já falamos.

A linha de desenvolvimento do pensamento de Kant fica mais evidente em suas publicações de 1756. Duas dizem respeito a temas científicos (Os terremotos e a Teoria dos Ventos) e a outra leva um título que, por si só, já é verdadeiro programa: Utilidade da união da metafísica e da geometria na filosofia da natureza. Primeiro ensaio: monadologia física. Kant ainda aceita a validade da metafísica para a determinação dos fundamentos últimos da realidade. Entretanto, a) corrige a teoria das mônadas de Léibniz com o objetivo de mediar a física newtoniana e a metafísica, propondo a substituição da mônada espiritual por uma mônada física, que, com sua ação ou força repulsiva, “estende-se” em um “pequeno espaço”, constituindo assim (na interação com as outras mônadas) o próprio espaço. Ademais, b) reafirma energicamente, ao mesmo tempo, a necessidade de que a metafísica se valha da contribuição da experiência e da geometria. Como se vê, Kant ainda permanece leibniziano, visto que está convencido de poder reduzir o espaço como “fenômeno” de realidade metafenomênica.

A têmpera leibniziana também pode ser encontrada no escrito Sobre o otimismo. O terremoto de Lisboa inspirara a Voltaire reflexões amargamente sarcásticas sobre o otimismo que vê neste nosso mundo o “melhor dos mundos possíveis”. Kant, ao contrário, sustenta que o otimismo pode ser justificado, desde que não se limite a visão das coisas em uma ótica parcial, mas se eleve a uma visão do conjunto, ou seja, a uma visão do mundo como totalidade: aquilo que, visto pela ótica do indivíduo, pode parecer injustificável e incompreensível, não o é, se considerado pela ótica do conjunto.

Em 1762, ocorre uma reviravolta bastante brusca na parábola evolutiva, do pensamento kantiano. Provavelmente, essa reviravolta esta ligada à leitura e à meditação de Hume, que, como Kant diz expressamente, teve o mérito de despertá-lo do “sono dogmática" com suas críticas radicais aos princípios da metafísica. Essa reviravolta se manifesta de foram eloqüente no escrito A falsa sutileza das quatro figuras silogísticas e nas duas obras de 1763: Único argumento possível para uma demonstração da existência de Deus e Ensaio para introduzir na metafísica o conceito das grandezas negativas.

Nesses escritos (sobretudo no primeiro e no último), Kant destaca que a lógica formal tradicional não é uma lógica do real, porque fica fechada em sutil jogo formal e, portanto, não capta o ser; assim, o principio de identidade não está em condições de explicar fundamento real das coisas. Às abstrações da lógica formal e aos "castelos de areia" da metafísica, Kant parece preferir decididamente os resultados alcançados pelas novas ciências. A filosofia deveria assumir algumas verdades da geometria.

No Único argumento, aliás, a metafísica chega a ser declarada uma espécie de "abismo sem fundo” e como que “um oceano sem praias e nem faróis . Kant chega a refutar as tradicionais provas a existência de Deus (refutação que ele retomará na Crítica a razão pura e sobre :a qual falaremos adiante). E propõe uma nova prova, chamada "dos possíveis”, embora sem imputar-lhe particular importância, pois, precisa ele, a Providência não quis ligar conhecimento tão importante a sutis raciocínios, mas sim à natural inteligência dos homens".

Esse argumento - que, aliás, Kant depois deixaria de lado - pode ser resumido como segue: o possível não é apenas aquilo que não é contraditório, o que nada mais é do que a condição formal da possibilidade; com efeito, o possível supõe ademais que existam realmente os elementos não contraditórios, que, em certo sentido, são como que a matéria da possibilidade. Analogamente, o necessário não é somente aquilo cujo contraditório é formalmente impossível, mas também aquilo cujo contraditório é realmente impossível. Ora, diz Kant, é impossível que nada seja possível. Mas o possível supõe o ser como a sua condição, como vimos. E, como o ser é condição sem a qual não se dá o possível, então existe algo que é “absolutamente necessário”. Em suma: o possível supõe necessariamente o necessário como sua condição - e esse necessário é Deus.

Em 1764, são publicadas a Pesquisa sobre a evidência dos princípios da teologia natural e da moral e as Observações sobre o belo e o sublime. Na primeira dessas obras, Kant reafirma a idéia que já conhecemos bem, isto é, de que a metafísica deve trabalhar com o mesmo método que Newton introduziu na física e que se revelou tão fecundo, ou seja, deve buscar as regras segundo as quais se desenvolvem os fenômenos “com experiência segura” e com “o auxílio da geometria”. Mas o escrito é importante porque Kant separa a ética da metafísica e proclama que a faculdade do conhecimento teórico não é a mesma faculdade com que captamos o bem: o bem é captado por sentimento moral. Kant diz que essa distinção, na história das idéias, só ficou clara recentemente: trata-se da doutrina dos moralistas ingleses Shaftesbury e Hutcheson, que o nosso filósofo acolhe também no segundo escrito. E assim vai se delineando a linha de pensamento que levaria à Crítica da razão prática e à Crítica do juízo.

E muito interessante o Informe sobre a orientação das lições do semestre do inverno 1765-1766, no qual Kant enuncia os critérios nos quais se inspira o seu ensino de filosofia: não se trata de ensinar de modo dogmático uma filosofia como algo acabado, mas sim de ensinar a filosofar, ou seja, a pensar filosoficamente. E isso, observa Kant, assim como não é dogmatismo, também não é ceticismo, mas representa um modo crítico e construtivo de proceder.

Em 1766, saiu o mais curioso dos escritos pré-críticos, sob o título Os sonhos da metafísica explicados com os sonhos de um visionário. O sueco E. Swedenborg havia publicado uma obra intitulada Arcana coelestia, na qual sustentava estar em contato com os espíritos dos falecidos e ter obtido informações sobre o além através deles. Kant recebeu prementes solicitações para que se pronunciasse sobre essas teorias de Swedenborg, que despertavam grande curiosidade. Com argúcia e ironia, Kant diz que as teorias de Swedenborg nada mais são do que sonhos. E a característica dos sonhos é pertencer unicamente a quem os sonha, permanecendo fechados em um mundo privado e não transmissível.

Sendo assim, então, os metafísicos se assemelham a Swedenborg, com suas doutrinas sobre o reino dos espíritos (como é o caso, por exemplo, das mônadas de Leibniz). As doutrinas metafísicas são “sonhos racionais” e, como tais, são privadas e não transmissíveis. A ciência newtoniana, ao contrário, é objetiva e pública, ou seja, comum a todos. Kant reafirma o conceito segundo o qual a ética não necessita da metafísica, porque pode se basear na fé moral (o sentimento moral). Desse modo, a metafísica não parece ser mais para Kant uma ciência do númeno, mas sim uma ciência dos "limites da razão". E, no entanto, apesar de tudo, como observaram os estudiosos, é nessa obra “antimetafísica" que Kant confessa: "a metafísica, pela qual estou destinado a ser apaixonado..."

