Texto 17 - David Hume (Parte 1) - Por Giovanne Reale

DAVID HUME - PARTE 1

1. A vida e as obras de Hume

David Hume, retratado por Allan Ramsay (1713-1784) 
em1766. Edimburgo  Scottish National Portrait Gallery
Com David Hume, o empirismo alcançou as suas próprias colunas de Hércules, ou seja, aqueles limites para além dos quais é impossível avançar. Despojando-se dos pressupostos ontológico-corporeístas presentes em Hobbes, do componente racionalista-cartesiano presente em Locke, dos interesses apologéticos e religiosos presentes em Berkeley e de quase todos os resíduos de pensamento provenientes da tradição metafísica, o empirismo humiano acaba por esvaziar a própria filosofia dos seus conteúdos especíñcos e admitir a vitória da razão cética, da qual só pode se salvar a primigênia e irresistível força da natureza. A natureza se sobrepõe à razão, diz expressamente Hume. O homem-filósofo deve ceder ao homem-natureza: "Seja filósofo, mas, para além da filosofia, seja sempre homem.” Isso significa que, levado às extremas conseqüências e radicalizado, o empirismo acaba por ser, em última analise, uma renúncia à filosofia.

David Hume nasceu em Edimburgo, em 1711, de uma família pertencente à pequena nobreza terrena. Desde jovem se apaixonou pelo estudo dos clássicos e da filosofia, a ponto de se opor firmemente ao desejo dos parentes, que o queriam advogado como o pai, e negar-se a qualquer outra atividade que não fossem os seus estudos prediletos.

Em 1729, aos dezoito anos, teve uma forte intuição que, segundo ele, revelou-lhe um "novo cenário de pensamento” (a new scene of thought), que lhe fez vir à mente a nova “ciência da natureza humana”, ou seja, a sua nova visão ñlosóñca. E esse "novo cenário de pensamento" teve efeitos perturbadores sobre o jovem Hume, que se entregou com excepcional intensidade aos estudos: o seu entusiasmo foi tal que ultrapassou todas as medidas, a ponto de sua saúde chegar ao limite de colapso. Caiu então em crise de
depressão tal que só conseguiu ser debelada depois de longo tratamento.

Com o "novo cenário de pensamento" nasceu a idéia do Tratado sobre a natureza humana, a obra-prima de Hume, na qual o nosso filósofo trabalhou na Inglaterra até 1734 e, depois, entre 1734 e 1736, na França, em La Flèche (que havia se tornado um renomado centro de estudos cartesianos), onde se havia instalado para ampliar seus horizontes culturais.

Em 1739, foram finalmente publicados em Londres os primeiros dois volumes do Tratado sobre a natureza humana e, em 1740, o terceiro volume, mas seus trabalhos não suscitaram nenhum interesse particular.

Entretanto, logo iria conhecer o sucesso literário, com seus ensaios políticos e morais e também com elementos do Tratado refeitos e apresentados sob nova forma, além de sua monumental História da Inglaterra, da qual falaremos adiante. Mas seus pósteros viram justamente naquele Tratado não apreciado por seus contemporâneos a obra-prima do filósofo, ou seja, a sua obra mais profunda e meditada.

Hume não conseguiu penetrar no ambiente acadêmico, em virtude de suas idéias céticas e ateizantes. Em 1744-1745, não conseguiu obter uma cátedra na Universidade de Edimburgo. E, em 1751, não teve sua candidatura acolhida à cátedra de lógica da Universidade de Glasgow.

Entretanto, Hume teve sucesso em outros ambientes. Em 1745, foi preceptor do marquês de Armandale. Em 1746, tornando-se secretário do general Saint Clair, participou de uma expedição à França e, em 1748, integrou uma missão diplomática em Viena e Turim. De 1763 a 1766, Hume foi secretário do embaixador inglês em Paris, estabelecendo amigáveis relações com os iluministas franceses.

