Texto 22 - Iluminismo na França (Partes) - Por Giovanne Reale

O Iluminismo na França

1. A Enciclopédia


O empreendimento mais representativo da cultura e do espírito do Iluminismo francês é constituído pela obra coletiva Enciclopédia ou dicionario racionalizado das ciências, das artes e dos oficios. Essa obra teve sua origem na ideia do livreiro parisiense Le Breton, que projetou a tradução para o francês do Dicionário universal das artes e das ciências, do inglês Ephraim Chambers. Entretanto, tal proposta caiu por terra devido a varias divergências. Foi então que Denis Diderot mudou o plano do trabalho e, juntamente com Jean D'Alembert, apontou para objetivos bem mais ambiciosos.

0 Prospectus da Enciclopédia foi distribuído em novembro de 1750, começando-se a reunir as subscrições que, desde o primeiro momento, foram numerosas. O primeiro volume apareceu em fins de junho de 1751. E as reações não tardaram a se fazer sentir em tons bastante pronunciados, a ponto de que em 7 de janeiro de 1752 foi emanado um decreto de suspensão dos primeiros dois volumes. Essas dificuldades, também devido ao apoio de altas personagens, foram porém superadas; em 1753, apareceu o terceiro volume e depois, ao ritmo de um por ano, apareceram outros volumes, até que, em 1757, foi publicado o sétimo volume.

Nesse momento, devido também ao clima que se seguiu ao atentado contra o rei em 1757 e devido ainda ao decreto real relativo a medidas diretas e mais severas para controlar a imprensa de oposição, os ataques contra a Enciclopédia se multiplicaram e tiveram por efeito a decisão (em 1758) de d’Alembert de retirar-se da empresa. A insistência de Voltaire e Diderot para que D’Alembert recuasse do seu propósito de nada valeram. Desse modo, enquanto Diderot ficava como o único diretor da obra, assumindo toda a responsabilidade e o imenso trabalho exigidos pela continuação do empreendimento, a Enciclopédia registrava a crise mais séria de sua histéria. Em 1772 foi publicado o ultimo dos remanescentes dez volumes de texto.

A Enciclopédia foi um poderoso instrumento de difusão de uma cultura renovada e critica, de uma cultura que pretende romper com o ideal do saber erudito e retórico, aberto aos problemas da sociedade, a ciência e a técnica. Entre os colaboradores mais destacados da Enciclopédia podemos encontrar, além de Diderot e D'Alembert, também Voltaire, d’Holbach, Quesnay Turgot, Montesquieu, Rousseau, Friedrich Melchior Grimm  e Helvetius. Entretanto, deve-se notar que a colaboração de Montesquieu se reduz ao verbete "Gosto"; a de Turgot limita-se aos verbetes "Etimologia" e "Existência" (neste ultimo verbete, Turgot, nas pegadas de Locke, fala da existência do "eu", do mundo externo e de Deus); a contribuição de Rousseau refere-se substancialmente a questões de música.

Alguns dos mais importantes verbetes políticos e econômicos revelam uma linha moderada e reformista. E o mesmo ocorre com os verbetes teológicos, que, confiados a religiosos como Mollet, de Prades e Morellet, pretendiam conciliar as novas idéias com a mais escrupulosa ortodoxia. Os verbetes filosóficos redigidos por Diderot, que acentuavam temas anti-religiosos, porém, eram mais polêmicos.

De grande relevo é, alem disso, o peso que, tanto nos verbetes históricos como nos artigos referentes a pesquisa histórica, a Enciclopédia dá aos princípios da crítica histórica. São notáveis os verbetes matemáticos, de física matemática e de mecânica, redigidos por d’Alembert.

Mas a parte mais original é a que diz respeito ao tratamento da Enciclopédia às artes e aos ofícios. Nas pegadas da concepção baconiana, voltada para a superação da verbosidade estéril da velha filosofia e para realização, com tal objetivo, de uma união entre teoria e prática que fosse fecunda em resultados úteis para a humanidade, a Enciclopédia sancionou o resgate das “artes mecânicas”, que havia sido um dos traços fundamentais da revolução científica.

Diderot quis realizar tais propósitos indo informar-se diretamente nas oficinas dos artesãos. E, no Prospectus, podemos encontrar algumas expressões suas que constituem um verdadeiro monumento à técnica, às habilidades operativas e à manualidade inteligente: “Estivemos com os mais hábeis artesãos de Paris e do reino. Demo-nos ao esforço de ir às suas oficinas, interrogá-los, escrever o que dítavam, desenvolver os seus pensamentos, encontrar termos adequados aos seus ofícios, traçar as ilustrações respectivas e defini-las, falar com aqueles dos quais havíamos obtido relatório por escrito e (precaução quase indispensável) retificar em longos e repetidos colóquios com alguns aquilo que outros haviam explicado insuficientemente, obscuramente e, às vezes, não fielmente.”

Ademais, Diderot teve que obter algumas máquinas e executar pessoalmente alguns trabalhos; às vezes, chegou até a construir as máquinas mais fáceis e executou péssimos trabalhos para ensinar aos outros a fazerem bons trabalhos. Como ele próprio confessou, o fato é que descobriu que não podia em absoluto descrever manobras e certas produções na Enciclopédia se não houvesse acionado a máquina com as próprias mãos e se não houvesse visto formar-se a obra sob os seus próprios olhos. Além disso, confessou também que havia constatado sua ignorância em relação à maior parte dos objetos que usamos na vida e a necessidade de sair dessa ignorância. E reconheceu que ignorava o nome de muitos instrumentos e engrenagens, de que anteriormente se havia iludido de possuir um rico vocabulário e que, na verdade, tinha agora que aprender com os artesãos uma miríade de termos.

Entretanto, já se observou que, na verdade, a Enciclopédia descreve o automatismo técnico que era a máquina para fazer meias, mas que, para Diderot, a verdadeira técnica era a consti tuída pelos “ofícios tradicionais pouco mecanizados, como os dos artesãos” (B. Gille), tanto que a Enciclopédia não dedica muita atenção à máquina a vapor, que após pouco tempo adquiriria importância social verdadeiramente perturbadora.

Entretanto, com a Enciclopédia, "pela primeira vez, rompendo os vínculos corporativos que tendiam a não divulgar excessivamente os procedimentos técnicos de fabricação, uma descrição escrupulosa e detalhada das artes e dos ofícios foi programática e efetivamente colocada ao alcance do grande público. Tomando-se de fato uma aquisição social, com a Enciclopédia, a consciência da relevância cultural das-técnicas adquiriu dimensão inteiramente nova" (G. Micheli).

1.2. Finalidade e princípios inspiradores da Enciclopédia

Isso era o que tínhamos a dizer sobre a história, os colaboradores e, brevemente, os conteúdos da Enciclopédia. Mas vejamos os princípios filosóficos que inspiravam essa grande obra e os objetivos que ela se determinava a alcançar. Pois bem, no Discurso preliminar a propósito do objetivo da Enciclopédia, d'Alembert escreve que "a ordem enciclopédica dos nossos conhecimentos consiste em reuni-los no menor espaço possível e, por assim dizer, fazer o filósofo assumir um ponto de vista bastante elevado acima desse labirinto, de modo a fazer com que se perceba em seu conjunto as ciências e as artes principais, abarcar com um único olhar os objetos das especulações e as operações que se podem realizar com esses objetos, distinguir os ramos gerais do conhecimento humano, os seus pontos de contato e separação e, por vezes, entrever inclusive os caminhos ocultos que os conjugam".

E, no verbete “Enciclopédia” da própria obra, podemos ler: "O objetivo de uma enciclopédia é o de unificar os conhecimentos espalhados sobre a face da terra e de expor o sistema e transmiti-lo àqueles que virão depois de nós, para que as obras dos séculos passados não fiquem inúteis para os séculos posteriores, para que nossos netos, tornando-se mais instruídos, possam ser ao mesmo tempo mais virtuosos e mais felizes e para que nós não desapareçamos sem que tenhamos merecido o reconhecimento do gênero humano (...). Percebemos que a Enciclopédia só podia ser tentada em um século filosófico e que esse século havia chegado."

Mas se esse, precisamente, é o objetivo principal da Enciclopédia, o princípio que a inspira é o de que é preciso ater-se aos fatos. Podemos ler ainda no Discurso preliminar: “Não há nada de mais indiscutível do que a existência de nossas sensações. Para provar que elas são o princípio de todos os nossos conhecimentos, é suficiente demonstrar que elas podem sê-lo. Com efeito, em boa filosofia, toda dedução que parta dos fatos ou de verdades bem conhecidas é preferível a um discurso que se baseie em meras hipóteses, ainda que geniais."

Foi a partir desse princípio que os enciclopedistas reavaliaram as artes mecânicas, de modo que “a sociedade, se respeita justamente os grandes gênios que a iluminam, não deve vilipendiar as mãos que a servem. A descoberta da bússola é tão útil para o gênero humano quanto o seria para a física a explicação das propriedades da agulha magnética". E os onze volumes das ilustrações das artes e dos ofícios constituíram, entre outras coisas, uma homenagem à sagacidade, à paciência e à engenhosidade dos artesãos.

A opinião pública, observaram os enciclopedistas, é mais propensa a admirar os grandes homens das artes liberais e do saber humanista. Entretanto, havia chegado o tempo de erguer um monumento aos inventores de máquinas úteis, aos descobridores da bússola, aos construtores de relógios e assim por diante. O desprezo pelo trabalho manual está ligado à necessidade que o leva a praticá-lo, mas a maior utilidade das artes mecânicas é um bom motivo para que os cientistas o pratiquem e a sociedade lhes preste as devidas honras.

No verbete “Arte” da Enciclopédia, Diderot escreve que a distinção e a separação entre artes liberais e artes mecânicas fortaleceram um nefasto preconceito: o preconceito de que “o voltar-se para os objetos sensíveis e materiais” constitui uma “revogação da dignidade do espírito humano”. Esse preconceito, acrescenta Diderot, “encheu as cidades de orgulhosos raciocinadores e contempladores inúteis e os campos de pequenos tiranos ignorantes, ociosos e desdenhosos”. E é interessante notar que também nesse tema os enciclopedistas sentiram-se devedores do Renascimento italiano: “Uma vez tratados tais particulares, seria injusto de nossa parte não reconhecer o nosso débito para com a Itália, que nos deu as ciências, que logo frutificaram com tanta abundância em toda a Europa. Devemos sobretudo à Itália as belas artes e o bom gosto, bem como inumeráveis modelos de inigualável perfeição.”

A idéia de saber que preside a estrutura da Enciclopédia é a de Newton e Locke. Trata-se de um saber que vai contra “o sistema das idéias inatas, que depois de ter dominado por longo tempo, ainda conserva alguns fautores”: um saber que vai contra o sistema das idéias inatas porque, como já se disse, encontra o seu fundamento no âmbito das sensações. Como escreve d'Alembert, “a primeira coisa que as sensações nos revelam é a nossa existência, razão pela qual as nossas primeiras idéias reflexas dizem respeito a nós mesmos, isto é, ao princípio pensante que constitui a nossa natureza e não é diferente de nós: o segundo conhecimento que devemos às sensações é a existência dos objetos externos, entre os quais encontra-se também o nosso corpo”.

Seguindo a sugestão de Bacon, d'Alembert distingue “três maneiras diferentes pelas quais o espírito opera sobre os objetos dos nossos pensamentos", três modos diversos que, respectivamente, se referem à memória, à razão e à imaginação: “Essas três faculdades formam as três distinções gerais do nosso sistema, os três objetos gerais dos conhecimentos humanos: a história, que se refere à memória; a filosofia, que é fruto da razão; e as belas artes, que surgem da imaginação.” Portanto, a imaginação gera a arte, a razão gera as ciências e a memória gera a história, uma história que, “unindo-nos aos séculos passados através do espetáculo dos seus vícios e das suas virtudes, dos seus conhecimentos e dos seus erros, transmite os nossos aos séculos futuros”. Por outro lado, na opinião de d'Alembert, é nos resultados da ciência que encontramos os melhores frutos da razão, ao passo que “os sonhos dos filósofos em relação às questões metafisicas não merecem lugar algum no conjunto dos conhecimentos reais conquistados pelo espírito humano”.

2. D'Alembert e a filosofia como “ciência dos fatos”

2.1. O “século filosófico” é o século “da experimentação da análise”

Jean Baptiste Le Rand d'Alembert nasceu em Paris, em 1717 . Filho de oficial e de uma aristocrata, foi deixado na igreja de Saint-Jean-le-Rond, da qual tomou o nome. Criado por mulher do povo, teve uma pensão do pai, podendo assim ser encaminhado para a escola. Inicialmente, interessou-se por direito e medicina; posteriormente, porém, dedicou-se apenas à matemática.

Admitido muito jovem na Academia de Ciências, publicou em 1743 o Tratado de dinâmica e no ano seguinte o Tratado do equilíbrio e do movimento dos fluidos. As Pesquisas sobre as cordas vibratórias, que lhe valeram a admissão à Academia de Berlim, são de 1746, ao passo que de 1749 são as Pesquisas sobre a precessão dos equinócios e sobre a mutação do eixo terrestre.