1.4. A “grande luz” de 1769 e a Dissertação de 1770

Kant escreveu que o ano de 1769 lhe havia trazido “uma grande luz”. E essa grande luz consistiu no descerrar-se da perspectiva revolucionária, ou seja, daquela que ele chamaria de sua “revolução copernicana”, que lhe permitiria a superação tanto do racionalismo como do empirismo, tanto do dogmatismo como do ceticismo, abrindo nova era para o filosofar. Mas essa revolução implicava num repensamento radical de todos os problemas investigados por ele até o momento.

Em 1770, vagou a cátedra de lógica e metafísica. Assim, Kant teve que escrever a sua dissertação De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis como título para se apresentar ao concurso, muito embora a "grande luz” só houvesse iluminado uma parte dos problemas. Desse modo, nasceu uma obra a meio caminho entre o velho e o novo, mas interessantíssima, porque constitui uma espécie de “balanço intermediário”.

A Dissertação se apresenta como uma “propedêutica” da metafísica, entendida como conhecimento dos princípios do intelecto puro. Portanto, inicialmente Kant quer estabelecer a diferença existente entre 1) conhecimento sensível e 2) conhecimento inteligível.

1) O primeiro é constituído pela “receptividade" do sujeito, que sofre certa impressão pela presença do objeto. Como tal, o conhecimento sensível nos representa as coisas uti apparent e não sicut sunt, ou seja, as coisas como elas aparecem para o sujeito e não como são “em si”. Por isso nos apresenta fenômenos, que quer dizer precisamente (do grego phainesthai) as coisas como elas se manifestam ou aparecem (tese que Kant não sente a necessidade de demonstrar, porque constituía lugar comum em sua época).

2) Já o conhecimento intelectivo é a faculdade de representar aqueles aspectos das coisas que, por sua própria natureza, não podem ser captados com os sentidos. Como são captadas pelo intelecto, as coisas são númenos (do grego noein, que significa "pensar”), dando-nos as coisas sicut sunt. São conceitos do intelecto, por exemplo, os de “possibilidade”, “existência”, “necessidade" e semelhantes, que, obviamente, não derivam dos sentidos. E é sobre esses conceitos que se alicerça a metafísica.

Deixando de lado a questão do conhecimento intelectivo, a respeito do qual Kant se apresenta ainda um tanto incerto e oscilante, evidentemente porque ainda não teve tempo de estender também a ela a “grande luz, vejamos então a novidade apresentada a propósito do conhecimento sensível. Este conhecimento é intuição, enquanto é conhecimento imediato. Mas todo conhecimento sensível ocorre no “espaço” e no “tempo”, posto que não é possível se dar alguma representação sensível senão espacial e temporalmente determinada.

O que são, então “espaço” e “tempo”? Não são, como se considerava, propriedades das coisas, ou seja, realidades ontológicas (o newtoniano Clarke as transformara, inclusive em atributos divinos), mas também não são simples reações entre os corpos (como queria Leibniz): elas são as formas da sensibilidade. Assim, ao invés de modos de ser das coisas, o espaço e tempo se configuram como modos como o sujeito capta sensivelmente as coisas. Não é o sujeito que se adequa ao objeto no conhecimento, mas ao contrário, é o objeto que se adequa ao sujeito. Essa é a “grande luz”, ou seja, a grande intuição de Kant, que agora devemos ver em seu pleno desdobramento na Crítica da razão pura.

2. A Crítica da razão pura

2.1. O problema crítico: a síntese a priori e o seu fundamento

Kant achava que podia concluir rapidamente (logo depois da Dissertação) uma obra na qual a “grande luz” advinda em 1769 pudesse iluminar todos os problemas. No entanto, essa obra exigiu nada menos que doze anos de meditação: a Crítica da razão pura só viu a luz em 1781. Em 1783, Kant publicava os Prolegômenos a toda metafísica futura que queira se apresentar como ciência, para esclarecer a Crítica, que não fora compreendida, e, em 1787, publicaria a segunda edição da Crítica, com algumas importantes explicações.

Com efeito, nesse período de intenso trabalho, Kant conseguiu desfazer os nós da  meada de problemas que o vinham reocupando, encontrando finalmente o fio da meada. Todos esses problemas dependem de problema único e fundamental, só podendo ser resolvidos precisamente com a solução desse problema. 


Kant descobriu que a natureza do conhecimento científico (ou seja a natureza do verdadeiro conhecimento) consiste em ser uma “síntese a priori” e que, por isso, tudo, está no descobrir qual é o fundamento que torna possível a “síntese a priori". Essa é a novidade da Crítica, à qual a Dissertação de 1770 não acenava; Conseqüentemente, conseguindo-se estabelecer qual a natureza da "síntese a priori”, pode-se resolver com facilidade o problema de como e por que são possíveis as ciências matemático-geométricas e a ciência física e se poderá, por fim, resolver o problema de se é ou não possível uma “metafísica como ciência” ou então, se isso não for possível, por que então a razão humana se sente tão irresistívelmente atraída pelas questões metafísicas.

Mas, como se trata de ponto básico e como de sua compreensão depende a compreensão de toda a filosofia de Kant, é preciso aprofundar convenientemente essa questão. 


O conhecimento científico (ou seja, o verdadeiro conhecimento) consta fundamentalmente de proposições ou de juízos universais e necessários e, ainda por cima, incrementa continuamente o conhecer. Então, que tipos de juízos são aqueles de que se vale a ciência?

Para responder a esse problema, é preciso examinar a teoria dos juízos, ver quais e quantos são e, depois, estabelecer quais deles são próprios da ciência. Um juízo consiste na conexão de dois conceitos, dos quais um (A) cumpre a função de sujeito e o outro (B) cumpre a função de predicado.

1) O conceito que funciona como predicado (B) pode estar contido no conceito que funciona como sujeito (A) e, portanto, pode ser extraído por pura análise do sujeito. Então, o juízo é “analítico”, como quando, por exemplo, digo que “todo corpo é extenso". O conceito de "extensão", com efeito, é sinônimo de “corporeidade” e, assim, quando digo “todo corpo é extenso” nada mais faço do que explicar e explicitar aquilo que se entende por “corpo”. 

2) Mas o conceito que funciona como predicado (B) também pode não se encontrar implícito no conceito que funciona como sujeito (A) e, no entanto, ser-lhe conveniente. Então, o juízo é “sintético”, porque o predicado (B) acrescenta ao sujeito (A) algo que não é extraível dele por mera análise. Por exemplo, quando digo “todo corpo é pesado" pronuncia um juízo sintético, porque o conceito de "pesado" não pode ser extraído por pura análise do conceito de "corpo", tanto que, desde Aristóteles, por muito tempo considerou-se que alguns corpos (terra e água) fossem pesados por sua própria natureza  outros corpos (ar e fogo), por sua natureza, ao contrário, fossem leves.