Em 1766, Hume voltou à Inglaterra, levando consigo Rousseau, a quem ofereceu a sua proteção. Mas a grave forma de mania de perseguição de que sofria Rousseau levou-o a acusar absurdamente Hume de encabeçar um complô que teria por objetivo arruiná-lo. Como foi um "caso" que provocou muitos comentários, Hume foi obrigado a tornar públicas as suas próprias razões. Recorde-se ainda que, em 1767, Hume obteve o cargo de Subsecretário de Estado para os Assuntos do Norte. Pouco depois, conseguindo
uma grande pensão, dedicou-se quase exclusivamente aos seus estudos prediletos, em meio à serenidade. Morreu em 1776.

Dentre as obras que se seguiram ao Tratado, podemos recordar: os Ensaios sobre o intelecto humano, de 1748, que expõem de modo simplificado o primeiro livro do Tratado (obra que, em 1758, foi rebatizada com o título Investigações sobre o intelecto humano, que iria se tornar o título definitivo); as Investigações sobre os princípios da moral, de 175 1, que expõem de maneira nova o terceiro livro do Tratado e que o autor considerou a mia melhor obra; os Discursos políticos, de 1752; as Quatro dissertações, de 1757 (uma dessas dissertações é a célebre História natural da religião); postumamente, foram publicados os Diálogos sobre a religião natural (redigidos em 1751).

Por fim, se deve recordar a História da Inglaterra, iniciada em 1752 e concluída em 1762, a qual suscitou grandes polêmicas, mas também granjeou grande glória para Hume. Começando com a invasão de Júlio César, a História termina com a revolução de 1688, sendo constituída por oito volumes. Um conhecido historiador da literatura inglesa (AC. Baugh) julga a obra do seguinte modo: “Com ela, Hume realizou aquela que se revelou a primeira História da Inglaterra verdadeiramente satisfatória. Hoje, os seus defeitos parecem óbvios: não se baseia em sólidos estudos e atentas pesquisas; a Idade Média é difamada por ignorância e certos preconceitos aparecem no tratamento dos períodos posteriores. O fm do seu trabalho - o desejo de Hume de ilustrar os perigos das facções violentas para o Estado - podia ser significativo para a sua época, mas não tanto para os períodos posteriores. Mas a obra preenchia uma grande lacuna e era legível. Sua fama perdurou por mais tempo do que a dos rivais contemporâneos de Hume (. . .) e durante mais de um século ela foi a mais lida História da Inglaterra.” Um estadista da estatura del Winston Churchill chegou a declarar que a História de Hume fora “o manual de sua adolescência”. 

Apesar dos seus contemporâneos terem praticamente ignorado o Tratado, como já observamos, foi exatamente ele que se revelou plenamente a “new scene of thought”. Por isso, é a ele que nos referiremos de preferência nesta exposição, embora sem deixar de lado as Investigações.

2. O “novo cenário de pensamento” ou a “ciência da natureza humana”

O título Tratado sobre a natureza humana e a especificação do subtítulo: Tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais, já apresentam por si mesmos os traços gerais do “novo cenário de pensamento”. Hume constata que, sobre a segura base da observação e do método do raciocínio experimental preconizado por Bacon, Newton construiu uma sólida visão da natureza física: o que é necessário fazer agora é precisamente aplicar aquele método também à natureza humana, ou seja, também ao sujeito e não apenas ao objeto.

Tales fundou a "filosofia" da natureza bem antes que Sócrates fundasse a "filosofia" do homem. Nos tempos modernos, como dissemos, Bacon introduziu o método experimental adequado para a fundação da "ciência" da natureza, ao passo que os "recentes filósofos ingleses", ou seja, os moralistas - entre os quais, além de
Locke, Hume cita Shaftesbury, Mandeville, Hutcheson e Butler (do qual falaremos adiante) -, em um espaço de tempo mais ou menos igual ao transcorrido entre Tales e Sócrates, começaram a "levar a ciência do homem para um terreno novo". Trata-se, então, de percorrer profundamente esse caminho, para fundar definitivamente a ciência do homem em bases experimentais. Em suma, Hume considera poder se tornar o Galileu, ou melhor, o Newton da "natureza humana".