Nesse meio tempo, o trabalho para aEnciclopédia o absorveu por alguns anos, até que se afastou da Enciclopédia e de Diderot em 1758. E não passou muito tempo para que também rompesse com Rousseau. Em 1759, publica os Elementos de filosofia, onde exalta o “século filosófico” e delineia sua própria doutrina do progresso. As Reflexões sobre a poesia são de 1761; a História da destruição dos jesuítas é de 1765; em 1754, haviam sido publicadas as Reflexões sobre vários aspectos importantes do sistema do mundo. A pedido de Frederico II, d'Alembert escreve os Esclarecimentos, como acréscimo aos Elementos de filosofia, que viriam a ser publicados em 1767. Em 1772, d'Alembert foi nomeado secretário perpétua da Academia da França. Morreu em 1783.

Já falamos de algumas idéias de d'A1embert ao tratar da Enciclopédia. O que nos interessa aqui é reafirmar logo que a idéia de fundo que guia a teoria do conhecimento de d'Alembert é a de que a razão jamais deve abandonar o seu contato com os fatos. Escreve ele no Discurso preliminar à Enciclopédia: “A física limita-se unicamente às observações e aos cálculos; a medicina à história do corpo humano, de suas doenças e dos seus remédios; a história natural à descrição minuciosa dos vegetais, dos animais e dos minerais; a química à composição e à decomposição experimental dos corpos; em suma, todas as ciências encerradas tanto quanto é possível nos fatos e nas conseqüências que deles se podem deduzir, nada concedem à opinião, a menos que a tal sejam forçadas.”

E prossegue d'Alembert: a realidade é que “todos os nossos conhecimentos podem ser divididos em diretos e reflexos. Diretos são aqueles que recebemos imediatamente, sem qualquer intervenção da nossa vontade (...). Conhecimentos reflexos são aqueles que o espírito adquire operando sobre os conhecimento diretos, unindo-os e combinando-os. Todos os conhecimentos diretos se reduzem àqueles que recebemos dos sentidos, do que se deduz que devemos à razão todas as nossas idéias”.

Segundo d'Alembert, a existência de nossas sensações é incontestável. O fato de que "as idéias são o princípio dos nossos conhecimentos e, por seu turno, têm por princípio as sensações” constitui “uma verdade da experiência". E os verdadeiros princípios de toda ciência devem ser buscados precisamente naqueles “fatos simples e conhecidos” atestados pelas sensações, “fatos que não pressupõem outros e que, por isso, não se podem explicar nem contestar". E esses fatos, como afirma d'Alembert nos Elementos de filosofia, são "em fisica, os fenômenos que a observação oferece todo dia aos nossos olhos; em geometria, as propriedades sensíveis da extensão; em mecânica, a impenetrabilidade dos corpos, fonte de sua ação recíproca; em metafísica, o resultado de nossas sensações; em moral, os efeitos elementares comuns a todos os homens. A filosofia não deve se perder atrás das propriedades gerais do ser e da natureza, em questões inúteis sobre noções abstratas, em
arbitrárias distinções e em eternas nomenclaturas - ou ela é a ciência dos fatos ou então é o das quimeras".

A filosofia, portanto, deve ser a ciência dos fatos. Conseqüentemente, deve voltar as costas para os sistemas: embora esforçando-se por agradar, a filosofia não pode se permitir esquecer de que o seu objetivo principal é o de instruir: “exatamente por essa razão, o gosto pelos sistemas, mais adequado para lustrar a imaginação do que para iluminar a razão, está hoje banido de nossas obras mais válidas. O abade de Condillac, um de nossos melhores filósofos, assestou-lhe o golpe de graça. O espírito de hipótese e de conjectura podia ser útil outrora - aliás, até necessário - para o renascimento da filosofia, porque então não se tratava tanto de pensar corretamente, mas muito mais de aprender a pensar por si mesmo. Mas os tempos mudaram e, hoje, quem elogiasse os sistemas estaria indubitavelmente atrasado. As vantagens que eles poderiam oferecer hoje são muito escassas para compensar os inconvenientes que deles derivam (...)”.

D'Alembert nota aguçadamente que o espírito filosófico, "hoje tão em moda” e em seu século "inclinado à experimentação e à análise”, excede os seus limites e “parece querer introduzir discussões áridas e didáticas também nas coisas do sentimento". Naturalmente, não se pode negar que isso prejudica o progresso das belas letras, para d'Alembert, já que “também as paixões e o gosto têm a sua lógica, mas ela depende de princípios inteiramente diferentes dos da lógica ordinária". E, no entanto, insiste ele, “precisamos (...) admitir que tal espírito de discussão contribuiu para libertar a nossa literatura da cega admiração pelos antigos, ensinando-nos a apreciar neles somente as belezas que seríamos obrigados a admirar também nos modemos”.

Portanto, o "século da filosofia” é o século da crítica e da análise e a filosofía é ciência de fatos, de modo que não deve se perder nas vagas e inúteis conjecturas das velhas metafisicas, nas quais, ao invés "do exame aprofundado da natureza e do grande estudo do homem”, encontramos “mil frívolas questões sobre seres abstratos e metafisicos”, nem deve tampouco se confundir mais com aquela escolástica que formou “toda a pseudosciência dos séculos do obscurantismo”. A filosofia nova e verdadeira é a de Bacon, Locke e Leibniz. De todo modo, afirma d'Alembert, “a filosofia, que constitui a paixão dominante em nosso século, parece, com os progressos feitos entre nós, querer recuperar o tempo perdido e vingar-se daquela espécie de desprezo que os nossos pais haviam professado em relação a ela”.

2.2. Deísmo e moral natural

No que se refere à religião, d'Alembert às vezes parece reconhecer certo valor à Revelação, que, como podemos ler no Discurso preliminar, “teria a finalidade de integrar o conhecimento natural de tudo o que, para nós, é indispensável conhecer: o resto nos está excluído e parece que sempre o estará. Algumas verdades nas quais crer, poucos preceitos a praticar - a isso se reduz a religião natural".

Entretanto, apesar disso, d'Alembert é claramente deísta. Deus é o autor da ordem do universo e, com a razão, nós conseguimos compreender a sua existência partindo das leis imutáveis que percebemos dominarem a natureza. E, na opinião de d'A1embert, esse Deus, ordenador do universo, é estranho aos acontecimentos humanos. Em suma, a religião não fundamenta nem se liga à moral, que é uma questão natural, vale dizer, racional.

Por isso, escreve ele nos Elementos de filosofia: “Aquilo que pertence única e essencialmente à razão e que, por isso, é uniforme junto a todos os povos, são os deveres aos quais somos obrigados para com os nossos semelhantes (. . .). A moral é uma conseqüência necessária da fundação da sociedade, já que tem por objeto aquilo que temos como dever para os outros homens (...). A religião não tem papel algum na formação primeira da sociedade humana e, embora seja destinada a estreitar os seus laços, pode-se dizer que é feita principalmente para o homem considerado em si mesmo.”

Com efeito, “o princípio e fundamento da união (entre os homens) é a transmissão das idéias, que exige necessariamente a invenção dos sinais: essa é a origem das sociedades, que foram se formando juntamente com as línguas”. Mas as idéias, como já sabemos, estão ligadas às sensações. E é às sensações que d'Alembert conduz também as idéias morais: “Portanto, é evidente que as noções puramente intelectuais de virtude e vício, o princípio e a necessidade das leis, a existência de Deus e os nossos deveres em relação a ele, em suma, as verdades das quais temos a mais imediata a indispensável necessidade, são fruto das primeiras idéias reflexas ocasionadas por nossas sensações.” 

Tudo o que foi dito mostra claramente a confiança que d'Alembert nutre pela razão: a razão controlada pela experiência. Entretanto, também para ele há questões - e questões de importância primordial - diante das quais a nossa razão permanece impotente e cuja solução está “acima das nossas luzes”. Assim, por exemplo, como é que as sensações produzem as idéias? Qual é a natureza da alma? Ou ainda: “Em que consiste a união do corpo com a alma e sua influência recíproca? Os hábitos são próprios do corpo e da alma ou apenas desta última? Em que consiste a desigualdade dos espíritos? E inerente à alma ou depende unicamente da disposição do corpo, da educação, das circunstâncias, da sociedade? Como é que esses diversos fatores podem influir tão diversamente sobre as almas, que sem isso seriam todas iguais, ou como é que substâncias simples podem ser desiguais por sua própria natureza? Por que é que os animais, com órgãos semelhantes aos nossos e com sensações similares e amiúde até mais vivas, permanecem estagnados ao nível da sensibilidade, sem saber dela extrair, como
nós, uma quantidade de idéias abstratas e reflexas, os conceitos metafísicos, as línguas, as leis, as ciências e as artes? Por fim, até onde a reflexão pode levar os animais e por que pode levá-los além? As idéias inatas são uma quimera refutada pela experiência, mas o modo como adquirimos as sensações e as idéias reflexas, embora fundado na mesma experiência, nem por isso é menos incompreensível.”

Pois bem, diante dessas interrogações e de tais argumentos, d'Alembert confessa que “a inteligência suprema colocou diante de nossa fraca vista um véu que procuramos em vão afastar. Trata-se de um triste destino para a nossa curiosidade e o nosso amor próprio, mas é o destino da humanidade. O que devemos é concluir que os sistemas, ou melhor, os sonhos dos filósofos sobre a maioria das questões metafísicas, não merecem nenhum lugar em uma obra que pretenda resumir os conhecimentos reais adquiridos pelo espírito humano”.

3. Denis Diderot: do deísmo à “hipótese” materialista

3.1. O deísmo contra o ateísmo e a religião positiva

Filho de casal de abastados artesãos, Denis Diderot (1713-1784) foi educado pelos jesuítas e encaminhado para a carreira eclesiástica. Entretanto, deixando os estudos eclesiásticos em 1728, foi para Paris, onde conseguiu o título de Magister artium na Sorbonne (1732). Em Paris, entrou em contato com o ambiente dos philosophes e conheceu Rousseau, d'Alembert e Condillac. Para viver, trabalhava como tradutor: traduziu a História da Grécia, de Stanyan, o Dicionário universal de medicina, de James, e o Ensaio sobre o mérito e a virtude, de Shaftesbury. 

Sob a influência de Shaftesbury, Diderot escreveu e publicou em 1746 os Pensamentos filosóficos. Ainda em 1746, iniciou o seu trabalho para a Enciclopédia. Em 1748, publicou a Carta sobre os cegos e, em 1753, a famosa Interpretação da natureza. Em 1759, começou a frequentar o círculo de d'Holbach, onde conheceu Grimm, Saint-Lambert, Raynal e o italiano Galiani. No período de 1769-1770, publicou as Conversações entre d'Alembert e Diderot, O sonho de d'Alembert e os Princípios filosóficos sobre a matéria e o movimento. A Refutação a Helvetius é de 1773. Em 1785, Catarina II de Rússia adquiriu a biblioteca de Diderot, fixando-lhe uma pensão. Em 1773 e 1774, Diderot foi a Petroburgo, empenhando-se na elaboração de projetos de reforma. Nesse meio tempo, se havia transferido para a Holanda, onde escreveu a Refutação a Helvetius. Nos últimos anos de sua vida, colaborou com a obra de Raynal História das duas Índias, que aponta o comércio como o fator basilar do progresso e da civilização.

Pois bem, os Pensamentos filosóficos se apresentam, “na aparência, como uma polêmica contra as proposições e confusões do ateísmo, mas, de fato, Diderot polemiza ao mesmo tempo contra o ateísmo e contra a religião 'supersticiosa' mostrando que ambos devem deixar espaço para uma religião natural fundada na fé na natureza” (Paulo Rossi). Mais adiante, como logo veremos, Diderot assumiria posições bem mais radicais, mas a sua concepção apresentada nos Pensamentos filosóficos é uma concepção claramente deísta e, portanto, contrária tanto ao ateísmo como à religião positiva.

Escreve Diderot: “Não foram os metafisicos que assestaram os grandes golpes que atingiram o ateísmo. Para abalar o materialismo, as sublimes meditações de Malebranche e de Descartes não valiam uma só observação de Malpighi. Se hoje a perigosa hipótese materialista vacila, a honra por isso cabe à física experimental. Somente nas obras de Newton, Musschenbroek, Hartsoeket e Nieuwentyt é que se encontram provas satisfatórias da existência de um ser de perfeita inteligência. Graças ao trabalho desses grandes homens, o mundo não é mais um deus: é uma máquina, com suas rodas, suas cordas, suas polias, suas molas e seus pesos.” E essa máquina não pode ter sido criada/senão por uma inteligência superior e perfeita, isto é, por Deus. E a ordem do mundo, descoberta pela física e pelas ciências da natureza, que leva a Deus, não as pretensas provas da ontologia: “As sutilezas da ontologia criaram quando muito os céticos; só ao conhecimento da natureza é que estava reservado o mérito de fazer verdadeiros deístas.” 

Nos Pensamentos filosóficos, portanto, Diderot se mostra deísta convicto. E também se mostra convicto em sua batalha contra a superstição das religiões positivas, particularmente o cristianismo. Escreve ele: “Provar o Evangelho com um milagre significa provar um absurdo com uma coisa contra a natureza.” Mais: “Por que os milagres de Jesus são autênticos e os de Esculápio, Apolônio de Tiana e Maomé são falsos?” E ainda mais: “Eu acreditaria sem dificuldade em um único homem honesto que me anunciasse: Sua Majestade acaba de conquistar completa vitória sobre os aliados.” Mas, mesmo que toda Paris me garantisse que um morto acabou de ressuscitar em Passy, eu não o creria. Não é de modo algum prodigioso que um historiador nos engane ou que se engane todo um povo.”