1) O juízo analítico é um juízo que formulamos a priori, sem necessidade de recorrer à experiência, dado que, com ele, expressamos de modo diferente o mesmo conceito que expressamos no sujeito. Conseqüentemente, ele é universal e necessário, mas não amplificador do conhecer. Portanto, a ciência se vale amplamente desses juízos para esclarecer e explicar muitas coisas, mas não se baseia neles quando amplia o seu próprio conhecimento. O juízo típico da ciência, portanto, não pode ser o juízo analítico a priori

2) O juízo sintético, ao contrário, amplia sempre o conhecimento, visto que nos diz sempre algo de novo do sujeito, que não estava contido implicitamente nele. Ora, os juízos sintéticos mais comuns são aqueles que formulamos baseando-nos na experiência, ou seja, os juízos experimentais.

Os juízos experimentais, portanto, são todos sintéticos e, como tais, “ampliadores do conhecer". Entretanto, a ciência não pode se basear neles porque, precisamente por dependerem da experiência, são todos a posteriori e, como tais, não podem ser universais e necessários. Dos juízos de experiência podemos, quando muito, extrair algumas generalizações, mas nunca a universalidade e a necessidade.

3) Portanto, está claro que a ciência se baseia em um terceiro tipo de juízos, ou seja, naquele tipo de juízo que, a um só tempo, une a aprioridade, ou seja, a universalidade e a necessidade, com a fecundidade, ou seja, a "sinteticidade”. Os juízos constitutivos da ciência são juízos "sintéticos a priori”. Kant está certíssiino de que assim é.

Todas as operações aritméticas, por exemplo, são “síntese a priori”. O juízo 5 + 7 = 12 não é analítico, mas sintético: com efeito, nós recorremos aos dedos das mãos quando contamos (deve-se pensar também nas operações que realizamos com o ábaco), ou seja, à intuição, graças à qual nós vemos nascer (sinteticamente) o novo número correspondente à soma. 

O mesmo vale para os juízos da geometria. Escreve Kant: “A proposição de que a linha reta é a mais breve entre dois pontos e uma proposição sintética, porque o conceito de reta não contém determinações de quantidade, mas só de qualidade." O conceito de linha “mais breve" (qualidade), portanto, é totalmente acrescentado, não podendo ser extraído por nenhuma análise do conceito de “linha reta”. Entretanto, aqui, deve-se recorrer à ajuda da intuição, somente através da qual é possível a síntese.

Analogamente, o juízo da física segundo o qual “em todas as mudanças do mundo corpóreo a quantidade da matéria permanece invariada" é um juízo sintético a priori, porque, como diz Kant, “no conceito de matéria eu não penso a permanência, mas somente a sua presença no espaço, no sentido que o preenche. Por isso, eu ultrapasso realmente o conceito de matéria para acrescentar-lhe a priori algo que eu não pensava naquele conceito. Portanto, a proposição não é analítica, mas sintética e, no entanto, pensada a priori". E o mesmo vale para todas as proposições fundamentais da física. E também a metafísica, pelo menos em suas pretensões, opera com juízos sintéticos a priori - trata-se, porém, de ver se com fundamento ou então sem fundamento


E assim chegamos ao ponto mais importante: uma vez estabelecido que o saber científico é constituído por juízos sintéticos a priori, se descobrirmos qual é o fundamento da síntese a priori poderemos resolver todos os problemas relativos ao conhecimento humano, à sua estatura, aos seus âmbitos legítimos, aos seus limites e ao seu horizonte. Em suma, poderemos estabelecer em geral o valor e os limites do conhecimento humano. E é precisamente isso que Kant se propõe a fazer com a sua Crítica

Mas procuremos formular melhor a questão, relacionando-a também com o problema do fundamento das outras formas de juízo. 

1) O fundamento dos juízos analíticos a priori é logo estabelecido: tratando-se de juízos nos quais o sujeito e o predicado se equivalem, então, quando os formulamos, nós nos baseamos no princípio de identidade e de não-contradição. Se, por exemplo, eu dissesse que o corpo não é extenso, estaria me contradizendo, como se dissesse que o corpo não é corpo (dado que corporeidade = extensão).

2) O fundamento dos juízos sintéticos a posteriori, visto que são juízos experimentais, é a experiência, por definição. 

3) Os juízos sintéticos a priori não se baseiam no princípio de identidade (nem no correlato princípio de não-contradição) porque aquilo que eles conectam não é um predicado igual (correspondente) ao sujeito, mas diferente; também não se baseiam na experiência, porque são a priori, ao passo que tudo aquilo que deriva da experiência é a posteriori e, ademais, são universais e necessários, ao passo que tudo aquilo que deriva da experiência, como dissemos, nunca é universal nem necessário.

Eis, então, o problema de Kant: “O que é aqui a incógnita X, na qual se apóia o intelecto quando crê encontrar fora do conceito A um predicado B, estranho a ele e que, apesar disso, acredita estar conjugado a ele?".

A descoberta dessa incógnita X constitui o sumo do criticismo, vale dizer, aquilo a que Kant foi levado pela “grande luz" de 1769. Examinemos, portanto, como é que Kant chegou à solução dessa incógnita.

2.2. A “revolução copernicana" realizada por Kant

Como ciência que determina a priori (e não empiricamente) o seu sujeito, a matemática já se constituiu há muito tempo, "com o maravilhoso povo dos gregos”, por obra de um único homem. Inicialmente, realça Kant, a matemática teve que proceder por meio de tentativas incertas (especialmente entre os egípcios), mas depois, em certo momento, realizou-se uma transformação definitiva, que deve “ser atribuída a uma revolução, desencadeada pela feliz idéia de um só homem, com uma pesquisa tal que, depois dela, o caminho a seguir não poderia mais ser perdido e a estrada segura da ciência ficava aberta e traçada para todos os tempos e por trajeto infinito".

Com efeito, prossegue Kant, “o primeiro que demonstrou o triângulo isósceles (tenha se chamado Tales ou como se quiser que tenha se chamado) foi atingido por uma grande luz, porque compreendeu que não devia seguir passo a passo aquilo que via na figura nem se apegar ao simples conceito dessa figura como que para apreender as suas propriedades, mas que, por meio daquilo que, pelos seus próprios conceitos, pensava e representava (por construção) devia produzi-la e que, para saber com segurança alguma coisa a priori, não devia atribuir a essa coisa senão aquilo que brotava necessariamente daquilo que, segundo o seu conceito, ele próprio lhe havia posto". Em suma, a geometria nasceu quando Tales (ou outro alguém em seu lugar) compreendeu que ela era uma criação da mente humana e que não dependia de nada mais além da mente humana.

Kant observa ainda que, muito tempo depois, o mesmo aconteceu com a física, que surgiu como ciência graças a uma “revolução” realizada no modo de pensar anterior. Essa revolução deu-se através de um deslocamento do epicentro da pesquisa física dos objetos para a razão humana e com a descoberta de que a razão encontra na natureza aquilo mesmo que nela coloca.