Aliás, o nosso filósofo mostra-se inclusive convencido de que a "ciência da natureza humana" é ainda mais importante do que a física e as outras ciências, pelo fato de que todas essas ciências "dependem de algum modo da natureza do homem". Com efeito, se nós pudéssemos explicar a fundo "o alcance e a força do intelecto humano", bem como "a natureza das idéias de que nos servimos e das operações que realizamos em nossos raciocínios", poderíamos efetuar progressos de incalculável alcance em todos os outros âmbitos do saber.

Eis um trecho programático de Hume a esse respeito: “O único meio para obter de nossas investigações filosóficas o êxito que delas esperamos é abandonar o tedioso e extenuante método seguido até hoje e, ao invés de nos apossarmos, de quando em vez, de um castelo ou um povoado de fronteira (= alusão às conquistas parciais e periféricas da ciência), rumarmos diretamente para a capital, para o centro dessas ciências, ou seja, para a própria natureza humana: senhores desse centro, podemos esperar alcançar uma fácil vitória por toda parte. Partindo daí, poderemos estender a nossa conquista sobre todas as ciências, mais intimamente ligadas à vida humana, para depois proceder ulteriormente no aprofundamento daquelas que são objeto de mera curiosidade. Não há questão de alguma importância cuja solução não esteja abrangida na ciência do homem e não há nenhuma questão que possa ser resolvida com certeza se antes não nos assenhorearmos daquela ciência. Assim, preparando-nos para explicar os princípios da natureza humana, nós na realidade visamos um sistema de todas as ciências, construído sobre uma base quase inteiramente nova, a única sobre a qual podemos nos apoiar com segurança.”

Esse é o seu ambicioso projeto. Mas o "novo cenário de pensamento", como poderemos constatar, estava guardando um verdadeiro "golpe de cena". A “natureza humana”, encerrada nos estreitos âmbitos do método experimental, perde grande parte de sua especificidade racional e espiritual em benefício do instinto, da emoção e do sentimento, a ponto de reduzir-se quase que somente à "natureza animal”, como já acenamos. E, desse modo, a “conquista da capital" (a conquista da “natureza humana, como a entende Hume, ao invés de levar à conquista de vastos territórios, levará fatalmente à sua perda, como podem demonstrar os resultados cético-irracionalistas.

Mas vejamos como é que Hume, com o novo método experimental, procede à reconstrução da "natureza humana".

3. As “impressões” e as "idéias” e o "princípio da associação”

Todos os conteúdos da mente humana outra coisa não são senão “percepções”, dividindo-se em duas grandes classes, que Hume chama de “impressões” e “idéias”. Ele só coloca duas diferenças entre as primeiras e as segundas: a) a primeira classe diz respeito à força ou vivacidade com que as percepções se apresentam à nossa mente; b) a segunda diz respeito à ordem e à sucessão temporal com que elas se apresentam. 

a) No que se refere ao primeiro ponto, escreve Hume: "A diferença entre impressões e idéias consiste no grau diverso de força e vivacidade com que as percepções atingem a nossa mente e penetram no pensamento ou na consciência. As percepções que se apresentam com maior força e violência podem ser chamadas de impressões: e, sob essa denominação, eu compreendo todas as sensações, paixões e emoções, quando fazem a sua primeira aparição em nossa alma. Por idéias, ao contrário, entendo as imagens enlanguescidas das impressões." Uma conseqüência dessa distinção é a drástica contração da diferença entre sentir e pensar, que é reduzida simplesmente ao grau de intensidade: sentir consiste em ter percepções mais vivas (sensações), ao passo que pensar consiste em ter percepções mais fracas (idéias), Toda percepção, portanto, é dupla: ela é sentida (de modo vivo) como impressão e é pensada (de modo mais fraco) como idéia.