Diderot não punha em dúvida apenas os milagres, mas também a inspiração divina da Escritura. Quem estabelece a divindade da Escritura? A Igreja. Mas em que se funda a Igreja? Na Escritura. Diderot comenta: “Não posso aceitar a infalibilidade da Igreja se primeiro não me for demonstrada a divindade das Escrituras. Eis-me, portanto, reconduzido a um inevitável ceticismo.” Na opinião de Diderot, no fundo, não são muito diferentes a mitologia romana (com Rômulo que ascende ao céu) e a cristã. E ele
constrapõe Juliano, o Apóstata, imperador tolerante em matéria religiosa, a Gregório Magno, personagem intolerante.

As paixões humanas também são reavaliadas por Diderot: “Nós nos lançamos sem trégua contra as paixões (...). Entretanto, só as paixões - e as grandes paixões - podem elevar o espírito a grandes coisas. Sem elas, não existe mais o sublime, tanto nos costumes como nas obras, as artes recuam para a sua infância e a virtude torna-se pedante. As paixões moderadas produzem homens comuns (...). As paixões reprimidas degradam homens excepcionais (...). Propor-se a suprimir as paixões é o cúmulo da loucura. E o projeto do devoto, que se atormenta como um forçado para não desejar, não amar e não sentir nada, mas que se tornaria autêntico monstro se os seus propósitos se realizassem.”

Com tudo isso, fica clara a “impiedade” do livro de Diderot. É claro que ele se proclama fiel à Igreja de Roma, que sustenta que o cristianismo é melhor do que as outras religiões positivas e que considera um bem uma adequada educação religiosa. Mas nada disso é suficiente para mascarar a natureza do trabalho de Diderot. Pergunta-se ele: "Que graves delitos cometeram todos esses infelizes? Alguns batem no peito com pedras; outros se cortam o corpo com pontas de ferro; todos têm nos olhos o remorso, a dor e a morte. Quem os condenou a semelhantes tormentos? (...) O Deus a que eles ofenderam (...). Mas quem é esse Deus? Um Deus cheio de bondade (...). Um Deus cheio de bondade poderia encontrar prazer em banhar-se em suas lágrimas? Talvez os seus terrores não deveriam ofender a sua clemência? E o que poderiam fazer mais do que os assassinos para acalmar os furores de um tirano?”

Para ele, na verdade, "viver-se-ia bastante tranqüilos neste mundo se se estivesse verdadeiramente seguro de que não há nada a temer no outro: o pensamento da não existência de Deus nunca assustou ninguém, mas, ao contrário, é aterrorizante pensar que existe um Deus como aquele que me descreveram”. E, no Acréscimo aos pensamentos filosóficos, escreve ainda: “Pascal disse: “Se vossa
religião é falsa, não arriscais nada em crê-la verdadeira; se é verdadeira, arriscais tudo em crê-la falsa.” Pois um imã pode dizer a mesma coisa que Pascal.” Em 7 de julho de 1746, o Parlamento de Paris condenou o livro a pedido por considerá-lo “escandaloso e contrário à Religião e à Moral (...); ele apresenta o veneno das mais criminosas e absurdas opiniões de que seja capaz a depravação da razão humana (...), coloca todas as religiões no mesmo plano e acaba por não aceitar nenhuma”.

3.2. Tudo é matéria em movimento

Nos Pensamentos filosóficos (e também em outra obra de Diderot, O passeio de um cético), a teologia natural deísta de tipo newtoniano fica evidente. Entretanto, depois desses trabalhos, Diderot muda a direção do seu pensamento e, a partir da Carta sobre os cegos, chegando até à Interpretação da natureza, à Conversação entre d'Alembert e Diderot e ao Sonho de d'Alembert, ele vai "contrapondo à natureza 'estática' e 'criada' dos newtonianos e de Voltaire (...) a imagem de uma realidade física em contínuo movimento e desenvolvimento, que tem sua origem em si mesma e na qual a presença de uma 'ordem' não autoriza nenhuma afirmação sobre a presença de causas finais ou a existência de um supremo Ordenador” (Paulo Rossi).

Diderot substitui o deísmo por um neo-espinozismo materialista, para o qual vale o postulado Deus sive natura sive materia. O mundo é matéria em movimento. Na Carta sobre os cegos, podemos ler: “O que é este mundo? Um composto sujeito a revoluções (...), uma rápida sucessão de seres que se seguem, que se repelem uns aos outros e desaparecem, uma simetria efêmera, uma ordem contingente.” Não é lícito afirmar nada mais para além da matéria em movimento: “A hipótese de um ser qualquer, colocado fora do universo, é impossível. Nunca se deve fazer hipóteses desse gênero, porque nunca se pode inferir nada.” Depois de escrever isso nos Princípios filosóficos sobre a matéria e o movimento, ele afirma, na Interpretação da natureza: “Quantas idéias absurdas, quantas falsas suposições, quantas noções quiméricas podemos encontrar nos hinos que alguns temerários defensores das causas finais ousaram compor em nome do Criador!”

Portanto, nenhum Deus ordenador e nenhum finalismo. Aquilo que existe é apenas matéria em movimento: “Vejo que tudo está em relação de ação e reação, que tudo se destrói sob uma forma e se recompõe sob uma outra; vejo sublimações, dissoluções e combinações de toda espécie, isto é, fenômenos incompatíveis com a homogeneidade da matéria; daí concluo que a matéria é heterogênea, que na natureza existe uma infinidade de elementos diversos, cada um dos quais, por sua diversidade, possui' sua própria força particular, inata, imutável, eterna e indestrutível e que essas forças se desenvolvem; disso deriva o movimento, ou seja, aquele fermento geral que existe no universo.”

E disso deriva também a vida: “Vês este ovo? Pois com este ovo caem por terra todas as escolas de teologia e todos os templos da terra. O que é este ovo? Antes que o germe lhe tenha sido introduzido é uma massa insensível. E, depois que o germe lhe é introduzido, o que é? Continua sendo uma massa insensível, porque o próprio germe nada mais é que um fluido inerne e grosseiro. Mas de que modo essa massa passará a outra organização, à sensibilidade, à vida? Através do calor. E quem produzirá o calor? O movimento.” E, segundo Diderot, as formas orgânicas são sujeitas a transformações graduais. Como se vê, estamos diante de uma imagem total do universo, construída a partir dos dados das ciências existentes e voltada para fecundar outros campos de experiência. Estamos diante de uma tentativa de interpretação global que levou alguns intérpretes de Diderot a falarem de uma possível metafísica materialista.

Entretanto, examinando bem toda a obra de Diderot, mais do que uma metafísica materialista dogmática do universo, talvez devamos ver em Diderot uma consciente tentativa ou hipótese de ordem geral e de natureza materialista concernente a todo o universo, tentativas e hipóteses em harmonia com o estado da pesquisa científica naquela época. Assim entendendo o seu materialismo neo-espinozista, então também podemos refiitar (íuntamente com o Paulo Casini) a hipótese daqueles intérpretes que viram em Diderot um pensador em contínua contradição consigo mesmo, posto que a Refutação a Helvetius não seria o retoma de Diderot ao deísmo e a rejeição ao materialismo; pelo contrário, tal Refutação expressaria o controle metodológico de um filósofo esperto sobre idéias que, ao invés de se apresentarem como hipóteses, pretendem o caráter absoluto do sistema metafísico. 

Escreve Diderot: “Diz ele: a educação faz tudo. Dizei: a educação faz muito ... Diz ele: as nossas penas e os nossos prazeres se resumem sempre em penas e prazeres dos sentidos. Dizei: bastante amiúde... Diz ele: a instrução é a única fonte das diferenças entre os espíritos. Dizei: é uma das principais... Diz ele: o caráter depende inteiramente das circunstâncias. Dizei: creio que as circunstâncias o modificam.” Portanto, em relação a Helvetius, há em Diderot maior consciência metodológica. 

Mas, como destaca Paulo Rossi, por detrás das divergências com Helvetius havia também profundas divergências políticas: “Quando se opõe à tese de que 'os homens podem viver felizes 'sob o governo arbitrário de soberanos justos, humanos e virtuosos', Diderot não se opõe somente ao despotismo beato da corte francesa, mas também revela todos os equívocos presentes no ideal e na prática do absolutismo iluminado, referindo-se a um conceito de 'virtude' cheio de implicações e energias revolucionárias.” Pergunta-se Diderot: “O que caracteriza um tirano? Talvez a bondade ou a maldade?" E responde: “Nada disso. Essas duas noções não entram de modo algum na definição de tirano. O problema é a extensão da autoridade que ele se arroga, não o seu uso. Dois ou três reinados de um poder justo, doce e iluminado, mas arbitrária, constituiriam uma das maiores desgraças que podem ocorrer a uma nação: os povos seriam levados da felicidade ao completo esquecimento dos seus direitos, à mais perfeita escravidão.” 

É esse o humanismo de Diderot, um filósofo que crê na razão (“se renuncia à razão, fico sem nenhum guía”), mas não na onipotência da razão e que, conseqüente, exalta a dúvida e elogia o verdadeiro cético: este “é um filósofo que duvidou de tudo aquilo em que ele crê e que crê naquilo que o uso legítimo de sua razão e dos seus sentidos lhe demonstrou ser verdadeiro”. Na realidade, “aquilo que nunca foi posto em questão nunca foi provado. Aquilo que nunca foi examinado sem prevenção nunca foi bem examinado. O ceticismo, portanto, é o primeiro passo em direção à verdade.”

6. Voltaire e a grande batalha pela tolerância

6.1. O significado da obra e da vida de Voltaire

“Voltaire foi o último dos grandes poetas dramáticos que adequou à medida grega a sua alma multiforme, nascida para as maiores tempestades trágicas. Ele podia aquilo que nenhum alemão podia ainda, porque a natureza do francês é muito mais afim à grega que a natureza do alemão: desse modo fo' ele o último grande escritor que, ao manejar a língua da prosa, teve o ouvido de grego, a consciência artística de grego, a simplicidade a graça de grego.” Esse juízo sobre Voltaire é de Friedrich Nietzsche. E, por seu turno, Wolfgang Goethe chegou a dizer: “Foi Vol aire quem suscitou personalidades como Diderot, d'Alembert, Bea marchais e outros ainda, já que, para ser simplesmente alguma coisa em relação a ele, era preciso ser muito.” Na realidade, com sua prosa sarcástica, cortante e elegante, com sua paixão pela justiça, com seu ilimitado amor pela tolerância, com seu riso e suas fiírias, Voltaire é o símbolo da cultura iluminista.

François-Marie Arouet (conhecido sob o pseudônimo de Voltaire) nasceu em Paris, último dos cinco filhos de um notário, em 1694. Depois de ter sido educado na casa do abade de Châteneuf, seu padrinho, em 1704 tomou-se aluno do colégio Louis-le- Grand, mantido pelos jesuítas. Aí, deu provas de vivaz precocida- de. Mas, tendo recebido uma herança, deixou o colégio e passou a freqüentar o círculo dos jovens “livres-pensadores” e iniciou seus estudos de direito. Em 1713, como secretário, acompanhou à Holanda o marques de Châteneuf (irmão de seu padrinho), embaixador da França. Entretanto, uma aventura amorosa com uma jovem protestante fez com que a família, alarmada, chamasse Voltaire de volta a Paris.

Voltando, ele faz circular duas composições irreverentes em relação ao regente, sendo obrigado a um breve ezdlío em Sully-sur- Loire. Retomando a Paris, foi preso, ficando encarcerado na Bastilha por onze meses (de maio de 1717 a abril de 1718). Em novembro de 1718, foi encenada a sua tragédia Oedipe, que alcançou enorme sucesso. Em 1723, publicou o poema épico La ligue, escrito em honra de Henrique IV. Mais tarde, em 1728, esse poema foi republicado sob o título de Henriade

Nesse meio tempo, em 1726, um nobre, o cavalheiro de Rohan, ofendido pelo sarcasmo de Voltaire, fez com que seus servos o bastonassem brutalmente. Voltaire desafiou o cavalheiro de Rohan para um duelo. Mas toda a resposta que ele deu foi a de mandar encarcerá-lo de novo na Bastilha. Saindo da prisão, partiu em exílio para a Inglaterra, onde permaneceu por três anos e onde publicou a Henriade.

Na Inglaterra, foi introduzido no círculos da alta cultura inglesa pelo lorde Bolingbroke. Entrou em contato com Berkeley, Swift, Pope e outros doutos ingleses, estudou as instituições políticas inglesas e aprofundou o pensamento de Locke e de Newton. Com efeito, "a leitura de Locke dotou-o de uma filosofia, a de Swift de um modelo, a de Newton de uma doutrina científica. A Bastilha lhe havia inspirado o desejo de uma sociedade renovada e a Inglaterra lhe havia mostrado aquilo que tal sociedade podia ser” (A. Maurois).

O grande resultado de sua estada inglesa são as Cartas filosóficas sobre os ingleses, publicadas pela primeira vez em inglês em 1733 e logo em francês, em 1734 (mas impressas na Holanda e distribuídas clandestinamente na França). Nessas Cartas, Voltaire contrapõe as liberdades inglesas ao absolutismo político francês, expõe os princípios da filosofia empirista de Bacon, Locke e Newton e contrapõe a ciência de Newton à de Descartes. Claro, Voltaire não nega os méritos matemáticos de Descartes, mas sustenta que ele “fez uma filosofia como se faz um bom romance: tudo parecia verossímil e nada era verdadeiro". 