Eis as palavras de Kant, muito importantes: “Quando Galileu fez suas esferas rolarem sobre um plano inclinado, com um peso escolhido por ele mesmo, e Torricelli fez suportar no ar um peso que ele próprio já sabia ser igual ao de uma coluna d'água conhecida e quando, mais tarde, Stahl transformou os metais em cal e esta de novo em metal, retirando-lhe ou acrescentando-lhe alguma coisa, isso foi uma revelação luminosa para todos os investigadores da natureza. Eles compreenderam que a razão vê só aquilo que ela própria produz segundo o seu desígnio e que, com os princípios dos seus juízos segundo leis imutáveis, ela deve estar na frente e obrigar a natureza a responder às suas perguntas e, por assim dizer, não se deixar guiar por ela com rédeas, porque, caso contrário, feitas ao acaso e sem um desígnio preestabelecido, nossas observações não corresponderiam a uma lei necessária, que, no entanto, a razão procura  da qual necessita. Portanto, é necessário que a razão se apresente à natureza tendo na mão os princípios segundo os quais somente é possível que os fenômenos concordantes tenham valor de lei e na outra o experimento que ela imaginou segundo esses princípios, para ser instruída por ela, naturalmente, mas não na qualidade de aluno que escuta tudo o que apraz ao professor e sim na qualidade de juiz, que obriga as testemunhas a responderem às perguntas que ele lhes dirige. A física, portanto, é devedora de tão feliz revolução realizada em seu método por essa única idéia de que a razão deve (sem fantasiar em torno dela) procurar na natureza, em conformidade com aquilo que ela própria coloca, aquilo que deve apreender dela e da qual nada poderia saber por si mesma. E assim, pela primeira vez, a física pôde ser colocada no caminho seguro da ciência, do qual, há muitos séculos, ela nada mais era do que uma simples apalpadela.” 

Na metafísica, porém, registra-se um contínuo caminhar tateando e uma grande confusão. Em outras palavras, a metafsrca permaneceu na fase prescientífica. Como é possível? Será que é impossível que ela se constitua como ciência? E, se assim fosse, por que então a natureza deu à razão humana tão forte tendência aos problemas metafísicos? Até agora temos errado o caminho ou será que não há caminho que leve a metafísica a se constituir como ciência?

A resposta a esse quesito, que coincide com a descoberta da incógnita X, de que já falamos, foi adquirida por Kant através de uma “revolução” que ele próprio definiu como “revolução copernicana". 

Até então, se havia tentado explicar o conhecimento supondo que o sujeito devia girar em torno do objeto. Mas, como desse modo muitas coisas permaneciam inexplicadas, Kant inverteu os papéis, supondo que o objeto é que deveria girar em torno do sujeito.
Copérnico havia feito uma revolução análoga: como, mantendo a Terra firme no centro do universo e fazendo os planetas girarem em tomo dela, muitos fenômenos permaneciam inexplicados, ele pensou em mover a Terra e fazê-la girar em torno do Sol. Deixando de lado a metáfora, Kant considera que não é o sujeito que, conhecendo,
descobre as leis do objeto, mas sim, ao contrário, que é o objeto, quando é conhecido, que se adapta às leis do sujeito que o recebe cognoscitivamente. 

Vejamos a página de Kant que abriu uma nova época no filosofar e que teve conseqüências de alcance histórico e teórico incalculáveis: "Até agora, admitia-se que todo o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos, mas todas as tentativas de estabelecer em torno deles alguma coisa a priori, por meio de conceitos, com os quais se teria podido ampliar o nosso conhecimento, assumindo tal pressuposto, não conseguiram nada. Portanto, finalmente, faça-se a prova de ver se não seríamos mais afortunados nos problemas da metafísica formulando a hipótese de que os objetos devem se regular pelo nosso conhecimento, o que se coaduna melhor com a desejada possibilidade de um conhecimento a priori, que estabeleça alguma coisa em relação aos objetos antes que eles nos sejam dados. Aqui, é exatamente como na primeira idéia de Copérnico, que, vendo que não podia explicar os movimentos celestes admitindo que todo o exército dos astros girasse em torno do espectador, tentou ver se não teria melhor êxito fazendo girar o observador e deixando os astros em repouso. Ora, na metafísica, pode-se pensar em fazer uma tentativa semelhante (...).”

Com sua “revolução”, portanto, Kant supôs que não é a nossa intuição sensível que se regula pela natureza dos objetos, mas que são os objetos que se regulam pela natureza de nossa faculdade intuitiva. Analogamente, ele supõe que não é o intelecto que deve se regular pelos objetos para extrair os conceitos, mas, ao contrário, que são os objetos, enquanto são pensados, que se regulam pelos conceitos do intelecto e se coadunam com eles. Em suma, para concluir, "das coisas, nós só conhecemos a priori aquilo que nós mesmos nelas pomos”.

Agora, então, está claro qual é, para Kant, o "fundamento" dos juízos sintéticos a priori: é o próprio sujeito que sente e pensa, ou melhor, é o sujeito com as leis da sua sensibilidade e do seu intelecto, como passaremos a ver melhor e mais em pormenores. 

Mas, antes de passar ao exame da sensibilidade e das suas leis, é preciso ainda esclarecer o significado do termo “transcendental", que atravessa de um lado a outro a Crítica da razão pura e que tem importância basilar. 

Kant usa esse termo com muita freqüência, a ponto de abusar e em várias acepções (alguns estudiosos, apenas na Crítica da razão pura, contaram nada menos que treze acepções diferentes), mas somente uma é a acepção verdadeiramente peculiar e inteiramente nova. Em sua nova acepção, Kant define o termo do seguinte modo: "Chamo 'transcendental' todo conhecimento que não se relaciona com objetos, mas sim com o nosso modo de conhecer os objetos, enquanto for possível a priori."

Muitos acharam essa concepção muito obscura e alguns contemporâneos a subentenderam grosseiramente. Mas, levando-se em conta o que já dissemos, é possível esclarecê-la com facilidade: os “modos de conhecer a priori do sujeito" são a sensibilidade e o intelecto; portanto, Kant chama de transcendentais os modos ou as estruturas da sensibilidade e do intelecto. Essas estruturas, portanto, enquanto tais, são a priori, precisamente porque são próprias ao Sujeito e não do objeto, mas são estruturas de tal natureza que representam as condições sem as quais não é possível nenhuma experiência de nenhum objeto. O transcendental, portanto, é a condição da cognoscibilidade dos objetos (a condição da intuibilidade e da pensabilidade dos objetos).

Uma referência à "revolução copernicana” tornará mais evidente o que estamos dizendo. Para a metafísica clássica, “transcendentais” eram as condições do ser enquanto tal, ou seja, aquelas condições sem as quais deixa de existir o próprio objeto; mas, depois da revolução kantiana, não é mais possível falar de condições do objeto em si, mas somente de condições do objeto-em-relação-ao-Sujeito. Em conclusão, “transcendental” é aquilo que o Sujeito põe nas coisas no ato mesmo de conhecê-las, no sentido que já explicamos e que pouco a pouco iremos esclarecendo.