b) No que se refere ao segundo ponto, Hume destaca que ele constitui uma questão da máxima importância, porque está ligado ao problema da “prioridade” de um dos dois tipos de percepção: a idéia depende da impressão ou vice-versa? E a resposta de Hume é inequívoca: a impressão é originaria, a idéia é dependente. Eis a passagem que ilustra esse conceito: “Para saber de que lado encontra-se essa dependência, considero a ordem da sua primeira apresentação e constata que, pela constante experiência, as impressões simples sempre precedem às idéias correspondentes, ao passo que o contrário nunca se dá. Para dar a uma criança a idéia da cor vermelha ou laranja, do doce ou do amargo, eu lhe apresento objetos, ou seja, em outros termos, propício-lhe essas impressões, e não cometo o absurdo de procurar produzir nela as impressões por meio da excitação das idéias. Ao se apresentarem, as nossas idéias não produzem as correspondentes impressões: nós não podemos perceber uma cor ou experimentar uma sensação simplesmente pensando-as. Mas, ao contrário, podemos ver que uma impressão, seja mental, seja corpórea, é sempre seguida de uma idéia que lhe assemelha, diferente apenas em força e vivacidade. A união constante das percepções semelhantes, portanto, é uma prova convincente de que umas são a causa das outras. E tal prioridade das impressões, igualmente, é a prova de que elas são a causa das idéias e não o contrário."

Daí, portanto, deriva o “primeiro princípio” da ciência da natureza “humana”, que, formulado sinteticamente, assim se expressa: "Todas as idéias simples provêm, mediata ou imediatamente, de suas correspondentes impressões." Esse princípio, diz Hume, acaba com a questão das idéias inatas, que tanto barulho havia ocasionado anteriormente: nós só temos idéias depois de ter impressões; estas, portanto, e somente elas são originárias. Mas há ainda uma importante distinção a recordar: há impressões simples (por exemplo, vermelho, quente etc.) e impressões complexas (por exemplo, a impressão de uma maçã). As impressões complexas nos são dadas imediatamente como tais. Já as idéias complexas podem ser cópias das impressões complexas, mas também podem ser fruto de combinações múltiplas, que ocorrem de vários modos em nosso intelecto. Com efeito, além da faculdade da memória, que reproduz as idéias, nós também temos a faculdade da imaginação, capaz de transpor e compor as idéias entre si de vários modos. Essa, diz Hume, "é uma evidente conseqüência de divisão das idéias em simples e complexas: onde quer que a imaginação perceba uma diferença entre as idéias, pode realizar uma separação entre elas” e depois operar uma série de outras combinações.

Mas as idéias simples tendem a se agregar entre si em nossa mente não somente segundo o livre jogo da fantasia, mas também segundo um jogo bem mais complexo, baseado em alguns princípios que se mostram conformes em todos os tempos e em todos os lugares. Existe entre as idéias uma “força" (que, de certa forma, recorda a força de gravitação newtoniana, que une entre si os corpos físicos, ainda que de caráter diferente), expressa pelo princípio da associação, que Hume decreve na seguinte passagem, com toda razão tranformada em clássica:

"Se as idéias fossem inteiramente desligadas e desconexas entre si, somente o acaso poderia ligá-las. Mas é impossível que as próprias idéias simples se reúnam regularmente em idéias complexas (como acontece comumente) sem um laço que as ligue entre si, sem uma propriedade associativa, sem que uma idéia introduza naturalmente a outra. Esse princípio de união entre as idéias não pode ser considerado como uma conexão indissolúvel: com efeito, esse tipo de ligação nós já excluímos da imaginação. Mas também não devemos concluir que, sem esse princípio, a mente não pode ligar duas idéias: com efeito, não há nada de mais livre do que aquela faculdade. Assim, nós devemos considerá-lo simplesmente como uma doce força que habitualmente se impõe, sendo, entre outras coisas, a causa de o fato de as línguas terem tanta correspondências entre si: a natureza que indica para cada um as idéias simples mais adequadas a serem reunidas em idéias complexas. As propriedades que dão origem a essa associação e fazem que a mente seja transportada de uma ideia para outra são três: semelhança, contiguidade no tempo e no espaço e causa e efeito." 