Diz Voltaire que Descartes "se enganou; entretanto, seguiu um método rigoroso e consequente, destruiu as absurdas quimeras com as quais a juventude vinha sendo alimentada há dois mil anos e ensinou os homens de seu tempo a raciocinar, alás, a servirem-se contra ele mesmo das armas que ele próprio lhes havia emprestado. No fim das contas, se não nos pagou com uma boa moeda, já foi muito nos ter posto em guarda contra a falsa".

Quem pagou com boa moeda foi Newton: a filosofia de Descartes é "esboço", a de Newton "obra-prima". E "as descobertas do cavaleiro Newton, que lhe valeram fama tão universal, dizem respeito ao sistema do mundo, à luz, ao infinto em geometria e, por fim, à cronologia, à qual se dedicou com a diversão relaxante (....). Depois dele, o caminho que ele abriu tornou-se infinito".

Por seu turno, Bacon é "o pai da filosofia experimental". O Lorde Chanceler "ainda não chegou a conhecer a natureza, mas a intuiu e mostrou o caminho que conduzia a ela. Começou em boa hora a desprezar aquilo que as universidades chamavam de filosofia e fez todo o possível para que aqueles institutos, criados para o aperfeiçoamento da razão humana, não continuassem a confundi-la com as suas quididades, o seu horror ao vácuo, as suas formas substanciais e todas as outras palavras vazias, tomadas respeitáveis pela ignorância, aliás, tomadas quase sagradas em virtude de uma ridícula mistura com a religião”.

E “talvez não tenha existido nunca um espírito tão profundo e metódico e um lógico mais exato do que Locke (...). Depois de ter destruído o conceito de idéia inata (...), Locke estabeleceu que todas as nossas idéias provêm dos sentidos, estudou as idéias simples e as complexas, seguiu o espírito do homem em todas as suas operações e mostrou como são imperfeitas as linguagens que os homens falam e como eles abusam continuamente dos termos que utilizam".

Voltaire retornou à França em 1729. E, em 15 de março de 1730, morreu a atriz Adrienne Lecouvreur, a cuja salma mortuária foi negado o sepultamento em terra consagrada, visto que se tratava de atriz. E Voltaire escreve então La mort de M ademoiselle Lecouvreur, onde evidencia a grande diferença dessa atitude em relação ao sepultamente que os ingleses deram à atriz Anne Oldfield, em Westminster. A tragédia Brutus é de 1730, ao passo que a Histoire de Charles XII é de 1731. Em 1732, Voltaire conheceu sucesso triunfal com a tragédia Zaire

Em 1734, como já dissemos, são publicadas as Cartas sobre os ingleses. O Parlamento as condenou e o livro foi queimado no pátio da Cúria Parlamentar. Voltaire foge de Paris, indo encontrar refúgio no castelo de Cirey, junto à sua amiga e admiradora, a marquesa de Châtelet. E assim teve início uma união destinada a durar cerca de quinze anos. E precisamento em Cirey se constitui um sodalício, do qual participam intelectuais como Maupertuis, Algarotti e Bernouilli. Para Voltaire, o período de Cirey é uma época feliz e fecunda: aí ele escreve La mort de César (1735), Alzire (1736), os Elements de la philosophie de Newton (1737), a Métaphysique de Newton (1740) e mais duas tragédias: Mahomet (1741) e Mérope (1745).

Reconciliado com a Corte, apoiado na simpatia de madame Pompadour, Voltaire foi nomeado historiógrafo da França pelo rei e em 15 de abril de 1746 foi eleito membro da Academia. Os relatos filosóficos Babuc, Memnon e Zadig são publicados, respectivamente, em 1746, 1747 e 1748. Nesse meio tempo, porém, "outra pequena corte, a de Lunéville, onde o ex-rei da Polônia, Estanislau Leczinski, reinava sobre uma amante e um confessor, assistia à grande tragédia da vida de Voltaire. Foi lá que Madame de Châtelet deixou-se seduzir pelo homem Saint-Lambert, que era belo e sensível. Foi surpreendida por Voltaire, que se enfureceu, mas depois, como bom filósofo, perdoou. Mas a senhora teve um filho e morreu do parto: a dor de Voltaire foi sincera” (A. Maurois).

Madame de Châtelet morreu em 1749. E Voltaire partiu para Berlim, onde Frederico da Prússia lhe havia oferecido um cargo de camarista. Recebido com grandes honras, depois de três anos Voltaire conclui o seu período prussiano como uma detenção. A esse período remonta a primeira edição de Le siêcle de LouisXIV (1751). Em 1755, adquiriu a quinta “Les Délices”, nas proximidades de Genebra, onde o alcançou a notícia do terrível terremoto de Lisboa: em 1756, publicou o Poême du desastre de Lisbonne. Nesse meio tempo, colaborou também com a Enciclopédia.

Publicou então, em sete volumes, o seu Essai sur Phistoire générale et sur les moeurs et l'esprite des nations, obra conhecida como Essai sur les moeurs. Enquanto Bossuet, em seu Discurso sobre a história universal, havia pretendido demonstrar que a história é a realização do plano da Providência, Voltaire exclui da história o mito e a “superstição” religiosa, fazendo uma história dos homens, de suas instituições e de suas culturas. Os acontecimentos humanos não dependem de modo algum da Providência, mas sim do entrelaçar-se dos acontecimentos e das ações dos homens e, às vezes, homens iluminados e geniais podem mudar para melhor o destino dos homens. Em sua história universal, Voltaire inclui a história dos povos da India, do Japão e da China. Ele pretende eliminar o sobrenatural dos acontecimentos humanos e sustenta que a história judaico-cristã tem um papel modesto na história universal da humanidade. Mas talvez a coisa mais importante é que Voltaire substitui a história dos reis, das dinastias e das batalhas por uma história das civilizações, isto é, uma história dos costumes, vale dizer, uma história das instituições, das mentalidades e das tradições culturais.

O Poema sobre o desastre de Lisboa antecipa o tema que Voltaire retoma em Candide ou lbptimisme, publicado em 1759. Em 1762, foi justiçado injustamente o comerciante protestante Jean Calas, acusado, juntamente com sua família, de ter assassinado um filho que pretenderia se converter ao catolicismo. Voltaire escreveu então o Traité sur la tolérance, no qual, como veremos melhor dentro em pouco, ele denuncia impiedosamente e com nobre paixão humana os erros judiciários, o fanatismo, o dogmatismo e a intolerância religiosa. 

Nesse meio tempo, em 1758, havia adquirido uma propriedade em Ferney, onde iria se estabelecer definitivamente em 1760. O Dictionnaire philosophique é de 1764; a Philosophie de l'histoire, publicada na Holanda, é de 1765; de 1766 são Le philosophe ignorant e O Commentaire sur le libre des délits et des peines de Beccaria (cujo ensaio havia aparecido dois anos antes, em 1764). 

Em 1766, o cavalheiro de la Barre foi acusado de ímpiedade e condenado à morte. Sobre seu corpo, foi queimada uma cópia do Dictionnaire philosophique. E eis o que Voltaire escreve a propósito desse suplício: “Quando o cavalheiro de la Barre, sobrinho de um lugar-tenente geral do Exército, jovem de muita inteligência e grandes esperanças, mas às voltas com os estouvamentos de uma juventude desregrada, foi culpado de ter cantado canções ímpias e de ter inclusive passado diante de uma procissão de capuchinhos sem tirar o chapéu, os juízes de Abbeville, gente comparável aos senadores romanos, ordenaram não apenas que se lhe anancasse a língua, que se lhe cortasse a mão e que se lhe queimasse o corpo em fogo brando, mas aplicaram-lhe também a tortura para saber com precisão quantas daquelas canções havia cantado e quantas procissões havia visto passar sem tirar o chapéu da cabeça. E essa bela história não ocorreu no século XIII ou XIV, mas por volta de meados do século XVIII.” 

Embora já estivesse em idade avançada, a atividade de Voltaire não cessa. Em 1767, aparecem as Questions de Zapola, o Examen important de Milord Bolingbroke, a Défense de mon oncle e L'ingenu. Os volumes das Questions sur l'Encyclopedie são de 1770-1772. Em 1776, aparece La Bible enfim expliquée. Em 10 de fevereiro de 1778, depois de vinte anos de ausência, Voltaire volta a Paris, para a apresentação de sua última comédia, Iréne. Durante a viagem, foi aclamado por imensas multidões, aos gritos de “Viva Voltaire!” e “Viva o defensor de Calas!” E, algumas semanas mais tarde, em 30 de maio de 1778, morria Voltaire.

“Por ter sofrido a intolerância, as ordens e a insolência dos poderosos e também por ter coração e imaginação, foi adversário tenaz de todo fanatismo e de todo despotismo. Por ter sido burguês e ótimo homem de negócios, ,admirava a constituição que, na Inglaterra, dera-se “uma nação de bodegueiros”. Como o engenho, a habilidade e o talento permitiram-lhe constituir grande fortuna, esse reformador nunca iria ser revolucionário. Por fim, por ter sido ao mesmo tempo extraordinariamente inteligente, curioso por toda ciência, da teologia à política, da astronomia à história, e capaz de expor com evidente clareza as questões mais obscuras, ele iria exercer sobre os homens de sua época e também sobre os homens dos séculos posteriores influência maior que a de qualquer outro escritor” (A. Maurois).

6.2. Defesa do deísmo contra o ateísmo e o teísmo

Há dicionários segundo os quais o voltairianismo é definido como “atitude de incredulidade irônica em relação às religiões”. Mas, para Voltaire, Deus existe ou não existe? Pois bem, na opinião de Voltaire não há qualquer dúvida de que Deus existe. Para ele, como para Newton, Deus é o grande engenheiro ou mecânico que idealizou, criou e regulou o sistema do mundo. O relógio é uma prova insofismável de que existe o relojoeiro. E Deus, na opinião de Voltaire, existe porque existe a ordem do mundo. Em suma, a existência de Deus é atestada pelas “simples e sublimes leis em virtude das quais os mundos celestes correm no abismo dos espaços”. 

No Tratado de metafísica, Voltaire escreve que “depois de sermos tão arrastados de dúvida em dúvida, de conclusão em conclusão, (...) podemos considerar esta proposição, Deus existe, como a coisa mais verossímil que os homens podem pensar (...) e a proposição contrária como uma das mais absurdas". A ordem do universo não pode ter derivado do acaso, “antes de mais nada porque no universo há seres inteligentes e vós não conseguiríeis provar se é possível que apenas o movimento produza a inteligência e, enfim, porque, segundo a vossa própria confissão, pode-se apostar um contra o infinito que uma causa inteligente. anima o universo. Quando estamos sozinhos diante do infinito, nos sentimos muito pobres. Mas, quando estamos diante de uma bela máquina, dizemos que há um mecânico e que esse mecânico deve ter um gênio excepcional. Ora, o mundo é certamente uma admirável máquina: portanto, existe uma inteligência admirável, onde quer que ela esteja. Tal argumento é velho, mas não é dos mais desprezíveis...”

Deus existe. Mas também existe o mal. Como conciliar a presença maciça do mal com a existência de Deus? A resposta de Voltaire é que Deus criou a ordem do universo físico, mas que a história é uma questão dos homens. E esse é o núcleo doutrinário do deísmo. O deísta é alguém que sabe que Deus existe. Mas, como escreve Voltaire no Dicionário filosófico, "o deísta ignora como Deus pune, favorece e perdoa, porque não é tão temerário a ponto de iludir-se que conhece como Deus age”.

Ademais, o deísta "se abstém de aderir a alguma das seitas particulares, que são todas intimamente contraditórias. A sua religião é a mais antiga e a mais diftmdida, porque a simples adoração de um Deus precedeu todos os sistemas deste mundo. Ele fala uma língua que todos os povos podem entender, ainda que, quanto ao resto, não se entendam em absoluto entre si. Os seus irmãos estão espalhados pelo mundo, de Pequim a Caiena, todos os sábios são seus irmãos. Ele considera que a religião não consiste
nas doutrinas de uma metafísica ininteligível, nem em vãos instrumentos, mas na adoração e na justiça. Fazer o bem, eis o seu culto; estar submetido a Deus, eis a sua doutrina (...). Ele socorre o indigente e defende o oprimido". 

Voltaire, portanto, é deísta. E, em nome do deísmo ele rejeita o ateísmo: “Certos geômetras não filósofos rejeitaram as causas finais, mas os verdadeiros filósofos as admitem e, para retomar a expressão de conhecido escritor, enquanto um catequista anuncia Deus às crianças, Newton o demonstra aos sábios.” Ademais, observa Voltaire, "o ateísmo é um monstro muito perigoso naqueles que governam e o é também nas pessoas de estudo, mesmo que sua vida seja inocente, porque do seu estudo ele pode chegar àqueles que estão nas praças. E, se não é tão funesto quanto o fatalismo, entretanto é quase sempre fatal para a virtude. Mas devemos lembrar de acrescentar que existem hoje menos ateus do que já existiram, desde quando os filósofos reconheceram que não existe nenhum ser vegetal sem o seu germe, nenhum germe sem uma finalidade etc., e que os grãos não nascem da podridão”. 

Voltaire, portanto, é contrário ao ateísmo. E é contrário ao ateísmo pelo fato de que ele é deísta. E, para o deísta, a existência de Deus não é artigo de fé, mas sim resultado da razão. Escreve Voltaire, ainda no Dicionário filosófico: "Para mim, é evidente que existe um ser necessário, eterno, supremo, inteligente - e isso não é verdade de fé, mas de razão (...). A fé consiste em crer, não naquilo que parece verdadeiro, mas naquilo que parece falso para o nosso intelecto (... e) há fé em coisas maravilhosas e fé em coisas contraditórias e impossíveis.”