2.3. A estética transcendental (doutrina do conhecimento sensível e de suas formas a priori)

O nosso conhecimento se divide em “dois ramos”, desde sempre admitidos pela filosofia, ou seja, conhecimento dos “sentidos” e conhecimento do “intelecto”. Essas duas formas de conhecimento não são, como queria Leibniz, diferentes só por grau (conhecimento obscuro o primeiro e conhecimento claro o segundo), mas também por natureza. Entretanto, Kant também admite “que provavelmente brotam de uma raiz comum, mas desconhecida para nós”. Os objetos nos são “dados" pelos sentidos, ao passo que são “pensados” pelo intelecto.

Então, será preciso estudar separadamente as duas formas do conhecimento. A investigação sobre a sensibilidade deve ser objeto da primeira parte da abordagem e a investigação sobre o intelecto da segunda, porque primeiro os objetos devem ser dados para depois serem pensados.

A doutrina do sentido e da sensibilidade é chamada por Kant de “estética”, não no sentido hoje usual do termo, mas no seu significado etimológico: em grego, aísthesis significa “sensação” e “percepção sensorial". A “estética transcendental”, portanto, é a doutrina que estuda as estruturas da sensibilidade, o modo como o homem recebe as sensações e como se forma o conhecimento sensível. Como escreve Kant, “chamo de estética transcendental uma ciência de todos os princípios a priori da sensibilidade”, onde, por “princípios a priori", ele entende precisamente as estruturas ou o modo de funcionamento da sensibilidade.

Mas, para compreender bem a estética transcendental e tudo o que daí decorre, é preciso antes proceder a uma série de clarificações terminológicas, para as quais o próprio Kant chama a atenção do leitor com muito cuidado.

a) A “sensação” é uma pura modificação ou impressão que o sujeito recebe (passivamente) pela ação do objeto (como, por exemplo, quando sentimos calor ou frio, vemos vermelho ou verde, provamos doce ou amargo) ou, se assim se preferir, é uma ação que o objeto produz sobre o sujeito, modificando-o.

b) A “sensibilidade” é a faculdade que temos de receber as sensações, ou seja, a faculdade através da qual nos somos suscetíveis de sermos modificados pelos objetos.

c) A “intuição” é o conhecimento imediato dos objetos. Segundo Kant o homem é dotado de um só tipo de intuição: a intuição própria da sensibilidade. O intelecto humano não intui, mas, quando pensa, refere-se sempre aos dados que e são fornecidos pela sensibilidade.

d) O objeto da intuição sensível chama-se “fenômeno”, que significa (do grego phainómenon) "aparição", ou “manifestação". No conhecimento sensorial, não captamos o objeto como é em si mesmo mas, precisamente, tal como ele aparece para nós, porque como dissemos, a sensação (o conhecimento sensorial) é uma “modificação” que o objeto produz sobre o sujeito e, portanto, é um “aparecimento” do objeto tal como ele se “manifesta" através da própria modificação.

e) No “fenômeno” (= nas coisas como aparecem no conhecimento sensível), Kant distingue uma "matéria" e uma "forma". A "matéria” é dada pelas simples sensações ou modificações produzidas em nós pelo objeto (cf. o ponto a) e, como tal, só pode ser a posteriori (não podemos sentir frio ou calor ou então sentir doce ou amargo senão em conseqüência da experiência, não antes). A “forma”, ao contrário, não vem das sensações e da experiência, mas sim do Sujeito, sendo aquilo pelo qual os múltiplos dados sensoriais são "ordenados em determinadas relações". Em palavras mais simples, poder-se-ia dizer que a "forma" de que fala Kant é o "modo de funcionamento” da nossa sensibilidade, que, no momento em que recebe os dados sensoriais, naturalmente "os organiza". E como a "forma" é o modo de funcionamento da sensibilidade, esta existe a priori em nós.

f) Kant chama de “intuição empírica” o conhecimento (sensível) em que estão concretamente presentes as sensações e de “intuição pura" a “forma" da sensibilidade considerada prescindindo da matéria (ou seja, prescindindo das sensações concretas).

g) As “intuições puras” ou “formas" da sensibildiade são somente duas: o espaço e o tempo.

Está claro, então, que, para Kant, espaço e tempo deixam e ser determinações ontológicas ou estruturas dos objetos e (em consequência da revolução copernicana de que falamos) tornam-se modos e funções próprios do Sujeito, "formas puras da intuição sensível como princípios do conhecimento". Por conseguinte, é evidente que nós não devemos sair de nós mesmos para conhecer as “formas” sensíveis dos fenômenos (espaço e tempo), porque já as temos em nós mesmos "a priori”.

Para Kant, o espaço é a forma (o modo de funcionamento) do sentido externo, ou seja, a condição à qual deve satisfazer a representação sensível de objetos externos; já o tempo é a forma (o modo de funcionamento) do sentido interno (e, portanto, a forma de todo dado sensível interno enquanto por nós conhecido). Assim, o espaço abarca todas as coisas que podem aparecer exteriormente e o tempo abarca todas as coisas que podem aparecer interiormente.

Conseqüentemente, Kant contesta com muito vigor qualquer pretensão no sentido de que o espaço e o tempo valem como realidades absolutas, nega que eles possam valer “também independentemente da forma da nossa intuição sensível” e, por fim, nega que eles possam “ser inerentes absolutos das coisas como suas condições ou qualidades". Outros seres racionais, diferentes dos homens, poderiam captar as coisas não espacialmente e não temporalmente. Nós só captamos as coisas como espacial e temporalmente determinadas porque temos uma sensibilidade assim configurada (= uma sensibilidade que funciona desse modo).

Então, fica claro o que o nosso filósofo quer dizer quando fala de “realidade empírica" e de “idealidade transcendental” do espaço e do tempo. Eles têm “realidade empírica" porque nenhum objeto pode ser dado aos nossos sentidos sem se submeter a eles e têm “idealidade transcendental” porque não são inerentes às coisas como suas condições, mas são apenas “formas da nossa intuição sensível” (não são formas do objeto, mas sim formas do Sujeito).