Nós passamos facilmente de uma ideia a outra que se lhe assemelhe (por exemplo: uma fotografia me faz vir à mente a personagem que representa) ou então de uma ideia a outra que habitualmente se apresenta a nós como ligada à primeira no espaço e no tempo (por exemplo, a ideia de sala escolar me recorda a das salas-de-aula vizinhas ou então a do corredor adjacente ou a do prédio em que se localiza; a idéia de levantar âncora suscita a idéia da partida do navio e assim se poderiam multiplicar os exemplos); a ideia de causa me suscita a de efeito e vice-versa (como, por exemplo, quando penso no fogo sou inevitavelmente levado a pensar no calor ou então na fumaça que dele se desprende e vice-versa).

Desse modo, Hume conclui: "Esses são, portanto, os princípios de união ou coesão entre as nossas idéias simples, que, na imaginação, ocupam o lugar da conexão indissoluvel, com a qual estão unidas na memória. Existe aqui uma espécie de atração, que (...) exerce no mundo mental, não menos que no natural, alguns efeitos extraordinários, mostrando-se em formas não menos numerosas e variadas. Tais efeitos são evidentes em toda parte. Mas, quanto às suas causas, elas são em sua maior parte desconhecidas, nada mais se podendo fazer senão vê-las como propriedades originárias da natureza humana (...)."

Assim, pode-se compreender o valor do segundo princípio de Hume, que nada mais é do que uma conseqüência do primeiro: para provar a validade de cada idéia sobre a qual se discute é necessário apresentar a sua relativa impressão. No caso das idéias simples, isso não suscita problemas, pois, como já vimos, não pode estar presente em nós nenhuma idéia simples sem que tenhamos experimentado a correspondente impressão. No caso das idéias complexas, isso já constitui um problema, devido à sua gênese múltipla e variada. E é exatamente sobre elas que se concentraria o interesse do nosso filósofo.

Hume faz sua a distinção lockiana geral das idéias em idéias de substância, de modos e de relações, mas vai muito além de Locke em sua análise crítica, como veremos mais adiante.

4. A negação das idéias universais e o nominalismo humiano

Para se compreender plenamente a posição de Hume, porém, devemos ainda recordar a sua doutrina das idéias abstratas ou universais. Ele aceita a tese de Berkeley (que elogia como "grande filósofo") segundo a qual “todas as idéias gerais nada mais são do que idéias particulares conjugadas a certa palavra, que lhes dá um significado mais extenso e, ocorrendo, faz com que recordem outras individuais semelhantes a elas”. Essa, destaca Hume, é "uma das maiores e mais importantes descobertas que foram feitas nestes últimos anos na república das letras”. 

Entre os vários argumentos que Hume apresenta em apoio da tese de Berkeley, devemos recordar dois, que são particularmente significativos:

a) O intelecto humano, dizem os defensores da existência de idéias universais, é capaz de distinguir mentalmente também aquilo que não está separado na realidade, através de operações mentais autônomas. Hume o contesta vigorosamente: para ele, só é distinguível aquilo que é separável

b) Ademais, como cada idéia é cópia de uma impressão e a impressão só pode ser particular e, portanto, só determinada, seja qualitativa, seja quantitativamente, também as idéias (que só podem ser cópias das impressões) devem ser determinadas do mesmo modo.