A existência de Deus, portanto, é um dado de razão. Já a fé é apenas superstição: “Quase tudo que vai além da adoração de um Ser supremo e a submissão do coração às suas ordens etemas é superstição.” Por isso, com suas crenças, seus ritos e liturgias, as religiões positivas são quase completamente acúmulos de superstições. “O supersticioso está para um tratante como o escravo está para o tirano. E mais: o supersticioso é governado pelo fanático e torna-se tal. Nascida do paganismo e adotada pelo judaísmo, a superstição infectou a Igreja cristã desde os primeiros tempos (...).

Hoje, metade da Europa está persuadida de que a outra metade foi supersticiosa durante séculos e ainda o é. Os protestantes consideram as relíquias, as indulgências, as flagelações, as orações pelos mortos, a água benta e quase todos os ritos da Igreja romana como supersticiosa demência. Segundo eles, a superstição consiste em adotar práticas inúteis como se fossem práticas indispensáveis.”

Segundo Voltaire, também não é de admirar que uma seita considere a supersticiosa outra seita e todas as outras religiões: “Com efeito, os muçulmanos acusam de superstição todas as sociedades cristãs e são por elas acusados. Quem julgará esse grande processo? Quem sabe a razão? Mas toda seita pretende ter a razão do seu lado. A decisão será portanto pela força, na expectativa de que a razão penetre em um número de cabeças bastante grande a ponto de conseguir desarmar a força.”

Depois de fazer longas relações de superstições, Voltaire conclui: “Menos superstições, menos fanatismo; menos fanatismo, menos desventuras.” E é perfeitamente inútil que a França se vanglorie de ser menos supersticiosa do que outros países: “Mas quantas sacristias ainda existem em que encontrais pedaços do vestido da Virgem Maria, grânulos do seu leite e caspa dos seus cabelos! E ainda não existe, talvez, na Igreja de Puy-en-Velay, parte do prepúcio do filhinho da Virgem Maria, religiosamente conservada? (. . .) E eu ainda poderia vos citar vinte outros exemplos desse gênero. Envergonhai-vos e procurai vos corrigir!” E eis ainda outros conselhos: “Espanhóis, que os nomes da Inquisición e da Santa-Hermandad não se escutem mais entre vós. Turcos, que submetestes a Grécia, e monges, que a embrutecestes, desaparecei da face da terra!”

6.3. A “defesa da humanidade” contra o “sublime misântropo” de Pascal

As Cartas filosóficas I-VII tratam do pluralismo das confissões na Inglaterra e acentuam a concórdia religiosa e a tolerância da sociedade inglesa; as cartas VIII-X têm por objeto o regime de liberdade do povo inglês, bem diferente do sistema político da França; as cartas XI-XVII referem-se à filosofia inglesa e tratam de Bacon, Locke, Newton e da filosofia experimental, tão distante da metafísica escolástica e da filosofia cartesiana praticadas na França; as cartas XVIII-XXIV relacionam-se com a literatura, voltando sua atenção para a liberdade existente e para a influência exercida pelos intelectuais sobre a mais ampla sociedade.

As Cartas filosóficas são obra de grande relevância, exercendo enorme influência. Elas levaram à França, de modo sistemático, o pensamento político e filosófico inglês. Entretanto, a carta que, naquela época, suscitou a maior repercussão, quando não até mesmo um escândalo, foi a carta XXV, intitulada Remarques sur Pascal. Para Voltaire, como todas as religiões positivas, o cristianismo é superstição. Mas o cristianismo havia encontrado na França um apologista de grande gênio: Pascal. Por conseguinte, atacar Pascal significava minar o ponto mais forte da tradição cristã francesa. E Voltaire tentou exatamente isso: realizar um ataque a Pascal.

Diz Voltaire: “Respeito o gênio e a eloqüência de Pascal. (. ..) E é exatamente admirando o seu gênio que combato algumas de suas idéias." Mas que idéias de Pascal devem ser rejeitadas ou, de qualquer forma, corrigidas? Afirma Voltaire: “Em geral, tenho a impressão de que Pascal escreveu os Pensamentos com a intenção de mostrar o homem em uma luz odiosa. Ele se dedica a pintá-los todos maus e infelizes. Ele escreve contra a natureza humana mais ou menos com o tom com que escrevia contra os jesuítas.” E nisso reside o primeiro erro fundamental, já que ele “atribui à essência da nossa natureza aquilo que só pertence a alguns homens. Ele comete uma eloqüente injúria a todo o gênero humano. Por isso, ouso tomar a defesa da humanidade contra esse sublime misântropo e ouso afirmar que não somos tão maus nem tão infelizes como ele diz".

Na opinião de Voltaire, o pessimismo de Pascal está deslocado. E, se é equivocada a concepção que Pascal tem do homem, pensa Voltaire que também é errada a saída que ele aponta para o suposto estado de miséria do homem. Para Pascal, é a verdadeira religião, isto é, o cristianismo, que explica as contradições inerentes ao ser humano, a sua miséria e a sua grandeza. Entretanto, replica Voltaire, outras concepções (como o mito de Prometeu, o de Pandora, os dogmas dos siameses etc.) também podiam explicar essas contradições. Ademais “a religião cristã permaneceria da mesma forma verdadeira mesmo que não nos esforçássemos por elaborar tais raciocínios especiosos (...). O cristianismo nada mais ensina que a simplicidade, a humanidade e a caridade. Pretender traduzi-lo para a metafísica significa fazê-lo uma fonte de erros”.

Pascal sustenta também que, sem o mais incompreensível dos mistérios, permaneceríamos incompreensíveis para nós mesmos. Mas, objeta Voltaire, “o homem é concebível sem esse mistério inconcebível: que espécie de raciocínio é esse?” Na realidade, “o homem não é de modo algum um enigma, como gostais de pensar para terdes o prazer de resolvê-lo. O homem tem o seu lugar na natureza, superior aos animais, aos quais se assemelha pelos órgãos, e inferior aos outros seres, aos quais talvez se assemelhe pelo pensamento. Contudo o que vemos, ele é uma mistura de mal e bem, de prazer e dor. E dotado de paixões para agir e de razão para governar suas próprias ações. Se o homem fosse perfeito, então seria Deus. Esses pretensos contrastes, que chamais de contradições, são os ingredientes necessários que constituem aquele composto que é o homem, que é aquilo que deve ser”.

No que se refere à questão da célebre “aposta” pascaliana sobre a existência de Deus (segnmdo a qual, como é preciso apostar, então é racional apostar que Deus existe, pois, se se vence, ganha-se tudo, mas, se se perde, não se perde nada), Voltaire observa que “semelhante proposição parece-me despropositada e pueril: essas idéias de jogo, de perda e de ganho são absolutamente inconvenientes para a gravidade do assunto". Mas não é só isso, pois “o interesse que eu posso ter em acreditar em uma coisa não constitui em absoluto uma prova de sua existência”.

Por fim, a busca das diversões e das ocupações extemas, para Pascal, constitui um sinal evidente da miséria humana. Mas Voltaire não é da mesma opinião: “Esse instinto secreto (para a diversão), sendo o princípio primeiro e o fundamento necessário da sociedade, é muito mais um dom da bondade de Deus e o instru- mento de nossa felicidade do que o resultado de nossa miséria.”

Voltaire desenvolve também outros argumentos contra Pascal e afirma até que deixa de lado outras observações que poderiam ser desenvolvidas sobre os Pensamentos de Pascal. E conclui suas anotações considerando: “Basta-me a presunção de ter captado alguns descuidos nesse grande gênio: para um espírito limitado como o meu, é uma Consolação estar persuadido de que mesmo os maiores homens se enganam, exatamente como os homens mais comuns.”

6.4. Contra Leibniz e o seu “melhor dos mundos possíveis”

Se Voltaire estava persuadido de que até "o grande gênio" de Pascal pode errar às vezes, muito mais convencido estava ainda da falsidade e da ilusoriedade do otimismo de Leibniz, "o mais profundo metafisico da Alemanha”, para quem o mundo só pode ser "o melhor dos mundos possíveis". Diferentemente de Pascal, Voltaire não pensa que tudo é mau: “Por que razão deveríamos ter horror
pelo nosso ser? A nossa existência não é assim tão infeliz como gostariam de nos fazer crer. Considerar o universo como um cárcere e todos os homens como criminosos à espera de serem
justiçados é uma idéia de fanático." 

Entretanto, embora reprovando o pessimismo obsessivo de Pascal, Voltaire não é insensível nem fica cego diante do mal do mundo. O mal existe: os horrores da maldade humana e as penas das catástrofes naturais não são invenções dos poetas. São fatos nus e crus que se chocam com força decisiva contra o  otimismo dos filósofos, contra a idéia do "melhor dos mundos possíveis”. Já no Poema sobre o desastre de Lisboa, Voltaire perguntava-se o por quê do sofrimento inocente, a razão da "desordem eterna” e do “caos de desventuras" que nos cabe ver neste "melhor dos mundos possíveis". E dizia que, se é verdade que “tudo um dia ficará bem”, o que constitui a nossa esperança, entretanto é ilusão sustentar que “tudo está bem hoje em dia".

Entretanto, é com Cândido ou o otimismo, verdadeira obra-prima da literatura e da filosofia iluminista, que Voltaire procura despedaçar aquela filosofia otimista que trata de justificar tudo, impedindo-se assim de compreender alguma coisa. Como dissemos, Cândido é uma obra-prima: "O espírito de Cândido inspirou Renan, Anatole France e até escritores de direita, como Charles Maurras e Jacques Baiville. O estilo de Voltaire, brilhante, rápido, simples e claro, tornou-se o ideal de toda uma estirpe de escritores franceses, aqueles que não haviam adotado o mestre da escola rival, isto é, Chateaubriand. Inclusive no exterior, escritores como Byron muito ficariam devendo à ironia voltairiana” (A. Maurois). 

O Cândido é um relato tragicômico. A tragédia está no mal, nas guerras, nas opressões, na intolerância, na superstição cega, nas doenças, nas arbitrariedades, na estupidez, nas roubalheiras e nas catástrofes naturais (como o terremoto de Lisboa) com que Cândido e seu mestre Pangloss (contrafigura de Leibniz) se defrontam. E a comédia está nas insensatas justificações que Pangloss e também Cândido, seu aluno, procuram dar às desventuras humanas.

Que tipo de mestre é Pangloss? "Pangloss ensinava a metafísico-teológico-cosmológico-idiotologia. Demonstrava admiravelmente que não há efeitos sem causas e que, neste melhor dos mundos possíveis, o castelo do senhor Barão era o mais belo dos castelos e que sua senhora era a melhor baronesa possível. Dizia: 'Está provado que as coisas não podem ser de outro modo: com efeito, como tudo é feito por um fim, tudo existe necessariamente pelo melhor fim. Observai que os narizes são feitos para que neles repousem os óculos e, com efeito, nós temos óculos; notai que as pernas são evidentemente conformadas para vestirem calças e, com efeito, nós temos calças. Da mesma forma, as pedras foram
criadas para serem lapidadas e delas serem feitos castelos e, com efeito, meu senhor tem um belíssimo castelo: o mais poderoso Barão da província deve ser o melhor alojado. E, como os porcos foram criados para serem comidos, nós comemos porco o ano inteiro. Conseqüentemente, aqueles que afirmaram que tudo vai bem disseram uma asneira: é preciso dizer que tudo vai da melhor maneira possível."

Expulso do castelo do barão Thunder-ten-Tronchle, por ter sido surpreendido em atitude amorosa com a senhorita CunegLmda, Cândido foi alistado à força no exército dos búlgaros (isto é, dos prussianos), em guerra com os ábaros (os franceses), sendo chicoteado de modo horroroso: “Não há efeito sem causa - pensava Cândido. - Tudo está necessariamente ligado e ordenado para o melhor. Era necessário que eu fosse expulso da presença de Cunegunda e que passasse pelo chicote, assim como é necessário que eu esmole o pão até que possa ganhá-lo. Tudo isso não poderia ser diferente.”

Era assim que pensava Cândido, quando se viu forçado a pedir esmola, depois de ter escapado de uma tremenda batalha: “Não havia nada no mundo de mais belo, ágil, brilhante e bem ordenado do que dois exércitos. Trombetas, pífaros, oboés, tambores e canhões criavam uma harmonia tal que não se ouviria nem mesmo no inferno. Os canhões deram a partida, despedaçando cerca de seis mil homens de cada lado; depois, os mosquetes tiraram do melhor dos mundos mais ou menos nove ou dez mil velhacos, que estavam infectando a sua crosta. E a baioneta tomou-se razão suficiente para a morte de alguns milhares de homens. Podia-se avaliar o todo em umas trinta mil almas. Cândido, que tremia como um filósofo, escondeu-se o melhor que pôde durante tal massacre heróico. Finalmente, enquanto os dois reis, cada qual no seu próprio campo, faziam entoar o Te Deum, decidiu ir para outro lugar, a fim de discutir os efeitos e as causas.”

Depois de várias peripécias e de tantas dores, Cândido encontra novamente Pangloss, todo desfigurado, que lhe conta que “Cunegtmda teve o ventre aberto pelos soldados búlgaros, depois de ter sido violada o máximo possível; esmagaram a cabeça do Barão, que queria defendê-la; a baronesa foi feita em pedaços (...) e, quanto ao castelo, não restou pedra sobre pedra”. Diante dessas notícias, Cândido se desespera, pergunta onde estará o melhor dos mundos e desmaia. Voltando a si, ouve Pangloss, que lhe diz: “Mas nós fomos vingados, já que os ábaros fizeram o mesmo em um baronato vizinho, pertencente a um senhor búlgaro.” 