Agora, estamos em condições de entender uma célebre passagem em que Kant resume o seu pensamento sobre o conhecimento sensível e define a primeira etapa da “revolução copernicana", enunciando com notável rigor e eficácia os pontos básicos do seu criticismo:

“Assim, nós quisemos dizer que toda intuição nossa (recorde-se que, para Kant, a intuição é só sensível) nada mais é do que a representação de um fenômeno, que as coisas que nós intuímos, em si mesmas, não são aquilo pelo qual nós as intuímos nem as suas relações são tais quais como nos aparecem e que, se suprimíssemos o nosso sujeito ou até somente a natureza subjetiva dos sentidos em geral, toda a natureza, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo e inclusive o próprio espaço e o próprio tempo desapareceriam, pois, como fenômenos, não podem existir em si, mas somente em nós. Aquilo que possa existir nos objetos em si, separados da receptividade dos nossos sentidos, permanece inteiramente ignorado por nós. Nós não conhecemos senão o nosso modo de capta-los, que nos é peculiar e que não é nem necessário que pertença a todo ser (= também a outros seres racionais, mas não humanos), embora pertença a todos os homens. Somente com ele é que nós temos a ver. O espaço e o tempo são as formas puras dele (= do modo de perceber os objetos); a sensação, em geral, é a matéria. Aquela (= a forma) nós só a podemos conhecer a priori, ou seja, antes de toda real percepção e, por isso, a chamamos de intuição pura; esta (= a matéria), ao contrário, é aquilo que, em nosso conhecimento, faz com que digamos conhecimento a posteriori, isto é, intuição empírica. Aqueles (= espaço e tempo) pertencem em absoluto à nossa sensibilidade, qualquer que seja a espécie das nossas sensações; estas (= as sensações) podem ser muito diversas. Assim, ainda que levássemos essa nossa intuição ao mais alto grau de clareza, não estaríamos nos aproximando mais da natureza dos objetos em si; já que, em todo caso, nós só poderíamos conhecer completamente o nosso modo de intuição, ou seja, a nossa sensibilidade e sempre nas condições originariamente inerentes ao sujeito, de espaço e de tempo; mas, por mais iluminado que seja o conhecimento dos seus fenômenos, nunca se tornaria conhecido para nós o que poderiam ser os objetos em si mesmos."

Tal como são em si, os objetos só podem ser captados pela intuição própria de um intelecto originário (Deus) no ato mesmo em que os coloca. Portanto, a nossa intuição, precisamente porque não é originária, é sensível, ou seja, não é produtora dos seus conteúdos, mas é dependente da existência de objetos que agem sobre o sujeito, modificando-o através das sensações. Assim, a “forma” do conhecimento sensível depende de nós, mas o conteúdo não depende de nós, sendo-nos “dado”.

Assim, já estamos em condições de compreender agora quais são os fundamentos da geometria e da matemática, bem como as razões da possibilidade de construir a priori essas ciências. Tanto uma como a outra não se fundam no "conteúdo” do conhecimento, mas sim na “forma", ou seja, na intuição pura do espaço e do tempo, e exatamente por isso têm universalidade e necessidade absolutas, ou seja, porque o espaço e o tempo são estruturas do Sujeito (e não do objeto) e, como tais, são a priori. Todos os juízos sintéticos a priori da geometria (todos os postulados e todos os teoremas) dependem da intuição a priori do espaço. Quando digo “dadas três linhas, construir um triângulo”, eu posso construir o triângulo precisamente determinando o espaço sinteticamente a priori através da minha intuição. E o mesmo vale para as várias proposições geométricas.

Já a matemática se funda no tempo: “somar”, “subtrair”, “multiplicar” etc., são operações que, como tais, se estendem no tempo. Se pensarmos no modo intuitivo pelo qual indicamos as operações como o ábaco (acrescentamos uma bolinha após a outra; subtraímos uma bolinha após a outra etc.), tudo isso ficará bem evidente.

Podemos então apresentar a primeira resposta precisa ao problema do fundamento da síntese a priori Eis como Kant a resume no fim da abordagem da estética transcendental: “Agora, nós temos um dos pontos necessários à solução do problema geral da filosofia transcendental; como são possíveis os juízos sintéticos a priori?” Esse ponto consiste, precisamente, nas “intuições puras a priori, espaço e tempo". Nós realizamos juízos sintéticos a priori baseando-nos em nossas intuições. Entretanto, conclui Kant, “por essa razão, tais juízos não vão além dos objetos dos sentidos (dado que a intuição do homem é somente sensível), podendo valer apenas para objetos de uma experiência possível", mas não para os objetos-em-si.

A geometria e a matemática, portanto, têm valor universal e necessário, mas esse valor de universalidade e necessidade se restringe ao âmbito fenomênico.

2. 4. A analítica transcendental e a doutrina do conhecimento intelectivo e de suas formas a priori

2.4.1. A lógica e as suas divisões segundo Kant

Além da sensibilidade, como já dissemos, o homem tem ainda uma segunda fonte de conhecimento: o intelecto. Através da primeira, os objetos nos são "dados”; através do segundo, eles são “pensados”. Escreve Kant: “A intuição e os conceitos, portanto, constituem os elementos de todo o nosso conhecimento, de modo que nem os conceitos, sem que de alguma forma lhes corresponda uma intuição, nem a intuição, sem os conceitos, podem, nos dar o conhecimento."

Diz ainda Kant: “Nenhuma dessas duas faculdades deve ser anteposta à outra. Sem sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem intelecto, nenhum objeto seria pensado. Sem conteúdo, os pensamentos são vazios; sem conceitos, as intuições são cegas. (...). Essas duas faculdades ou capacidades não podem ter suas funções trocadas. O intelecto não pode intuir nada, nem os sentidos podem pensar nada. O conhecimento só pode brotar de sua união. Mas nem por isso se devem confundir os seus papéis; ao contrário, há muita razão para separá-los acuradamente e mantê-los distintos. Por isso, nós distinguimos a ciência das leis da sensibilidade em geral, ou seja, a estética, da ciência do intelecto em geral, isto é, a lógica.”

A "lógica" portanto é a ciência do intelecto em geral, dividindo-se em: a) lógica geral e b) lógica transcendental.

a) A primeira prescinde dos conteúdos, limitando-se a estudar as leis e os princípios gerais do pensamento, sem os quais não existiria uso do intelecto. Trata-se da célebre lógica "formal" descoberta por Aristóteles e, segundo Kant, nascida quase que perfeita, tanto que “não teve que dar nenhum passo atrás”, tendo de sofrer apenas correções de pormenor.

b) Mas o que interessa a Kant na Crítica da razão pura não é a lógica formal, mas sim a lógica transcendental, que não prescinde do conteúdo. Qual é então o conteúdo que a lógica transcendental pode ter por objeto, além das próprias formas do pensamento? Kant distingue os conceitos empíricos dos conceitos puros: empíricos são aqueles conceitos que contêm elementos sensíveis; puros, ao contrário, são aqueles aos quais não está vinculada sensação. Já havíamos visto uma distinção análoga na estética, onde Kant falava de intuições puras e intuições empíricas: intuições puras são as formas do espaço e do tempo, intuições empíricas são aquelas em que, ao espaço e ao tempo, agregam-se as sensações.