O grande princípio humiano de que a ideia só difere no grau de intensidade e vivacidade da impressão comporta necessariamente que cada ideia nada mais seja do que uma “imagem" e, como tal, individual e particular.

Como é possível, então, uma ideia “particular” ser usada como ideia “geral" e como é que a simples conjunção com uma “palavra" pode tornar isso possível? 

A resposta de Hume é a seguinte: nós notamos certa semelhança entre as ideias de coisas que nos parecem pouco a pouco (por exemplo, entre homens de várias raças e de vários tipos), uma semelhança tal que nos permite dar a elas o mesmo nome, prescindindo das diferenças de grau, de qualidade e de quantidade que elas podem apresentar. Desse modo, nós adquirimos um “hábito” pelo qual, ao ouvir aquele nome ou aquela palavra dada, desperta em nossa memória uma daquelas idéias particulares que designamos com aquele nome ou com aquela palavra (por exemplo, ao ouvir a palavra "homem", vem-me à mente a idéia de um homem determinado), mas, como a mesma palavra é usada para designar idéias análogas (por exemplo, para designar os muitos homens vistos por mim, diferentes entre si por muitos aspectos particulares), então acontece que “a palavra, não sendo capaz de fazer reviver a idéia de todos esses indivíduos, limita-se a tocar a alma, se assim posso me expressar, e fazer reviver o hábito que contraímos ao examina-los. Eles não estão realmente, de fato, presentes na mente, mas só em potência, nem nós os fazemos surgir todos distintamente na imaginação, mas ficamos prontos a considerar um ou outro deles, desde que algum objetivo ou necessidade presente nos estimule a isso".

O que há de novo nessa concepção nominalista do universal, em relação à visão tradicional, particularmente em relação à visão de Berkeley? Como destacaram os estudiosos, o que há é o recurso
ao princípio do hábito, já invocado por Hume a propósito do princípio de associação das idéias e que, como veremos mais adiante, constitui um dos pilares do novo empirismo. Hume reconhece nesse fato “um dos fenômenos mais extraordinários”, assim como Hobbes havia reconhecido como "o mais admirável" o fato de um corpo poder levar em si representações de outros corpos (cf. acima, p.494 s). Na realidade, fica bem visível a dificuldade: qualifica-se de "extraordinário" aquilo que o horizonte rigidamente empirista não consegue explicar inteiramente.

Eis agora o trecho em que o nominalismo moderno alcança o seu ápice, que constitui, ao mesmo tempo, o seu limite extremo: a perfeição da abstração é reduzida à perfeição alcançada pelo “hábito”. Diz Hume: "A palavra desperta uma idéia individual e, juntamente com ela, certo hábito. E esse hábito produz toda outra idéia individual, conforme o que requer a ocasião. Mas, como é impossível, na maioria dos casos, a produção de todas as idéias às quais o nome pode ser aplicado, nós abreviamos esse trabalho, limitando-o a uma consideração mais restrita, sem que surjam dessa abreviação muitos inconvenientes para os nossos raciocínios. Nesse trabalho, um dos fenômenos mais extraordinários é que, produzida pela mente uma idéia individual e pondo-nos a raciocinar com base nela, se por acaso fazemos um raciocínio que não concorde com outra idéia individual, o hábito que acompanha a primeira idéia, despertado pelo termo geral ou abstrato, sugere muito mais a segunda. Assim, se à pronúncia da palavra 'triângulo' nós formamos, como ideia correspondente, a de um particular triângulo equilátero e, em seguida, afirmamos que os três ângulos de um triângulo são iguais entre si, então as outras idéias de escaleno e de insósceles, que havíamos desprezado, imediatamente ageriam sobre nós para nos fazer perceber a falsidade daquela proposição, por mais que seja verdadeira em relação à ideia que nos havíamos formado. Se nem sempre a mente sugere essas idéias em tais ocasiões, isso depende de alguma imperfeição de suas faculdades. E essa é freqüentemente a causa de raciocínios falsos e de sofismas, sobretudo quando as idéias são confusas e complicadas; nos outros casos, em que o hábito é mais perfeito, raramente incorremos em tais erros. O hábito, aliás, chega a ser tão perfeito que a mesma idéia pode ser ligada a muitas palavras diferentes e entrar em raciocínios diversos sem que, com isso, corra-se o risco de se enganar.”