Então, Cândio pergunta a Pangloss como ele ficou tão desfigurado assim. E Pangloss responde que a causa é o amor. Mas, rebate Cândido, como é que “tão belíssima causa produziu em vós um tão horrível defeito”? E Pangloss responde: “Meu caro Cândido, lembras de Pasquina, a graciosa camareira de nossa augusta baronesa? Pois eu provei em seus braços as delícias do paraíso, que
produziram estes tormentos do inferno pelos quais me estás vendo destruído. Ela estava infectada e creio que morreu disso. Pasquina teve esse presente de um franciscano verdadeiramente sábio, que
havia desejado remontar às fontes: com efeito, pegou-a de uma velha condessa, que a havia recebido de um capitão de cavalaria, que a devia a uma marquesa, que era devedora de um pagem, que
a pegara de um jesuíta, que, ainda noviço, a tivera por linha direta de um dos companheiros de Cristóvão Colombo. No que se refere a mim, não a passarei a ninguém, já que estou por morrer.”

Diante dessa descrição da terrível história, Cândido pergunta a Pangloss se não foi precisamente o diabo o tronco inicial dessa genealogia. Mas o “grande homem” Pangloss responde: “De modo algum! Isso era uma coisa indispensável, um ingrediente necessário no melhor dos mundos. Se Colombo não houvesse pego em uma ilha da América essa doença, que envenena a fonte da geração, que muitas vezes atrapalha a própria geração e que, evidentemente, é precisamente o oposto ao limite da natureza,
então não teríamos o chocolate nem a cochonilha. E deve-se observar que até hoje, em nosso continente, essa doença, como a controvérsia, é toda nossa. Turcos e indianos, persas e chineses, siameses e japoneses ainda não a conhecem: mas há uma razão suficiente para que, por seu turno, a conheçam dentro de breves séculos. Entrementes, ela realizou progressos maravilhosos entre nós, especialmente entre essas grandes armadas, feitas de honestos mercenários bem educados, que decidem da sorte dos Estados: pode-se garantir que, quando trinta mil homens combatem em batalha campal contra tropas semelhantes, há uns vinte mil sifilíticos de cada lado.”

Chegados ao porto de Lisboa, um bom e generoso anabatista - que havia ajudado Pangloss e Cândido - morreu afogado por ajudar um marinheiro que, a um movimento em falso, havia caído ao mar: “Cândido se aproxima, vê seu benfeitor que emerge por um momento, mas logo é engolido para sempre. Queria jogar-se ao mar atrás dele, mas o filósofo Pangloss o impediu, demonstrando-lhe que a enseada de Lisboa havia sido criada de propósito para que aquele anabatista se afogasse ali.” Entrando na cidade, percebem logo que a terra começa a tremer; o mar se levanta, com as águas fervendo no porto e arrancando os navios às suas âncoras; turbilhões de chamas e cinzas cobrem as praças; as casas desmoronam. Trinta mil habitantes \ficam sob as ruínas. Diz Pangloss: “Este terremoto não é coisa nova: a cidade de Lima experimentou as mesmas coisas, na América, no ano passado. Mesmas causas,
mesmos efeitos. Certamente deve haver um filão de enxofre, por baixo da terra, de Lima até Lisboa.” Cândido responde: “Nada é mais provável. Mas, por Deus, um pouco de óleo e de vinho!” E Pangloss replica: “Como, provável? Sustento que a coisa está demonstrada!”

As aventuras dos dois não terminam aí. Mas, pelo que mostramos, dá para entender o que é o Cândido e o que Voltaire pretendeu dizer com isso. Entrementes, depois de outras movimentadas aventuras, a companhia chega a Constantinopla (Cunegunda, na realidade, não estava morta, mas se havia tornado
terrivelmente feia), onde Cândido, Pangloss e outro filósofo, Martinho, encontram um velho sábio muçulmano, que não se interessa por política, não discute sobre a harmonia preestabelecida nem se imiscui nas coisas dos outros. Diz o sábio turco: “Tenho apenas vinte alqueires, que cultivo com meus filhos. O trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade." E a sabedoria do velho turco, de certo modo, contagia os três filósofos. Diz Pangloss: “As grandezas são muito perigosas." E Cândido: “Sei também que é preciso cultivar a nossa horta." E Martinho: “Trabalhamos sem discutir: esse é o único modo de tomar a vida suportável.”

“É preciso cultivar a nossa horta”: não se trata de uma fuga dos compromissos da vida, mas o modo mais digno para vivê-la e para mudar a realidade naquilo que nos é possível. Nem tudo é mal e nem tudo é bem. O mundo, porém, está cheio de problemas. Cabe a cada um de nós não eludir os nossos problemas, mas sim enfrentá-los, fazendo aquilo que for possível para resolvê-los. O nosso mundo
não é o pior dos mundos possíveis, mas também não é o melhor. “E preciso cultivar a nossa horta”, isto é, precisamos enfrentar os nossos problemas, para que este mundo possa melhorar gradualmente ou, pelo menos, não se torne pior.

6.5. Os fundamentos da tolerância

E exatamente para que este mundo se tornasse mais civilizado e a vida mais suportável, Voltaire travou durante toda a sua vida a batalha pela tolerância. Para ele, a tolerância encontra o seu fundamento teórico no fato de que, como demonstraram "homens como Gassendi e Locke, apenas com as nossas próprias forças, nós não podemos saber nada dos segredos do Criador”. Nós não sabemos quem é Deus, nem o que é a alma e muitas outras coisas. Mas há quem se arrogueo direito divino da onisciência -- e daí a intolerância.

No verbete “tolerância” do Dicionário filosófico, podemos ler: “O que é a tolerância? É o apanágio da humanidade. Nós todos estamos prenhes de fraqueza e de erros: perdoemo-nos reciprocamente as nossas bobagens, essa é a primeira lei da natureza. No mercado de Amsterdão, de Londres, de Surata ou de Bassora, todo dia negociam juntos o budista, o induísta, o judeu, o maometano, o deísta chinês, o brâmane, o cristão grego, o cristão romano, o cristão protestante, o cristão quaker e nenhum levanta o punhal para o outro visando ganhar uma alma para a sua religião. E por que então nós nos lançamos uns contra os outros quase sem interrupção, a partirdo primeiro Concílio de Nicéia?”

O nosso conhecimento é limitado e nós todos estamos sujeitos ao erro, nisso reside a razão da tolerância recíproca: “Em todas as outras ciências nós estamos sujeitos ao erro. Que teólogo, tomista ou eseotista ousaria então sustentar seriamente que está absolutamente seguro de sua posição?” E, no entanto, as religiões estão armadas umas contra as outras e, no interior das religiões, as seitas geralmente são terríveis no combaterem-se reciprocamente. Entretanto, diz Voltaire, está claro que “nós devemos nos tolerar mutuamente, porque somos todos fracos, incoerentes, sujeitos à inconstância e ao erro. Será que um junco dobrado pelo vento contra a lama deverá dizer ao junco seu vizinho, dobrado em sentido contrário, que ele, miserável, deve dobrar-se como está se dobrando o primeiro, sob pena de denunciá-lo para fazê-lo ser arrancado e queimado?" A intolerância se entrelaça com a tirania. E "o tirano é aquele soberano que não conhece outras leis além dos seus caprichos, que se apropria dos haveres dos seus súditos e depois os alista em sua guarda para que vão tomar os bens dos
vizinhos”. 

Mas, voltando à intolerância mais especificamente religiosa, o que Voltaire sustenta é que a Igreja cristã quase sempre esteve estraçalhada pelas seitas: “Muitas vezes o mártir era considerado apóstata pelos seus irmãos e o cristão carpocraciano expirava sob o machado do carrasco romano excomungado por seu irmão ebio nita, que, por seu turno, era anatematizado pelo sabeliano.” Pois bem, afirma Voltaire, "uma tão horrível discórdia, que dura há tantos séculos, é uma claríssima lição de que devemos perdoar uns aos outros os nossos erros: a discórdia é a grande peste do gênero humano e a tolerância é o seu único remédio”.

E essa verdade é uma verdade que todos admitem quando pensam e meditam sozinhos. “Por que então esses mesmos homens que, privadamente, admitem a indulgência, a benevolência e a justiça, em público se insurgem com tanta fúria contra essas virtudes? Por quê? Porque o seu interesse está no seu deus e eles tudo sacrificam a esse monstro que adoram.”

6.6. O “caso Calas" e o Tratado sobre a tolerância

E Voltaire realizou seu ataque ao “monstro”, um ataque que fez época e que ainda hoje provoca discussões, com o seu Tratado sobre a tolerância. Por volta de fins de março de 1762, um viajante
proveniente do Languedoc esteve em Femey e contou a Voltaire um fato que havia agitado a cidade de Tolosa. Nessa cidade, há pouco tempo, um negociante calvinista, Jean Calas, havia sido supliciado, enforcado e queimado por ordem do Parlamento local. Jean Calas, que morreu perdoando os seus carnifices, havia sido acusado de ter matado seu filho Marc-Antoine, com o objetivo de impedi-lo de tomar-se católico. Na realidade, tratou-se apenas de um caso de bárbara e cruel intolerância religiosa: uma multidão enfurecida de católicos fanáticos e juízes também fanáticos condenaram um inocente.

Sob a emoção desses fatos, Voltaire escreveu o Tratado so bre a tolerância. E, como podemos ler em uma carta de 24 de janeiro de 1763, escrita a uma pessoa amiga, ele escreve o seu trab . l o com o seguinte objetivo: “Não se pode mais impedir que Jean Calas seja supliciado. Mas é possível tornar os seus juízes execráveis. E é isso o que eu lhes auguro. Assim, aventurei-me a escrever todas as razões que poderiam justificar esses juizes: cutuquei-me o cérebro para encontrar o modo para desculpá-los, mas nada mais encontrei além de motivos para dizimá-los.”

E eis o que escreve Voltaire no Tratado sobre a tolerância sobre o processo contra a família Calas: “Treze juízes reuniram-se todos os dias para levar a termo o processo. Não havia e nem podia haver qualquer prova contra a família; mas a religião traída ocupava o lugar das provas. Seis juízes insistiram longamente na condenação de Jean Calas, de seu filho e de Lavaisse (amigo da família) à roda e da mulher de Jean Calas à fogueira. Sete outros juízes, mais moderados, queriam pelo menos o exame do caso. Os debates foram longos e repetidos. Um dos juízes, convencido da inocência dos acusados e da impossibilidade do delito, falou energicamente em seu favor: opôs o zelo pela humanidade ao zelo pela severidade, tornando-se o defensor público de Calas em todas as casas de Tolosa, onde os gritos incessantes da religião traída pediam o sangue daqueles desgraçados. Outro juiz, conhecido por sua violência, falava com tanta raiva contra Calas na cidade quanto o primeiro era pressuroso em defendê-lo. Por fim, o escândalo foi tão grande que ambos foram obrigados a declarar sua abstenção no juizo, retirando»se para o campo.

Mas, por uma estranha desventura, o juiz favorável aos Calas foi tão delicado que persistiu na abstenção, ao passo que o outro voltou a dar o seu voto contra aqueles que não devia julgar: e foi esse voto que decidiu a condenação à roda, já que houve somente oito votos contro cinco, com um dos seis juízes contrários tendo por fim, depois de muitas contestações, passado para o lado dos mais severos.”

Comenta Voltaire: “Quando se trata de um parricídio e de condenar um pai de família à mais atroz tortura, parece que a sentença deveria ser unânime, porque as provas de um crime tão inaudito deveriam ser claramente evidentes para todos: em um caso tal, a mínima dúvida deveria bastar para fazer tremer o juiz ao assinar uma condenação à morte. A fraqueza da nossa razão e a insuficiência das nossas leis se fazem sentir todos os dias, mas a sua miséria fica mais do que nunca evidente quando a maioria de um só voto manda um cidadão para a roda. Em Atenas, eram necessários cinqüenta votos mais que a metade para que se ousasse pronunciar uma condenação à morte. O que deduzir disso? Aquilo que nós já sabemos inutilmente, isto é, que os gregos eram mais sábios e mais humanos do que nós.” 

Falando do caso Calas, Voltaire apresenta toda uma longa série de horrores devido ao fanatismo e à intolerância. Pois bem, qual será o remédio contra essa doença tão virulenta? E eis a resposta aguda e apaixonada do sábio iluminista: “O melhor meio para diminuir o número dos maníacos, se é que permanecem, é confiar essa doença do espírito ao regime da razão, que lenta mas infalivelmente ilumina os homens. Essa razão é doce e humana, inspira à indulgência, sufoca a discórdia e consolida a virtude, toma a obediência às leis mais agradável do que a força pode assegurar a sua observância. E não se levará em conta o ridículo universal que hoje cerca o fanatismo? Esse ridículo é uma poderosa
barreira contra as extravagâncias de todos os setores.” 