Ora, mesmo prescindindo de todo conteúdo empírico, o intelecto pode pelo menos ter como conteúdo as intuições puras de espaço e de tempo. E essa é exatamente a lógica transcendental, que, portanto, se abstrai dos conteúdos empíricos, mas não dos laços com as intuições puras, ou seja, dos laços com o espaço e o tempo. Ademais, enquanto a lógica formal não considera a origem dos conceitos, limitando-se a estudar as leis que regulam os seus nexos, a lógica transcendental estuda a origem dos conceitos e se ocupa especificamente com aqueles conceitos que não provêm dos objetos, mas que provêm a priori do intelecto e, no entanto, se referem a priori aos próprios objetos.

Depois, Kant distingue a lógica transcendental em “analítica” e “dialética”. Sobre a dialética, falaremos adiante. No que se refere à “analítica” (da qual trataremos agora), devemos recordar que o termo é de gênese aristotélica. “Analítica” deriva do grego analyo (analysis), que significa “decompor uma coisa em seus elementos constitutivos". Em seu sentido transcendental, portanto, a analítica decompõe o conhecimento intelectivo nos seus elementos essenciais: aliás, decompõe “a própria faculdade intelectiva” para nela procurar os conceitos a priori e estudar o seu uso de modo sistemático.

Assim, fica clara a seguinte passagem de Kant: “Na lógica transcendental, nós isolamos o intelecto (como, na estética transcendental, a sensibilidade) e, de todo o nosso conhecimento, destacamos apenas a parte do pensamento, que tem a sua origem unicamente no intelecto. Mas o uso desse conhecimento puro, como a sua condição, baseia-se no seguinte: que, na intuição, nos sejam dados objetos aos quais possa ser aplicado. Pois, sem a intuição, todo o nosso conhecimento carece de objeto, permanecendo então inteiramente vazio. Assim, a parte da lógica transcendental que expõe os elementos do conhecimento puro do intelecto e os princípios sem os quais nenhum objeto pode ser absolutamente pensado é a analítica transcendental e, ao mesmo tempo, uma lógica da verdade. Com efeito, nenhum conhecimento pode contraditá-la sem, ao mesmo tempo, perder todo conteúdo, isto é, toda a relação com um objeto qualquer e, portanto, toda verdade."

Por fim, também fica clara 'esta última passagem, não menos significativa: "Entendo por 'analítica' dos conceitos não a sua análise ou o procedimento, comum nas pesquisas filosóficas, de decompor em seu conteúdo os conceitos que se apresentam e esclarecê-los, mas sim a decomposição, ainda pouco tentada, da própria faculdade intelectiva, para pesquisar a possibilidade dos conceitos a priori, graças ao fato de procurá-los somente no intelecto, como em seu lugar de origem, e de analisar o seu uso puro em geral, já que essa é a única função própria de uma filosofia transcendental (...)."

2.4.2. As categorias e a sua "dedução transcendental"

Só a sensibilidade é intuitiva; já o intelecto é discursivo: por isso, os conceitos do intelecto não são intuições, mas funções. A função própria dos conceitos consiste em unificar e ordenar um múltiplo sob uma representação comum. Sendo assim, o intelecto é a faculdade de julgar, precisamente porque unificar um múltiplo sob uma representação comum é julgar. Na lógica transcendental, como sabemos, o múltiplo a unificar é apenas o múltiplo puro dado pela intuição pura (espaço e tempo). O intelecto atua sobre esse múltiplo com uma ação unificadora, que Kant chama propriamente “síntese". Os vários modos com que o intelecto unifica e sintetiza são os “conceitos puros” do intelecto ou “categorias”.

Mais uma vez, Kant usa um termo aristotélico, rico de uma gloriosa história, mas muda o seu significado em função da “revolução copernicana", assim como havia feito em relação ao espaço e ao tempo. Para Aristóteles, as categorias eram leges entis; para Kant, tornam-se leges mentis. De modos do ser, eles se transformam em modos de funcionamento do pensamento. Os conceitos puros kantianos ou categorias, portanto, não são conteúdos, mas sim formas: "formas sintetizadoras”.

Se os conceitos puros ou categorias fossem determinações ou nexos dos entes, nós só poderíamos ter deles um conhecimento empírico e a posteriori e, conseqüentemente, nenhum conhecimento universal e necessário poderia se basear neles.

Agora, então, que os conceitos puros ou categorias são leges mentis, será possível fazer a sua relação ou “enumeração” completa a priori. Segundo Kant, Aristóteles, ao redigir a “tábua” de suas categorias, procedeu de modo apressado e episódico, sem um "fio condutor” que lhe permitisse alcançar a perfeita ordem e caráter completo.

Mas Kant acredita ter encontrado tal fio condutor. Ele consiste no seguinte: como “pensar" é "julgar ", então deve haver tantas "formas" do pensamento puro, ou seja, tantos “conceitos puros” ou “categorias” quantas são as formas do juízo.

Escreve ele: “A mesma função que dá unidade às diversas representações em um juízo, portanto, dá unidade também à simples síntese das diversas representações (...); unidade que (...) se chama conceito puro do intelecto (ou categoria). “Ora, a lógica formal (que, para Kant, como sabemos, se constituiu de modo perfeito) distinguiu doze formas de juízo. Conseqüentemente, doze deverão ser também as correspondentes categorias. Eis a tábua dos doze juízos e a correspondente tábua das doze categorias, com as respectivas correspondências em paralelo.

TÁBUA DOS JUÍZOS
TÁBUA DAS CATEGORIAS
I. Quantidade
1. Universais
2. Particulares
3. Singulares
1. Unidade
2. Pluralidade
3. Totalidade
II. Qualidade
1. Afirmativos
2. Negativas
3. Infinitos
1. Realidade
2. Negação
3. Limitação
III. Relação
1. Categóricos

2. Hipotéticos

3. Disjuntivos

1. Da inerência e subsistência
(substância e acidente)
2. Da causalidade e dependência
(causa e efeito)
3. Da reciprocidade (ação recíproca
entre agente e paciente)
IV. Modalidade
1. Problemáticos
2. Assertivos
3. Apodíticos
1. Possibilidade-impossibilidade
2. Existência-inexistência
3. Necessidade-contingência

Depois de determinar o número das categorias, Kant deve justificar o seu valor. Esse é um dos pontos mais delicados da Crítica, a ponto de Kant ter sentido a necessidade de reescrever completamente as páginas relativas a esse tema.

Esse problema relativo as categorias foi chamado por Kant, usando uma terminologia jurídica, de “dedução” transcendental, que significa precisamente justificação da pretensão da validade cognoscitiva das próprias categorias. É compreensível a dificuldade encontrada por nosso filósofo nesse ponto, porque se trata de demonstrar como é que conceitos puros a priori devem se referir de maneira necessária aos objetos.