5. "Relações entre idéias" e “dados de fato"

Outra doutrina essencial de Hume consiste na distinção dos objetos presentes na mente humana (impressões e ideias) em dois gêneros, que o nosso filósofo chama de a) "relações de ideias” e b)
“dados de fato”.

a) São simples relações de ideias todas aquelas proposições que se limitam a operar com base em conteúdos ideais, sem se referir àquilo que existe ou pode existir. Trata-se daquelas proposições que, como veremos, Kant chamaria de juízos analíticos (cf. pp. 871 s).

A aritmética, a álgebra e a geometria são constituídas de meras "relações de ideias". Estabelecidos os significados dos números, por exemplo, nós obtemos por mera análise racional (e, portanto, com base em meras relações de ideias) que três vezes cinco é a metade de trinta e todas as outras proposições desse gênero. Analogamente, colocada a definição do triângulo, nós obtemos por mera análise racional as relações de ideias de que "o quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado dos dois lados".

Assim, escreve Hume nas Investigações sobre o intelecto humano: “Podemos descobrir as proposições desse gênero por meio da simples operação do pensamento, independentemente daquilo que realmente existe em qualquer parte do universo. Ainda que não existissem círculos ou triângulos na natureza, as verdades demonstradas por Euclides manteríam intactas a certeza e a sua evidência." Com efeito, trata-se de proposições que nós obtemos substancialmente baseando-nos no princípio da não-contradição. Seria contraditório, por exemplo, dizer que três vezes cinco não é a metade de trinta, uma vez estabelecido o atual significado dos números, assim como seria contraditório negar a validade do teorema acima mencionado, uma vez colocada a definição de triângulo dada por Euclides.

b) Os “dados de fato", ao contrário, não são obtidos desse modo, já que “é sempre possível o contrário de um dado de fato qualquer, já que ele não pode nunca implicar uma contradição, sendo concebido pela mente com a mesma facilidade e a mesma distinção como se fosse extremamente conforme à realidade”. 

Eis alguns exemplos humianos particularmente eloquentes: “A proposição de que amanhã o sol não surgirá é uma proposição não menos inteligível e não implica mais contradição do que a afirmação de o sol surgirá; por isso, seria inútil tentar demonstrar a sua falsidade. Se fosse demonstrativamente falsa, ela implicaria uma contradição e nunca poderia ser concebida pela mente de modo distinto.” Em suma, proposições como "o sol surgirá amanhã” não implicam uma necessidade lógica, ou seja, não implicam a contraditoriedade do seu contraditório, como as proposições que expressam relações entre idéias, como as já exemplificadas. Trata-se de um tipo de juízo que Kant chamaria de juízos sintéticos a posteriori.

O problema que surge, portanto, é o de procurar a natureza da evidência própria dos raciocínios relativos aos "dados de fato", quando eles não estão imediatamente presentes aos sentidos (como, precisamente, quando prevejo que o sol surgirá amanhã ou quando, vendo fumaça, infiro que deve haver fogo aceso). A resposta de Hume é a seguinte: “Todos os raciocínios que dizem respeito à realidade dos fatos parecem fundados na relação de causa e efeito. E só graças a essa relação que nós podemos ultrapassar a evidência da nossa memória e dos sentidos."

Deve-se ter bem em conta esse problema, porque ele é fundamental, não apenas para entender Hume, mas também para compreender a formação da filosofia de Kant, embora os dois filósofos forneçam soluções notavelmente diferentes sobre a questão do significado e do valor da relação de causa e efeito.

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