Contra as extravagâncias, por exemplo, daqueles teólogos cheios de fanatismo e de odio. Mas, por sorte, diz Voltaire, “a controvérsia teológica é uma doença epidêmica que está por acabar: essa peste, da qual estamos curados, exige apenas um regime de brandura”. Evidentemente,VoItaire mostrava-se otimista nesse ponto: com efeito, a disputa teológica pode vestir as roupagens da disputa ideológica e ser feroz como aquela e talvez até mais. E foi o que aconteceu em seguida. Mas, de todo modo, para Voltaire, “o direito natural é aquele que a natureza indica para todos os homens. Haveis educado vosso filho e ele vos deve respeito porque sois o seu pai e reconhecimento porque sois o seu benfeitor. Tendes direito aos produtos da terra que cultivastes com as próprias mãos. Se haveis assumido ou recebido uma promessa, ela deve ser cumprida.”

Pois bem, o direito humano, diz Voltaire, “em nenhum caso pode deixar de se fundar sobre esse direito natural. E, sobre toda a terra, o grande princípio, o princípio universal tanto de um como de outro é o seguinte: 'Não faças aos outros o que não gostarias que fosse feito a ti.” Pois bem, seguindo-se esse princípio, não é possível que um homem possa dizer a outro: “Acredita naquilo ,em que eu creio e que tu não podes crer, caso contrário morrerás.” E isso o que se diz em Portugal, na Espanha, em Goa. Em alguns outros países, contentam-se em dizer agora: “Acredita, ou te incomodarei; acredita, ou te farei todo o mal que puder. Monstro, se tu não tens a minha religião, então não tens religião alguma; é preciso que os teus vizinhos, a tua cidade a tua província tenham horror de ti!” ” 

Se essa conduta estivesse em conformidade com o direito humano, observa Voltaire, então seria preciso que “o japonês execrasse o chinês, que por seu turno execraria o siamês; este perseguiria os gangáridas, que se lançariam sobre os habitantes da Índia; um mongol arrancaria o coração do primeiro malaio que encontrasse; o malaio poderia destroçar o persa, que poderia massacrar o turco; e todos juntos se precipitariam sobre os cristãos, que há tanto tempo se devoram entre si. O direito da intolerância, portanto, é absurdo e bárbaro: é o direito dos tigres. Aliás, é bem mais horroroso, porque os tigres só se despedaçam para comer, ao passo que nós temos nos exterminado por parágrafos.”

Foi J. Benda quem sustentou que as idéias de Voltaire inspiraram a legislação da Revolução francesa, a da Terceira República, e estão na base da teoria da democracia. E, na realidade, “os grandes princípios do Estado laico, da soberania popular, da igualdade de direitos e deveres, do respeito às prerrogativas naturais dos indivíduos e dos povos, da necessidade de uma convivência pacífica das diversas opiniões no seio da vida social, dos direitos imprescritíveis à liberdade de pensamento e das
vantagens da livre crítica, a generosa e otimista idéia de uma luta incessante contra os preconceitos e a ignorância e de uma conscienciosa propaganda pela difusão da cultura como instrumentos essenciais para o progresso da nossa civilização, todas essas questões, que já haviam sido agitadas e 'tratadas com maior ou menor intensidade por tantos escritores do século XVIII e, por vezes, até dos séculos XVI e XVII, foram retomadas por Voltaire, renovadas e sustentadas com uma agudeza tão clara e persuasiva, com uma riqueza de referências históricas e de remitências polêmicas à realidade contemporânea, com um vigor sintético, uma coerência moral e uma coragem tão absolutos que sua eficácia logo se multiplicou. E pode-se dizer que somente com Voltaire tais questões começaram a tomar corpo e pesar de modo verdadeiramente decisivo” (M. Bonfantini).

7. Montesquieu: as condições da liberdade e o Estado de direito

7.1. A vida e o significado da obra

“Depois de ter lido o Espírito das leis, o naturalista Charles Bonnet escreveu ao autor: "Newton descobriu as leis do mundo natural: vós, senhor, haveis descoberto as leis do mundo intelectual.” Embora não tenha chegado-a tanto, Montesquieu - erudito, moralista, jurista, político, viajante e cosmopolita, com efeito, se havia proposto em sua obra-prima a estender o método experimental ao estudo da sociedade humana, fixar algxms 'princípios' universais adequados a organizar logicamente a infinita multiplicidade dos usos, das normas jurídicas, das crenças religiosas e das formas políticas e, por fim, formular as leis objetivas segundo as quais, sob a aparência do acaso, articula-se constantemente o comportamento variado dos homens. Ele não rejeitou a concepção maquiavélica da política como força, mas a integrou com uma paciente consideração das outras infinitas “causas” -- históricas, políticas, físicas, geográficas, morais - que atuam nos acontecimentos humanos. Transpondo os critérios do método experimental ao estudo da sociedade, ele foi um dos pais da sociologia. Entretanto, como filósofo iluminista, compartilhou a fé iluminista na perfectibilidade do homem e da sociedade. Renunciou à busca da melhor forma do estado, cara à literatura utopista, e tentou estabelecer concretamente as condições que, nos diversos regimes políticos, garantem o Optimum da convivência civil: a liberdade. O seu realismo e o seu relativismo ligam-se a outra intenção normativa: um chamado à racionalização das leis e das instituições” (P. Casini).

Charles Louis de Secondat, barão de Montesquieu, nasceu no
castelo de La Brede, nas proximidades de Bordeaux, em 1689.
Tendo realizado seus estudos jurídicos, inicialmente em Bordeaux
e depois em Paris, foi conselheiro (1714) e, posteriormente, em
1716, presidente de seção do Parlamento de Bordeaux (deve-se
recordar aqui que, antes da Revolução, os parlamentos franceses
eram órgãos judiciários). Montesquieu manteve o cargo de presi-
dente do Parlamento até 1728, quando o vendeu, como se fazia
então. Realizou então viagens à Itália, Suíça, Alemanha, Holanda
e Inglaterra. Neste último país, ficou mais de um ano (1729-1731)
e, estudando a vida política inglesa, concebeu aquela elevada
opinião sobre as instituições políticas dos ingleses que podemos
encontrar em sua obra maior: O espírito das leis. Voltando à
França em 1731, estabeleceu-se no castelo de La Brede, onde, à
parte algumas estadas breves em Paris (havia sido eleito membro
da Academia em 1727), viveu trabalhando em suas obras até a sua
morte, ocorrida em 1755.
Montesquieu escreveu sobre diversos assuntos, tanto de
natureza literária como científica, embora o seu maior interesse,
o da ciência política, já se manifestasse em algumas de suas Lettres
persanes, publicadas anonimamente em 1721. Em 1733, publicou
as Considérations sur les causes de la grandeur des Romains et de
leur décadence e as Réflexions sur la monarchie universelle. So-
mente em 1748, depois de vinte anos de trabalho, ele publicou De
l'esprit des loix (ou, como se escreve hoje, lois). A essa obra segui-
ram-se, em 1970, uma Défense e os Eclairsissements. Já o Traité
des devoirs (1725) acabou se perdendo, dele restanto somente
poucos fragmentos e um resumo. Para uma mais adequada com-
preensão do pensamento de Montesquieu, são importantes as
Pensées que ele deixou manuscritas.



7.2. As razões da excelência da ciência


A confiança iluminista na ciência é destacada em Montes-
quieu. Em seus Discursos e memórias, podemos ler: “A diferença
entre as grandes nações e os povos selvagens se reduz ao fato de
que aquelas se aplicam às artes e às ciências, ao passo que estes as
negligenciam totalmente.” As ciências “são extremamente úteis,
porque libertam os povos de perniciosos preconceitos”. Mas os
motivos que militam em favor do estudo das ciências são ainda
mais amplos: '
a) “O primeiro é a satisfação interior que experimentamos ao
aumentar a dignidade da própria natureza, isto é, aumentando a
inteligência de um ser inteligente.”
b) “O segundo é certa curiosidade que todos os homens
possuem e que nunca foi tão justificada como em nosso século. Todo
dia nos surgem notícias de novas ampliações dos limites do nosso
saber, os próprios cientistas se maravilham com a amplitude de
seus conhecimentos e a própria grandiosidade dos seus sucessos
faz, por vezes, com que duvidem de sua existência real (...).”
c) “O terceiro motivo que nos deve animar na pesquisa
científica é a fundada esperança de alcançar resultados positivos.
O caráter extraordinário das conquistas do nosso século está no
fato de que não se trata mais da descoberta de verdades simples,
mas muito mais dos próprios métodos para prová-las; não se trata
de uma simples pedra, mas dos instrumentos e máquinas para
construir o prédio inteiro. Um homem se vangloria de possuir ouro,
enquanto outro de saber fabricá-lo: é óbvio que o verdadeiro rico
seria o segundo.”
d) “O quarto motivo é a nossa própria felicidade. O amor aos
estudos é a única das nossas paixões que é, por assim dizer, eterna;
todas as outras nos abandonam à medida que a frágil máquina da
qual emergem se aproxima de seu fim (. . .). Portanto, é necessário
construir uma felicidade que nos acompanhe em todas as idades:
a vida é tão breve que não podemos levar em conta uma felicidade
que não dure pelo menos o quanto duramos nós mesmos.”
E ainda: e) “Outro motivo que deve nos encorajar a nos
aplicarmos aos estudos é a utilidade que deles pode desfrutar a
sociedade de que fazemos parte, pois podemos acrescentar novas
comodidades às muitas de que já desfrutamos. O comércio, a
DaVCSaÇãQ a astronomia, a geografia, a medicina e a fisica rece-
beram um impulso muito vigoroso do trabalho daqueles que nos
precederam: assim, que objetivo pode ser mais nobre do que o de
trabalhar para que os homens que virão depois de nós sejam ainda
mais felizes do que nós fomos?”



7.3. As Cartas persas


Portanto, é sólida a confiança que Montesquieu nutre pelas
ciências naturais. E sua tentativa de examinar os acontecimentos
históricos e sociais com o método típico das ciências naturais já
pode ser visto nas Cartas persas, onde também estão ativamente
presentes outros ingredientes da mentalidade iluminista. Na
realidade, “a tendência a estender o método experimental aos
fenômenos histórico-sociais, a herança cética e racionalista dos
mécréants eruditos e o uso da ironia como uma função crítica e
pragmática fundem-se de modo bastante original nas Cartas
persas (. . .), que, sob a aparência do exotismo e na função literária
corrente do romance epistolar, constituíram um verdadeiro mani-
festo iluminista" (P. Casini).
A ficção literária consiste no fato de que o jovem persa Usbek,
aparentemente ingênuo, mas na realidade perspicaz e impiedoso,
escreve cartas sobre a sua viagem de instrução pela Europa, nas
quais põe na berlinda os vícios das classes dirigentes, ridiculariza
o clero, mostra desprezo pelas disputas teológicas, evidencia como
é corrupta a corte e como são absurdos os costumes imperantes,
denuncia o despotismo, se interessa pela condição das mulheres,
pelo direito penal, pelas fmanças, pelas formas de governo, pelos
problemas demográficos.
De particular interesse é a carta LXXXIII, da qual emerge
uma concepção racionalista e naturalista da justiça, típica da
filosofia iluminista. Escreve Montesquieu: “A justiça é uma rela-
ção de conveniência que existe realmente entre duas coisas: essa
relação é sempre a mesma, qualquer que seja o ser que a considere,
seja ele Deus, seja um anjo ou, por fim, um homem.” E, na vida
associada dos homens, a justiça brota da virtude e não das leis
coercitivas do Estado.
A propósito disso, são significativas as cartas XI-XIV, que
registraram o apólogo dos trogloditas. Feroz, invencível e avesso a
toda norma de convivência, o povo dos trogloditas chegou ao limite
da destruição geral. Entretanto, ele ressurge e se torna próspero
graças à obra de dois homens justos, de cujo exemplo nasce um
povo novo, educado na virtude da justiça. Trata-se - coisa
unanimemente admitida - de uma crítica à tese de Hobbes
segundo a qual um povo só pode obter a paz através da força do
Estado, que doma a fúria das paixões egoístas.
E eis, a seguir, uma série de outras observações, que nos
ajudarão a captar o tom geral da obra. A respeito das disputas
teológicas, escreve ele: “Existe (. . .) um número infinito de doutores
que estão continuamente ocupados em levantar novas questões a
respeito da religião (...). Assim, posso te assegurar que nunca

existiu um reino tão estraçalhado por guerras civis como o de
Cristo. Aqueles que lançam à circulação proposições novas são
inicialmente chamados de heréticos (...), mas ouvi dizer que, na
Espanha e em Portugal, há certos dervixes que não acatam
nenhuma razão e mandam queimar um homem como se faria com
um punhado de galhos secos (...). Vejo aqui muita gente ocupada
em disputas sem fim em torno da religião; tenho, porém, a im-
pressão de que disputam para ver quem a observa menos."
Sobre a intolerância, podemos ler, entre outras coisas: “Admito
que as histórias estão cheias de guerras religiosas. Mas, olhando
bem, não foi a multiplicidade das religiões que produziu tais
guerras, mas sim o espírito de intolerância próprio da seita que se
considerava dominante: é aquele espírito de proselitismo que os
hebreus aprenderam com os egípcios e que depois se difundiu,
como uma doença epidêmica, entre os maometanos e os cristãos;
em suma, é aquela embriaguez do espírito cujos progressos aca-
bam por produzir o eclipse total da razão humana."
No que se refere à maior diferença entre a política asiática e
a de alguns Estados europeus, diz Usbek: “Uma das coisas que
mais excitou a minha curiosidade ao chegar à Europa foi a história
e a origem das repúblicas. Tu sabes que a maior parte dos asiáticos
não tem nem mesmo a idéia de semelhante tipo de governo, nem
tem suficiente imaginação para chegar a pensar que possa existir
sobre a face da terra um regime diverso do regime despótico."
Sobre os ingleses, podemos ler: “Nem todos os povos da
Europa são igualmente submetidos aos seus príncipes. O humor
impaciente dos ingleses, por exemplo, não permite ao seu rei que
faça sentir muito a sua autoridade; a submissão e a obediência são
as virtudes às quais eles menos se atêm. A esse propósito, aliás,
sustentam coisas verdadeiramente extraordinárias. Segundo eles,
só existe um laço que pode verdadeiramente unir os homens, que
é o laço da gratidão (...). Mas se um príncipe, longe de fazer seus
súditos viverem felizes, pretende sufocá-los e oprimi-los, deixa de
ter valor qualquer razão para obedecer-lhe: nada mais os liga a ele
e retomam a sua natural liberdade. Com efeito, eles sustentam que
todo poder ilimitado não pode ser considerado legítimo, precisa-
mente porque a sua origem não pode ter sido legítima. Com efeito,
dizem que não podem atribuir a outro um poder maior do que têm
sobre si mesmos. Ora, nós não temos um poder ilimitado sobre nós
mesmos: por exemplo, não podemos nos tirar a vida. E assim,
concluem eles, ninguém pode ter tal poder sobre a terra."
A esses sentimentos de admiração em relação aos ingleses
corresponde uma sarcástica ironia em relação ao rei da França e
ao papa: "O rei da França é o mais poderoso príncipe da Europa.
Embora não possuindo minas de ouro como o rei da Espanha. Seu