Kant encontrou a solução tomando por modelo a solução que já dera para a justificação da validade objetiva do espaço e do tempo, que são formas a priori da sensibilidade. Assim como as coisas, para serem conhecidas sensivelmente, devem se adequar às formas da sensibilidade, da mesma forma não é de modo algum estranho que, para serem pensadas, devam necessariamente se adequar às leis do intelecto e do pensamento. Assim como o Sujeito, captando sensivelmente as coisas, as espacializa e temporaliza, da mesma forma, pensando-as, as ordena e determina conceitualmente segundo os modos próprios do pensamento. Os conceitos puros ou categorias, portanto, são as condições pelas quais e somente pelas quais é possível que algo seja pensado como objeto de experiência, assim como o espaço e o tempo são as condições pelas quais e somente pelas quais é possível que algo seja captado sensivelmente como objeto de intuição.

Resumindo lucidamente o seu pensamento sobre a questão, escreve Kant: "Há somente dois caminhos pelos quais se pode pensar numa concordância necessária da experiência com os conceitos dos seus objetos: ou a experiência torna possíveis esses conceitos ou estes tornam possível a experiência. O primeiro não se verifica em relação às categorias (e nem mesmo em relação à intuição sensível pura), porque elas são conceitos a priori e, portanto, independentes da experiência (a afirmação de uma origem empírica seria uma espécie de generatio aequivoca). Assim, resta somente o segundo caminho (por assim dizer, um sistema de epigênese da razão pura [= geração da experiência das categorias]), ou seja, de que as categorias, do lado do intelecto, contêm os fundamentos da possibilidade de toda experiência em geral.”

Trata-se de mais uma etapa da “revolução copernicana” que se conclui, culminando com a concepção do “Eu penso”, de que devemos falar agora.

2.4.3. "Eu penso" ou Apercepção transcendental

O resultado conclusivo a que leva a “revolução copernicana” realizada por Kant é que o fundamento do objeto esta no Sujeito. Aquele vínculo necessário que constitui a unidade do objeto de experiência, na realidade, é a unidade sintética do Sujeito.

O conceito de objeto, tradicionalmente concebido como aquilo que está contra e se opõe ao Sujeito, para Kant, ao contrário, supõe estruturalmente o Sujeito. A ordem e a regularidade dos objetos da natureza é a ordem que o Sujeito, pensando, introduz na natureza.

É compreensível, portanto, que Kant tenha introduzido a figura teórica da "Apercepção transcendental e a figura correlata do “Eu penso" como momentos culminantes da analitica dos conceitos. Com efeito, como as categorias são doze (vale dizer, doze formas de síntese que o pensamento explica ou doze modos e unificação do múltiplo), é evidente que elas supõem uma unidade originária e suprema, que deve guiar tudo. Essa unidade suprema é a unidade da “Consciência" ou da "Autoconsciência , que Kant chama precisamente do “Eu penso”.

O “Eu penso” deve poder acompanhar toda representação permanecendo idêntico, caso contrário, eu não poderia ter consciência dela ou seria como se eu não a tivesse e, além disso, com a variação das representações, me tornaria "um eu multicor" , ou seja, mudaria com a mudança das próprias representações. O ponto focal em que todo o multiplo se unifica é a representação do Eu penso, que, obviamente, não é o eu individual de cada sujeito empírico, mas sim a estrutura do pensar comum a todo sujeito empírico (aquilo pelo qual cada sujeito empírico é sujeito pensante e consciente).

Dada a grande importância historico-teórica dessa figura especulativa, que servirá de base para o idealismo, através do repensamento que dela faria Fichte, leremos algumas afirmações basilares de Kant a esse respeito: “O Eu penso deve poder acompanhar todas as representações, caso contrário seria representado em mim algo que não poderia de modo algum ser pensado, o que, portanto, significa precisamente que a representação seria impossível ou que, pelo menos para mim, não existiria. A representação que pode ser dada antes de todo pensamento é chamada intuição (= espaço e tempo). Assim. todo múltiplo da intuição (= espaço e tempo) tem uma relação necessária com o Eu penso, no mesmo sujeito em que esse múltiplo o encontra. Mas essa representação é um ato da espontaneidade, isto é, não pode ser considerada como pertencente à sensibilidade (que é predominantemente receptividade e, portanto, passividade). Eu a chamo apercepção pura, para distingui-la da empírica, ou também apercepção originária, porque é precisamente aquela autoconsciência que, enquanto produz a representação Eu penso - que deve poder acompanhar todas as outras e é una e idêntica em toda consciência -, não pode mais ser acompanhada por nenhuma outra. Eu também chamo a sua unidade de unidade transcendental da autoconsciência, para indicar a possibilidade do conhecimento a priori que daí deriva. E isso porque as múltiplas representações que são dadas em certa intuição não seriam todas juntas minhas representações se todas juntas não pertencessem a uma autoconsciência, isto é, enquanto minhas representações (muito embora eu não tenha consciência delas como tais), elas devem necessariamente se submeter à condição na qual somente podem coexistir em uma autoconsciência universal, já que, caso contrário, não me pertenceriam em comum.” E, sendo assim, Kant destaca, “a unidade sintética da apercepção (...) é o ponto mais alto ao qual deve se ligar todo o uso do intelecto, toda a própria lógica e, depois desta, a filosofia transcendental; aliás, essa faculdade é o próprio intelecto".

Outra passagem nos dá a marca perfeita dessa concepção kantiana: "O pensamento 'estas representações dadas na intuição (espácio-temporal) me pertencem todas' soa da mesma forma que 'eu as uno em uma autoconsciência' ou, pelo menos, posso uni-las; e, embora isso ainda não seja a consciência da síntese das representações, entretanto pressupõe a sua possibilidade; isto é, eu chamo todas aquelas representações de minhas representações só porque eu posso abranger a sua multiplicidade em uma consciência, caso contrário eu deveria ter um Eu multicor, diverso, correspondente às representações das quais tenho consciência. A unidade sintética do múltiplo das intuições, enquanto é dada a priori, constitui portanto o fundamento da identidade da própria apercepção, que precede a priori todo meu pensamento determinado. Mas a unificação, portanto, não está nos objetos e não pode ser considerada como algo que é atingido por eles mediante percepção e, desse modo, assumido primeiramente no intelecto, mas é apenas uma função do intelecto, que outra coisa não é do que a faculdade de unificar a priori e de submeter à unidade da apercepção o múltiplo das representações dadas - e é esse o princípio supremo de todo o conhecimento humano.”

E assim temos a resposta conclusiva ao problema: como são possíveis os juízos sintéticos a priori? Além da razão de que nós temos as formas puras da intuição do espaço e do tempo a priori, eles são possíveis também pelo motivo de que o nosso pensamento é atividade unificadora e sintetizadora, que se explicita através das categorias, culminando na apercepção originária, que é o princípio da unidade sintética originária, a própria forma do intelecto.

Kant concebeu o seu "Eu penso", o Sujeito transcental, como função e como atividade e, portanto, procurou mantê-lo em um horizonte crítico. Mas era inevitável que os românticos se baseassem exatamente nessa “função” e nessa "atividade" para construir uma metafísica do Sujeito (oposta à clássica metafísica do objeto) contra as intenções de Kant.

Mas é no terceiro volume que falaremos longamente sobre esse complexo acontecimento.

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