vizinho, é mais rico do que ele, porque sabe extrair ouro da vaidade
de seus súditos, mais inexaurível do que qualquer mina. Já foi
visto empreendendo e sustentando longas guerras sem outros
recursos além da venda de títulos nobiliárquicos e, por um milagre
do orgulho humano, as suas tropas eram pagas regularmente, as
fortalezas municiadas e as frotas equipadas. De resto, esse rei é um
grande mago: exerce o seu poder sobre o próprio espírito dos seus
súditos, fazendo-os pensar como ele quer (...). Chega inclusive a
fazê-los crer que é capaz de curá-los de qualquer espécie de mal
apenas por tocar-lhes, tão grande são a força e o poder que tem
sobre os espíritos."

Entretanto, se o rei da França é grande mago, na opinião de Montesquieu existe um mago ainda maior do que ele. E “esse mago se chama papa. Ele consegue fazer crer que três e um são a mesma coisa, que o pão que se come não é pão ou que o vinho que se bebe não é vinho e mil outras coisas desse gênero (. . .). O papa, chefe dos cristãos. Trata-se de velho ídolo, incensado por hábito. Outrora, os próprios príncipes o temiam (. . .), mas agora não mete mais medo em ninguém. Pretende ser o sucessor de um dos primeiros cristãos, que se chamava são Pedro. Claro, trata-se de uma rica sucessão: com efeito, ele possui tesouros imensos e é senhor de um grande país".

Sobre o cristianismo, encontramos observações como estas:
"Sabei (...) que a religião cristã está sobrecarregada por uma
infinidade de práticas de observância muito difícil. Assim, pensou-
se que seria mais fácil obter a dispensa junto aos bispos do que
cumprir todos esses preceitos - e assim se fez, em homenagem à
utilidade pública. Desse modo, quando se quer evitar a observância
do jejum, subtrair-se à formalidade do matrimônio, deixar de lado
algum voto, desposar-se contra a proibição da lei ou deixar de
cumprir o seu próprio juramento, vai-se ao bispo ou ao papa que
logo se obtém a dispensa (...)."

7.4. O Espírito das leis

A análise empírica dos fatos sociais, que já se manifestara nas Cartas persas e estava presente nas Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência, também é típica do Espírito das leis. Com efeito, esta obra “corresponde à exigência, que amadurecia sempre melhor no pensamento de Montesquieu, de estudar as leis da vida social e política não com o método apriorista e abstrato dos iluministas, mas através da observação empírica direta: portanto, as leis não são entendidas como princípios racionais e ideais, mas sim como relações constantes entre fenômenos históricos" (G. Fassò).

Escreve Montesquieu: “Muitas coisas governam os homens: os climas, as religiões, as leis, as máximas de governo, os exemplos das coisas passadas, os costumes, os usos - e disso tudo resulta um espírito geral.” Por espírito das leis, portanto, devem-se entender as relações que caracterizam um conjunto de leis positivas e históricas que regulam as relações humanas nas várias sociedades. “A lei, em geral, é a razão humana, enquanto governa todos os povos da terra. As leis políticas e civis de cada nação nada mais devem ser do que os casos particulares aos quais se aplica tal razão humana. Elas devem se adaptar tão bem ao povo para o qual foram feitas que somente em casos raríssimos as leis de uma nação poderiam convir para outra (...)."

E continua: “Elas devem ser (. . .) relativas à geografia física
do país; ao clima glacial, tórrido ou temperado; à qualidade,
situação e grandeza do país; ao gênero de vida dos povos, campo-
neses, caçadores ou pastores; devem estar em relação com o grau
de liberdade que a constituição pode tolerar; à religião dos habi-
tantes, às suas inclinações, às suas riquezas, ao seu número, ao seu
comércio, aos seus costumes, aos seus usos. Por fim, elas estão em
relação entre si e com a sua origem, com as finalidades do legis-
lador e com a ordem das coisas nas quais se fundamentam.
Portanto, é necessário estudá-las sob todos esses diversos aspec-
tos. E foi essa a empresa que tentei realizar em minha obra.
Examinarei todas essas relações - e o seu conjunto constitui
aquilo que chamo de espírito das leis.”
As leis, portanto, são diferentes de povo para povo, em função
do clima, das ocupações fundamentais, da religião e assim por
diante. Pois bem, Montesquieu não trata de toda a enorme massa
de fatos empíricos relativos às “leis” dos diversos povos com um
esquema apriorista, abstrato e absoluto. Entretanto, dá ordem à
ilimitada série de observações empíricas por meio de princípios
precisos, que, ao mesmo tempo em que dão ordem a tais observações
empíricas, delas recebem forte suporte empírico.
Eis os esquemas de ordenação de Montesquieu: “Existem
três espécies de governo: o republicano, o monárquico e o despótico
(...). O governo republicano é aquele em que o povo, em sua
totalidade ou uma parte dele, possui o poder soberano; o monár-
quico é aquele em que só um governa, mas com base em leis fixas
e imutáveis; ao passo que o despótico é aquele em que também um
só governa, mas sem leis e sem regras, decidindo de tudo com base
em sua vontade e ao seu bel-prazer.” Essas três formas de govemo
são tipicizadas pelos respectivos princípios éticos, que são a virtude
para a forma republicana, a honra para a monárquica e o medo
para a despótica. A forma ou natureza do governo "é aquilo que o

faz ser tal, isto é, o princípio que o faz agir. Um é movido por sua
estrutura peculiar, outro é movido pelas paixões humanas".
Está claro, diz Montesquieu, que as leis devem ser relativas
tanto ao princípio de governo como à sua natureza. Assim, para
sermos mais claros, “não é preciso muita probidade para que um
governo monárquico ou despótico possa se manter e defender. A
força das leis em um e o braço ameaçador do príncipe no outro
regulam e govemam tudo. Mas, em um estado popular, é preciso
uma mola a mais, que é a virtude. Essa afirmação está em
conformidade com a natureza das coisas e, ademais, é confirmada
por toda a história universal. Com efeito, é evidente que, em uma
monarquia, onde quem faz cumprir as leis se considera acima
delas, há menos necessidade de virtude do que em um governo
popular, onde quem faz cumprir as leis está consciente de também
submeter-se a elas e saber que deve suportar seu peso (. . .). Quando
tal. virtude é deixada de lado, a ambição penetra nos corações a ela
mais inclinados e a avareza penetra em todos. As aspirações
voltam-se para outras finalidades: aquilo que antes se amava
agora é desprezado; antes, era-se livre sob a lei, mas agora se quer
ser livre contra as leis (...)”.
Temos, portanto, três formas de governo inspiradas em três
princípios. Essas três formas de governo podem se corromper: e “a
corrrupção de todo govemo começa quase sempre pela corrupção
do seu princípio”. Assim, por exemplo, “o princípio da democracia
se corrompe não somente quando se perde o princípio da igualdade,
mas também quando se difimde um espírito de igualdade extrema,
com cada qual pretendendo ser igual àqueles que escolheu para
comandá-lo”. Montesquieu esclarece esse importante pensamento
com as seguintes palavras: “O verdadeiro espírito de igualdade
está tão distante do espírito de extrema igualdade quanto o céu
está distante da terra. O primeiro não consiste em absoluto em
fazer com que todos comandem ou que ninguém seja comandado,
mas sim no obedecer e comandar a iguais. Ele não pretende de
modo algum que não se tenha senhores, mas sim que só tenha a
iguais por senhores (.. .). O lugar natural da virtude é ao lado da
liberdade, mas ela não pode sobreviver ao lado da liberdade
extrema mais do que poderia sobreviver na escravidão.”
E, em segundo lugar, no que se refere ao princípio monár-
quico, ele "se corrompe quando as máximas dignidades se tornam
símbolos da máxima escravidão, quando os grandes ficam priva-
dos do respeito popular e tornam-se vis instrumentos de um poder
arbitrário. E ele se corrompe ainda mais quando a honra é contra-
posta às honras e quando se pode ser ao mesmo tempo coberto de
cargos e de infâmia”. E, por fim, “o princípio do governo despótico
se corrompe incessantemente, porque é corrupto por sua própria
natureza”.

7.5. A divisão dos poderes, isto é, "o poder que detém o poder”

A obra maior de Montesquieu não é composta apenas de
análise descritiva e teoria política explicativa. Ela também é
dominada por uma grande paixão pela liberdade. E Montesquieu
elabora o valor da liberdade política indo buscar na história e
estabelecer na teoria aquelas que são as condições efetivas que
permitem que se desfrute a liberdade. E Montesquieu explicita
esse interesse central sobretudo no capítulo que dedica à monar-
quia inglesa, no qual é delineado o Estado de direito que se havia
configurado depois da revolução de 1688. Mais particularmente,
Montesquieu analisa e teoriza aquela divisão de poderes que
constitui um fulcro básico da teoria do Estado de direito e da
prática da vida democrática.

Afirma Montesquieu: "A liberdade política não consiste de modo algum em fazer aquilo que se quer. Em um Estado, isto é, em uma sociedade na qual existem leis, a liberdade não pode consistir senão' em poder fazer aquilo que se deve querer e em não ser obrigado a fazer aquilo que não se deve querer (...). A liberdade é o direito de fazer tudo aquilo que as leis permitem.” Nesse sentido, lockianamente, não é que as leis limitem a liberdade: elas a asseguram a cada cidadão. Esse “é o princípio do constituciona lismo moderno e do estado de direito. Com efeito, Montesquieu se vincula a Locke e à experiência constitucionalista da Inglaterra, cuja forma de governo ele considera ótima pela divisão dos três poderes do Estado, o legislativo, o executivo e o judiciário, na qual ele vislumbra e considera a condição política e jurídica da liberdade” (G. Fassò). Essa divisão é condição da liberdade pelo fato de que, “para que não se possa abusar do poder, é preciso que, por meio da disposição das coisas, o poder detenha o poder”. 

Em todo Estado, diz Montesquieu, existem três tipos de
poder: o poder legislativo, o executivo e o judiciário. Pois bem, "por
força do primeiro, @príncipe ou magistrado faz leis, que têm uma
duração limitada ou ilimitada, e corrige ou revoga as leis já
existentes. Por força do segundo', faz a paz ou a guerra, envia ou
recebe embaixadas, garante a segurança, previne as invasões. Por .
força do terceiro, pune os delitos ou julga as causas entre pessoas
privadas”.
Estabelecidas essas definições, Montesquieu assevera que “a
liberdade política em um cidadão é aquela tranqüilidade de espí-
rito que deriva da persuasão que cada qual tem de sua própria
segurança; para que se goze de tal liberdade é preciso que o governo
esteja em condições de libertar cada cidadão do temor em relação
aos outros”. Entretanto, se o objetivo é precisamente a liberdade,

então “quando uma mesma pessoa ou o mesmo corpo de magistra-
dos concentra os poderes legislativo e executivo, não há mais
liberdade, porque subsiste a suspeita de que o próprio monarca ou
o próprio senado possa fazer leis tirânicas para depois, tiranica-
mente, fazê-las cumprir”. E nem teríamos mais liberdade “se o
poder de julgar não estivesse separado dos poderes legislativo e
executivo. Com efeito, se estivesse unido ao poder legislativo,
haveria uma potestade arbitrária sobre a vida e a liberdade dos
cidadãos, posto que o juiz seja legislador. E, se estivesse unido ao
poder executivo, o juíz poderia ter a força de opressor".
Por fim, "tudo estaria (...) perdido se o mesmo homem ou o
mesmo corpo de governantes, dos nobres ou do .povo exercesse
juntamente os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as
resoluções públicas e o de julgar os delitos ou as causas privadas".
Montesquieu reconhece que, enquanto entre os turcos (onde os três
poderes estão reunidos na mão do sultão) se tem "um apavorante
despotismo", na maioria dos reinos europeus, no entanto, “o
governo é moderado porque o príncipe, que detém os dois primeiros
poderes, deixa aos seus súditos o exercício do terceiro". E acres-
centa: "Não me cabe julgar se os ingleses gozam atualmente dessa
liberdade ou não. Basta-me afirmar que ela é sancionada por suas
leis e não me preocupo com o resto."



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